Recusava-se a chamar floresta aos eucaliptais e às manchas de pinheiro-bravo, deixou um alerta dramático para o fim das aldeias e do mundo rural, nesta entrevista ainda inédita, realizada pelo jornalista José Alex Gandum.
Gonçalo Ribeiro Telles desapareceu há poucos dias, aos 98 anos de idade, mas deixou uma obra muito extensa na área da arquitectura paisagista. Em miúdo, ia muitas vezes a casa de um tio-avô que morava num 5º andar na Rua das Pretas, em Lisboa. Foi ali, à janela, a olhar para a cidade, que despertou no futuro arquitecto paisagista um espírito arquitectónico, paisagístico e crítico.
Político, passou por diversos Governos e esteve na génese de inúmeras medidas ambientais, ainda hoje vigentes. Visionário, Ribeiro Telles lamentava-se, contudo, em muitas das conferências e das entrevistas que dava, que os poderes instituídos não o deixavam fazer tudo aquilo que ele pretendia fazer. Ainda assim, fez muito, não só na capital (onde os Jardins da Fundação Calouste Gulbenkian se destacam. mas também o Jardim Amália ou o Corredor Verde de Lisboa).
Professor, tem dito que em face do mundo actual toda uma filosofia sobre áreas protegidas – muitas das quais tiveram a sua assinatura – e sobre a conservação da natureza está ultrapassada. Porque razão tem essa ideia? Porque o mundo rural está a acabar. Não se pode inventar todas as potencialidades e funções do mundo rural através de uma nova visão de conservação da natureza. É preciso encarar o problema de frente e não é com o desenvolvimento das áreas protegidas e com novos estudos que se chega a alguma conclusão.
Mas as áreas protegidas não são importantes? As áreas protegidas têm importância e continuarão a ter, mas como laboratórios, referências, modelos, pedagogia… e isso interessa a quem? Interessa principalmente aos que não são do mundo rural. As áreas protegidas foram feitas para desenvolvimento científico como laboratório e para dar a conhecer àqueles que não são do mundo rural qualquer coisa que possa justificar esse mundo. Ah, e para criar bons empregos desnecessários a pessoas que fazem parte da elite governativa. Mas o que se verifica hoje – e que é gravíssimo – é a queda drástica do mundo rural, o que vai arrastar todas as políticas relativas às áreas protegidas.
E de quem é a culpa para a queda do mundo rural? O principal culpado é o fenómeno urbano, que afastou as populações das aldeias, condenando à morte as aldeias, e tornando este país num caos… foi também a reflorestação errada, que acabou por provocar… desflorestação. Aliás, a desflorestação foi o primeiro acto de despovoamento. A desflorestação é um fenómeno urbano, pois parte de decisões tomadas nas cidades, decisões que preferem criar um grande mercado internacional em detrimento dos mercados locais. E é assim que se mandam vir produtos de locais a milhares de quilómetros de distância, aumentando aquilo a que chama a pegada ecológica, quando esses produtos podiam ser produzidos localmente.
E aponta alguma solução para os incêndios florestais em Portugal? Incêndios florestais? Portugal não tem incêndios florestais…
Como assim, Professor? Se todos os anos ardem milhares de hectares de floresta… Ardem milhares de hectares de eucaliptais e aglomerados de pinheiro bravo. Isso não é floresta. A verdadeira floresta felizmente não arde ou arde pouco. Conhece grandes incêndios em florestas de castanheiros ou no montado?
Pois, na verdade não. Mas mesmo os outros incêndios são muito prejudiciais para a biodiversidade, não? Claro. Nos tempos pré-históricos alguns incêndios tinham uma função útil, mas hoje em dia são completamente inúteis. Destroem os solos, dizimam milhões de animais e os seus habitats, e espalham muito CO2 que não faz falta nenhuma… além do mal que fazem às populações rurais, as quais só pensam em fugir para locais mais “seguros”, leia-se vilas e cidades… e até para o estrangeiro.
