A discussão em torno do texto que publiquei no semanário Sol, intitulado "A Questão do Cocó: Um estudo de caso" (14 de Julho de 2023), justifica algumas linhas de reflexão.
A primeira é que o ânus é um tema que importa desmistificar e tirar do seu lugar de vergonha. Falar do ânus não devia ser visto como uma coisa obscena, ilegítima, escandalosa. Nem os leitores se deveriam sentir atingidos ou violentamente perturbados na sua normalidade sexual (por exemplo, quando se utiliza o cocó como uma representação substitutiva do pénis).
O ânus não é um sujeito impuro, nem representa um perigo social, pode e deve ter lugar no espaço público. Se provoca riso e desprezo é porque também fascina e possui a atracção da vertigem (e a vertigem, segundo Freud, é sexual...).
Como se sabe (ou devia saber-se), o ânus foi o primeiro órgão do corpo humano a ser expulso do espaço público: "As nossas sociedades modernas procederam a uma vasta privatização dos órgãos, que corresponde à descodificação dos fluxos que se tornaram abstractos. O primeiro órgão a ser privatizado, colocado fora do campo social, foi o ânus, que se tornou o modelo da privatização enquanto o dinheiro passou a exprimir o novo estado de abstracção dos fluxos. Daqui a relativa verdade das observações psicanalíticas sobre o carácter anal da economia monetária. Mas a ordem 'lógica' é a seguinte: substituição dos fluxos codificados pela quantidade abstracta; desinvestimento colectivo dos órgãos que se faz segundo o modelo do ânus" (Gilles Deleuze & Felix Guattari, O Anti-Édipo (1972). É este o verdadeiro processo histórico que tem de ser tido em conta.
De acordo com Néstor Perlongher, a privatização do ânus e a sua exclusão do campo social (e dos circuitos de produção de prazer) serviram para construir o corpo heterossexual masculino, mas também para instaurar o poder da racionalidade sobre o corpo e a sedução dos prazeres.
Assim, falar de construção biopolítica do corpo, como fez Michel Foucault, é falar do processo de racionalização que conduziu à diferenciação dos órgãos do corpo humano e que atribuiu, para cada um deles, funções associadas estritamente ou à masculinidade ou à feminilidade. Ao mesmo tempo, definiram-se as fronteiras entre as práticas consideradas normais e as práticas consideradas patológicas.
Ao longo do tempo e da história, verificou-se, segundo Deleuze & Guattari, um desinvestimento colectivo no ânus: "Não é o anal que se propõe à sublimação, é a sublimação que é completamente anal; assim, a crítica mais simples que podemos fazer à sublimação é dizer que ela não nos faz sair da merda (só o espírito é que é capaz de cagar). A analidade é tanto maior quanto mais desinvestido estiver o ânus". Ou, como disse o filósofo Paul B. Preciado, "foi necessário fechar o ânus para sublimar o desejo".
O ânus pode até não estar presente no campo social, mas isso não quer dizer que a sua presença não actue e não produza os seus efeitos (tanto mais fortes quanto nós os deliberadamente reprimirmos).
Dito de outra maneira, a castração colectiva do ânus levou a um sobre-investimento individual nesse órgão, como compensação. Quanto mais repelimos o ânus, mais nos sentimos atraídos por ele, pois a ideia do que está ausente excita-nos mais do que aquilo que está presente.
Durante muito tempo, o ânus esteve submetido a um apagamento sistemático, foi uma barreira intransponível, permanecendo invisível, quer como sujeito, quer enquanto objecto.
Portanto, a questão do ânus não é apenas uma, mas várias: pode o ânus falar? O ânus pode ou não falar? Que ocorre quando o ânus fala? Como tornar o ânus público? Ou, utilizando a sugestão de Paul B. Preciado, em "Terror Anal" (2009), como é que o ânus pode ser uma forma superior de fazer filosofia? Como é possível fazer filosofia mostrando o ânus? Como é possível pensar a partir do ânus, ou através do ânus?
A meu ver, falar do ânus é elevá-lo à visibilidade e ao enunciado, transformando-o numa potência que afirma e que se afirma (Deleuze). É atribuir-lhe agência social e dignidade filosófica, contribuindo para aquilo a que muitos chamam "a revolução do ânus".
O que é a revolução do ânus? É, nada mais simples, dar voz ao ânus, fazendo dele uma arena da acção política contra os saberes hegemónicos que silenciam as narrativas não-hegemónicas.
É olhar para ele como arma de luta política e como tecnologia contracultural, como uma estratégia de constituição de novas possibilidades de existência, de novos estilos de vida, como em Michel Foucault, que era gay e frequentador assíduo, em São Francisco, de backrooms sadomasoquistas; ou em Guillaume Dustan (1965-2005), na sua trilogia auto-pornográfica, onde o autor francês exibe cruamente a sua sexualidade quotidiana na Paris das décadas de 1980 e 1990 (Dans ma chambre, romance de 1996), a noite gay parisiense marginal (Je sors ce soir, 1997) e o sadomasoquismo (Plus fort que moi, diário íntimo de 1998).
Para autores como Paul Preciado, Guy Hocquenghem, Paco Vidarte, Valesca Popuzuda, Javier Sáenz ou Sejo Carrascosa, o simples facto de se mencionar o ânus constitui, em si mesmo, um desafio aos aparelhos ideológicos do Estado e do mercado.
Nesse sentido, é preciso pensar no ânus como uma ferramenta de emancipação, como uma forma de violar um lugar destinado a tabus, enfiando um dedo no cu do capitalismo (Linn da Quebrada e Mulher Pepita).
