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sexta-feira, 3 de maio de 2024

A atribulada carreira diplomática do candidato do Chega



O cabeça de lista do Chega às próximas eleições europeias tem no seu currículo quatro décadas de carreira diplomática marcadas por várias polémicas e infrações disciplinares. Antes disso, juntou-se ao CDS e foi secretário-geral da Juventude Centrista logo em 1974. E esteve ligado a um dos momentos mais importantes dos primeiros tempos do partido, quando organizou o comício no Teatro de São Luiz que acabou com os militares a escoltarem os jovens centristas à saída do local, cercado por manifestantes da esquerda. Depois do evento, a atividade partidária reduz-se mas mantém a proximidade. Em 1979, a vitória da AD garante a pasta dos Negócios Estrangeiros a Freitas do Amaral e Tânger, há poucos meses no quadro do Ministério, é chamado para seu adjunto. Numa reportagem sobre o percurso de Tânger Corrêa, o Público recorda que o ativismo partidário do jovem diplomata, que passava pela colagem de cartazes do partido, deixou furioso o então secretário-geral do Ministério, Gonçalo Caldeira Coelho, também próximo do CDS.

Comunidade portuguesa de Toronto recolheu dinheiro para lhe comprar barcos de competição... e ficou a ver navios
Já nas funções de chefia de um posto diplomático, em 1984 como cônsul-geral em Toronto, surge o primeiro caso polémico. O estilo aventureiro e enérgico depressa lhe garantem simpatia de figuras da comunidade emigrante. E Tânger transmite-lhes o seu amor pela prática de vela e o sonho de ir aos Jogos Olímpicos. A comunidade mobilizou-se para lhe oferecer um barco de competição, mas o azar levou a que fosse destruído na viagem para uma competição nos EUA. Seguiu-se novo peditório para angariar dezenas de milhares de dólares e assim comprar um segundo barco topo de gama para o cônsul. Não há memória de um diplomata português ter aceite um presente - na verdade, dois - tão caro, o que as regras de conduta hoje proíbem expressamente a partir de um limite de 150 euros.

Tânger Corrêa usou o barco na preparação dos Jogos Olímpicos de Barcelona em 1992, onde cumpriu o sonho de participar. Mas a promessa de devolver o barco à comunidade portuguesa quando abandonasse o posto consular, ficando à guarda de um clube náutico que a comunidade iria criar, nunca se cumpriu. O cônsul trouxe o barco para o Clube Naval Setubalense, alegando que para isso teve o acordo da comunidade, que ficou a ver navios. Um inquérito do Ministério foi arquivado após as explicações de Tânger Corrêa de que o barco era apenas emprestado e que dele não tirou benefícios patrimoniais.

Em Goa ocupou uma casa, içou a bandeira... e abriu conflito diplomático
Depois de Toronto, foi colocado em Goa em 1993, com a missão de comprar uma casa para a residência oficial e a chancelaria. O negócio com uma propriedade da família Pacheco de Figueiredo ficou fechado, mas a casa estava vazia e à guarda de um motorista da família, que se recusou a abandoná-la. Com um grupo de amigos, Tânger Corrêa arrombou a porta da casa quando o seu ocupante estava ausente, retirando os seus pertences e colocando um poste onde içou a bandeira portuguesa, abrindo assim um incidente diplomático. Um grupo de populares organizou-se e retirou a bandeira, num caso que fez notícia e levou o governo local a afirmar não ter autorizado a mudança do consulado português. O negócio da casa ocupada acabou por cair e Tânger não tardou a ser retirado do posto.

Em Vilnius gastou dinheiro sem prestar contas e acabou suspenso pelo Ministério
O caso que lhe valeu uma suspensão aconteceu já em fase adiantada de carreira, após ser colocado como embaixador em Vilnius, na Lituânia, enviado em 2005 por Freitas do Amaral, então chefe da diplomacia do governo Sócrates. Não foram precisos muitos meses para começarem as suspeitas no Ministério de que as contas de Tânger não batiam certo, com o embaixador a queixar-se de que estava sozinho e sem o prometido funcionário administrativo.

O inquérito resultou numa acusação de violação do dever de zelo e do dever de lealdade, negligência grave e desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais. Entre os factos dados como provados no inquérito, o embaixador não enviava os mapas contabilísticos trimestrais obrigatórios por lei, abriu três contas bancárias em nome da embaixada sem informar o Ministério e movimentava-as, uma prática igualmente proibida, pediu "de forma sistemática e reiterada" montantes para o condomínio acima do valor real, usando 41 mil euros supostamente destinados a essas despesas para adquirir "serviços de segurança, manutenção de jardins, limpeza e outros". E também as verbas do reembolso do IVA a que as embaixadas têm direito foram usadas para despesas não autorizadas em vez de devolvidas a Lisboa. Após a inspeção o Ministério apenas recuperou do embaixador 920 euros de duas passagens aéreas para a Dinamarca, 11 mil euros usados na compra de dois quadros e 3.800 euros gastos em vinho para uma receção. Tânger alegou sempre que a sua função não era fazer a contabilidade da embaixada e que o pessoal destinado a essas tarefas nunca foi enviado por Lisboa.

O Ministério suspendeu-o por 200 dias, reduzindo a pena para 90 dias. Tânger avançou com uma ação judicial para anular a pena e o tribunal deu-lhe razão. Ministério e Tânger prosseguiram a batalha judicial, o primeiro para reverter a anulação da pena e o segundo para ser indemnizado, mas a justiça não deu razão a nenhuma das partes. É Paulo Portas, outro lider do CDS a mandar no Palácio das Necessidades, que o vai buscar à "prateleira" da diplomacia em 2012, colocando-o no Cairo, o penúltimo posto da sua carreira. Passou ainda por Doha, antes de se reformar em 2018.

"António Ranger" já tem malas feitas para Bruxelas

Dois anos depois entra na direção do Chega como um dos homens-fortes de Ventura, assumindo a primeira vice-presidência deste então. Foi ainda o primeiro nome proposto pelo Chega para o Conselho de Estado, falhando a eleição no Parlamento. Também polémica foi a primeira reação de Tânger Corrêa à invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin, solidarizando-se com as “vítimas de decisões irrefletidas, idiotas e perigosas (para não dizer outra coisa) do Governo de Kiev”. Um texto que depois viria a ser reclamado pelo verdadeiro autor e foi apagado pelo dirigente do Chega após ter sido referido no Expresso.

O seu estilo truculento ao longo da carreira valeu-lhe a alcunha de "António Ranger" e a aposentação da diplomacia não parece ter contribuído para o refrear. Em 2023, no congresso do Chega em Santarém, afirmou que "queria ver a Juventude Chega, chamem-me saudosista ou o que quiserem, a lutar nas ruas à cacetada com o MRPP e com o PCP."

Já este ano, em mais um congresso do partido, António Tânger apontou baterias à Aliança Democrática, reclamando para si o legado da primeira AD. "Nós somos a representação daquilo que é a Aliança Democrática verdadeira e única, não é esta imbecilidade e esta estupidez que criaram agora", afirmou.

A escolha de Tânger Corrêa não é uma surpresa e já em julho do ano passado o antigo diplomata - que na carreira chegou a ministro plenipotenciário de 1.ª classe, um nível abaixo de embaixador - se declarava disponível para encabeçar a lista ao Parlamento Europeu com a viagem praticamente assegurada para Bruxelas.

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