Mas não se pode fazer nada para conter esses tais incêndios? Desde que a pastorícia acabou e as aldeias começaram a ficar vazias ou quase só habitadas por velhos, ficou cada vez mais difícil evitar grandes incêndios nas manchas de eucalipto e pinheiro bravo. E a coisa é regular: os grandes incêndios vão repetir-se ciclicamente, é que a vegetação cresce e fica disponível para arder a cada sete, oito anos. E isto porque nesse intervalo os poderes políticos e económicos nada fizeram para o evitar ou mitigar. Sendo que os incêndios no futuro serão ainda mais catastróficos por causa do aquecimento global, coisa que muita gente, até cientistas, ainda não acredita.
Há nisto tudo um problema de ordem cultural? Exactamente, e isso ultrapassa até o problema económico. Esse problema de ordem cultural até destrói a esperança. O que vemos à volta é um caos distorcido. Há que recuperar uma dignificação do mundo rural para uma função essencial para a espécie humana, que é o contacto com a natureza, a produção de alimentos, fornecimento de água, etc.… enquanto é tempo.
Então, como vai ser a cidade do século XXI? Na relação urbano-rural temos de rever desde a base a ideia se necessitamos ou não do mundo rural. O maior problema é a destruição do mundo rural pela frustração do desaparecimento específico de espécies, pela morte das aldeias, não há caminhos locais, fecham-se escolas e outros serviços públicos. É claro que as pessoas que conseguem sair das aldeias, saem, e vão para as vilas e para as cidades. Ficam os que não conseguem sair, normalmente os mais velhos… e depois ainda há a questão da agroquímica, que vai acabar com o resto da agricultura tradicional.
Mas não se poderia transportar um pouco do mundo rural para as cidades? Hoje pensam-se as cidades em grandes edifícios, com muitos andares, com uma vacaria no 1º andar, com uma horta no telhado, com umas palmeiras nas empenas… utopia que só serve para desclassificar o mundo rural. Até porque o problema da biodiversidade está intimamente ligado com o mundo rural, não vale a pena fazermos charquinhos com rãs se não houver uma preservação e uma dignificação do mundo rural. Posso dar-lhe um exemplo aqui bem perto da falta de respeito do urbano intelectualóide pelo rural genuíno: o espaço que fica entre as dunas e a barreira das falésias da Costa da Caparica são os terrenos agrícolas mais produtivos da Europa, porque se conjugam ali uma série de factores propícios à agricultura, inclusive gente que sabe trabalhar a terra. No entanto, aprova-se um Polis que quer encher aquele espaço de construções para bairros sociais, em forma de caixotes intervalados com pequenos metros quadrados de relva que ainda por cima consome água da companhia…
Mas os bairros sociais também são necessários… Claro que são, mas não devem ser construídos em espaços agrícolas. Ainda há muito terreno com menores aptidões agrícolas que podem ser urbanizados.
Qual é a relação de um mundo que está a desaparecer, de um mundo de que dependemos historicamente, até dos seus conhecimentos, e como vamos substituir quer no tempo quer espacialmente esse mundo? Tudo se resume ao problema do desaparecimento das aldeias. É a própria história da humanidade que é mutilada. E depois também há motivos dos quais ninguém fala e que também afastaram as novas gerações do campo. Por exemplo, nos foros do Ribatejo e do Alentejo cresceram herdades ou companhias que enriqueceram muita gente, pela qualidade dos solos e a aposta certa em certas culturas. Mas isso também trouxe o reverso da medalha: os filhos e netos desses proprietários puderam ir estudar para as cidades e para o estrangeiro e quase nenhum voltou à sua terra – uma excepção ou outra no que toca aos vinhos, mas pouco mais.
Em resumo, muita coisa contribuiu para o desaparecimento do mundo rural: o não aproveitamento dos baldios, o fim da pastorícia, o alastramento da agroquímica com culturas cada vez mais intensivas em detrimento da agricultura tradicional adaptada aos solos e ao clima, os interesses da floresta industrial e da celulose, e em grande parte também por culpa dos que decidem estas coisas a partir de gabinetes nas grandes cidades sem nunca terem sujado as mãos na terra.
O problema da sustentabilidade já não se põe com o mundo rural mas com um mundo urbano utópico.
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