Como Foucault não se cansou de demonstrar, impor limites ao corpo, delimitando as suas zonas perigosas, que não podem ser ultrapassadas, foi uma das mais poderosas armas de ingerência dos Estados na subjetividade e nos modos de vida dos indivíduos.
Foi no domínio do ânus que se começou por estabelecer uma separação entre o que é vergonhoso e o que é conveniente, que se operou uma distinção entre o que é honroso e o que é desonroso, numa tentativa de anular a certeza das zonas indecisas.
Sem dúvida, a partir dos séculos XVI-XVII, o ânus tornou-se um lugar de medo, de desprezo e de nojo. E, consequentemente, um tema indelicado, inapropriado, transgressor.
Por conseguinte, nomear o ânus é nomear uma coisa silenciada, não-citada, incessantemente remetida ao esquecimento e ao não-questionamento. É desafiar a territorialização do ânus como espaço de interdito nos discursos, como lugar de não-fala, afrontando a moral dominante e as políticas de vigilância de tudo aquilo que tenha que ver com o ânus.
Por outro lado, o que diria Michel Foucault desta mercantilização neoliberal do ânus, na actual moda literária, constituída por obras de autores como Ottessa Moshfegh, Karl Ove Knausgaard, Gary Shteyngart, Michael Ondaatje, Anatole Broyard, Robert Stone ou Sheila Heti?
É verdade que podemos e devemos falar livremente dos verdadeiros temas do nosso tempo, aqueles que são profundamente reveladores do mundo social. Mas a questão, aqui, está no modo algo esquemático como se abordam tais assuntos, a começar por uma excessiva e não menos entorpecente textura psicanalítica sem atenção ao social como processo histórico.
A minha segunda observação refere-se às ligações entre ânus, sexualidade e política.
No final do século XVIII, já o Marquês de Sade, em Filosofia na Alcova, questionava o modelo clássico da cópula pénis-vagina, defendendo que o lugar natural do pénis é no ânus. Segundo esta leitura política do prazer anal, "levar no cu" é uma prática que liberta a mulher da pesada carga da procriação, por não se tratar de uma técnica reprodutiva.
No século XX, Georges Bataille via no ânus um dispositivo de construção de algo palpável, que acrescenta materialidade ao ser humano: é real tudo o que pesa, é real tudo o que pode ser avaliado pelo peso que carregamos no nosso interior. Para ele, a matéria fecal é aquilo que permite um regresso orgânico à nossa animalidade, porque a merda é real em nós.
Dentro da mesma ordem de ideias, Antonin Artaud dizia: "Onde cheirar a merda, cheira a ser. O homem podia muito bem deixar de cagar, deixar de abrir a bolsa anal, mas preferiu cagar como poderia ter preferido viver em vez de consentir em viver morto. É que para não fazer cocó teria de aceder a não ser, mas ele é que não foi capaz de se resolver a perder o ser, isto é, a morrer vivo. Existe no ser algo particularmente tentador para o homem, algo que vem a ser justamente O COCÓ" (excerto de "A Procura da Fecalidade", incluído em Para Acabar de Vez com o Juízo de Deus, seguido de O Teatro da Crueldade", tradução de Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes, edições VS).
O ânus como elemento do prazer sexual remete para a produção de um prazer inútil ou estéril, sem função reprodutora. Pois o ânus, como centro de produção de prazer, não possui género exclusivo, não é masculino nem feminino, não é cisgénero nem não-binário, é um orgão comum a todos.
Privilegiar o ânus sobre o pénis e sobre a vagina tende a eliminar as fronteiras de género, a produzir um curto-circuito na hierarquia da sexualidade heteronormativa e a questionar a dicotomia "heterossexuais e homossexuais", já que tanto uns como outros se penetram no ânus. Daí que este não nos remeta necessariamente para as formas de desejo homossexual.
O gesto de valorizar o ânus como objecto teórico, filosófico e político, justamente, visa confrontar a linguagem hegemónica, o silêncio construído dentro das instituições culturais e da produção do saber.
Mas o ânus não é apenas um lugar que se presta a ser furado, não serve apenas para ser penetrado. Contrariamente à ideia de que se trata de um órgão passivo, penetrado, receptor do pénis (ou de um dildo, um dedo, etc.), o ânus pode desempenhar também um papel activo e penetrador: fazer merda é uma forma de foder o mundo exterior, reporta-nos à sensação de penetrar o real, de fornicar a realidade envolvente.
A complacente voluptuosidade com que se faz merda serve igualmente para anular a oposição "voyeurismo e exibicionismo". Porque, enfim, nem o exibicionismo puro nem o voyeurismo puro existem. Todo o exibicionista é um voyeurista e todo o voyeurista é um exibicionista (o exibicionismo nunca é primário, é um voyeurismo virado contra si, e vice-versa).
Contra os que defendem a reprivatização e a castração do ânus, impondo o pénis e a vagina como significantes despóticos; contra os que acham que o ânus deve permanecer completamente fechado, privatizado, codificado e domesticado; e contra os que pretendem vigiar os fluxos do corpo humano, temos de falar abertamente do ânus, legitimando a sua presença no espaço público.
Termino com Paul B. Preciado: "É necessário filosofar não a golpes de martelo [referência à frase "A filosofia a golpes de martelo", subtítulo da obra de Nietzsche O Crepúsculo dos Ídolos], mas sim de dildos. Já não se trata de romper os tímpanos, mas de abrir o ânus". Ou, como sugere Javier Sáenz, "abre o teu ânus e a tua mente abrir-se-á".
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