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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Novo livro de Nancy Fraser denuncia o capitalismo que devora as condições que o sustentam


A filósofa norte-americana Nancy Fraser defende que o capitalismo contemporâneo está a “devorar as próprias condições que o sustentam” e propõe repensar as bases do sistema, no livro intitulado “Capitalismo Canibal”, que chega este mês às livrarias portuguesas.

Com o subtítulo “O capitalismo está a devorar a democracia, os cuidados sociais e o planeta”, o ensaio de Nancy Fraser, publicado originalmente em 2022 e editado agora pela Antígona, alerta para a forma como o capitalismo atual, que descreve como “omnívoro e alarve”, é capaz de canibalizar todas as esferas da vida.

Segundo a autora, trata-se de um sistema que devora as bases que o sustentam, desde a natureza às instituições democráticas, passando pelo que chama de “reprodução social”, ou seja a sustentação material, emocional e relacional da vida humana.

Essa dinâmica manifesta-se na exploração intensiva dos recursos naturais, nas desigualdades de classe e etnia, na precarização do trabalho e no esvaziamento das práticas políticas, como se lê num excerto da obra.

Nancy Fraser defende que as múltiplas crises contemporâneas, sejam económicas, sociais, ambientais ou democráticas, têm como origem comum o apetite insaciável de um modelo económico que consome as próprias condições que o tornam possível.

No livro, a autora parte de uma releitura crítica de Marx para propor uma conceção alargada de capitalismo, que ultrapassa o domínio estritamente económico.

No primeiro capítulo da obra – “Omnívoro: Porque Precisamos de Alargar a Nossa Concepção do Capitalismo” -, sustenta que o sistema não se limita à exploração do trabalho assalariado, apoiando-se também em “fenómenos ‘não-económicos’ como o aquecimento global, o ‘défice das prestações de cuidados’ e o esvaziamento a todos os níveis do poder público”, que são simultaneamente indispensáveis e sistematicamente degradados.

“O capital expande‑se apropriando-se do excedente do tempo de trabalho dos assalariados explorados e igualmente expropriando a riqueza não-capitalizada e subcapitalizada dos prestadores de cuidados, das populações racializadas e da natureza. Por outras palavras, não se expande por si mesmo, mas canibalizando-nos”, apropriando-se do excedente humano e natural, sem reabastecer o que destrói, escreve Nancy Fraser no livro.

Numa entrevista dada em 2022 à revista The New Republic, a filósofa explicou que a metáfora do canibalismo procura inverter o uso colonial e racista original do termo: “Quem se dedica a acumular capital é que é o verdadeiro canibal”.

E acrescenta que o capitalismo destrói as próprias infraestruturas que o sustentam, entre as quais os sistemas políticos, jurídicos e sociais que garantem o funcionamento económico.

Nancy Fraser identifica uma crise global da reprodução social, resultante do neoliberalismo e do “capitalismo financeirizado”, de que são exemplo as mulheres, incluindo com filhos pequenos, que nas últimas décadas foram massivamente integradas na força de trabalho, enquanto os Estados reduziram os apoios públicos, criando uma “tempestade perfeita” de sobrecarga e falta de tempo.

Simultaneamente, o endividamento crescente – por via de hipotecas, cartões de crédito e empréstimos – desvia o rendimento familiar, “que poderia ser dedicado à construção de uma espécie de infraestrutura de cuidado”, para os bancos e para a ‘indústria de crédito’, numa nova forma de expropriação.

Na mesma entrevista, a autora alerta também para uma crise de “hegemonia”, conceito herdado de Antonio Gramsci, segundo o qual uma classe dominante mantém o seu poder não apenas pela força, mas também pelo consentimento.

Esta crise manifesta-se em dissidências e numa polarização, decorrente do “surgimento de narrativas concorrentes, que lutam entre si pelo que será a nova hegemonia”, que “substituirá o senso comum neoliberal de que tudo o que precisamos são mercados mais livres e uma menor interferência do Estado”.

Para a filósofa, a perda de confiança nas instituições e nas elites políticas está a abrir espaço tanto a movimentos emancipatórios, como o socialismo democrático e novas plataformas mediáticas de esquerda, como a forças reacionárias, incluindo o ‘trumpismo’, os movimentos antivacina e os discursos xenófobos.

A dimensão ecológica ocupa igualmente um lugar central na análise de Nancy Fraser, segundo a qual “o capitalismo separou brutalmente os seres humanos dos ritmos naturais e sazonais”, transformando a agricultura e a indústria em sistemas subordinados ao lucro e sustentados por combustíveis fósseis e fertilizantes químicos, descreve a sinopse do livro.

Ao mesmo tempo, o neoliberalismo promete fazer desaparecer a fronteira entre o humano e a natureza, com técnicas reprodutivas e tecnologias ciborgue, que em vez de reconciliar, intensificam a canibalização da natureza pelo capital.

Na entrevista à Common Wealth , a autora reconhece que o sistema capitalista demonstrou grande capacidade de reinvenção, mas considera que a mudança climática representa “um limite objetivo”, podendo tornar “a vida literalmente impossível para um número cada vez maior de populações”.

A filósofa defende a necessidade de imaginar novos sistemas para substituir o modelo atual, reduzindo as emissões, evitando que os custos recaiam sobre as populações mais vulneráveis e reconstruindo as bases da democracia e do cuidado.

Nancy Fraser desafia leitores e decisores a repensarem as estruturas fundamentais da vida social e económica antes que o sistema consuma tudo o que o sustenta.

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