Depois de várias cidades, de Talin a Kansas City, tornarem o transporte público grátis, é a vez de um país, o Luxemburgo. Quais as vantagens e desvantagens desta política? É o preço um fator fundamental para que se dê a mudança do paradigma automóvel para o do transporte público?
Este sábado é o primeiro dia do resto da vida do Luxemburgo - pelo menos enquanto a nova política de transportes públicos gratuitos se mantiver, naquela que é uma estreia a nível mundial, a do primeiro país a pô-la em prática.
O objetivo expresso pelo governo é atrair mais passageiros e diminuir a utilização do carro, que de acordo com um inquérito de 2018 corresponde a 47% das deslocações para o trabalho e 71% das de tempos livres. Já os autocarros seriam usados apenas em 32% das deslocações de trabalho, percentagem que desce para 19% no caso do comboio.
Especialmente em causa nesta nova política estarão os congestionamentos de tráfego na cidade do Luxemburgo, capital do país, que como Lisboa tem pouco mais de 100 mil habitantes mas recebe diariamente 400 mil pessoas para ali trabalhar. Em 2016, um estudo estimava em 33 horas o tempo que os condutores ali passaram em engarrafamentos naquele ano.
A medida já foi tomada em algumas cidades - da capital da Estónia, Talin, a Kansas City, a capital do estado americano do Missouri - mas nunca num país. Se bem que, como frisa José Manuel Viegas, ex secretário-geral do Fórum Internacional dos Transportes da OCDE e professor catedrático do Instituto Superior Técnico, "é um país do tamanho de uma cidade."
De facto, o Luxemburgo tem cerca de 600 mil habitantes e 2586 quilómetros quadrados. E, não despiciendo, um dos mais altos PIB per capita do mundo e um ordenado mínimo de mais de 2000 euros. O valor pago pelos bilhetes já só correspondia a 8% do valor gasto com as operações de transporte público, correspondendo a 41 milhões dos 500 milhões anuais. Agora, será o Estado a suportar os 100%.
José Manuel Viegas tem dúvidas de que a gratuidade, que terá como únicas exceções as viagens em primeira classe em comboio e algumas carreiras de autocarro noturnas, resulte no abandono do transporte individual - sobretudo tendo em conta que o preço já era muito barato. "Tendo em conta que a percentagem dos gastos coberta era já muito baixa, até pode ser que se ganhe dinheiro com a inexistência de bilhetes e de controlos. Mas as pessoas acima de um determinado nível de rendimento, e o nível de rendimento no país é bastante alto, não mudam para o transporte público por ser barato ou grátis mas apenas se apresentar vantagens. Se queremos tirar as pessoas dos automóveis temos que lhes oferecer bons transportes públicos, eficientes, rápidos, com boa cobertura."
100 cidades com transportes grátis
Haverá hoje no mundo, no entanto, cerca de 100 cidades que oferecem transportes públicos grátis, 23 das quais em França. A maior é Dunquerque, com 257 mil habitantes e um sistema de autocarros grátis cuja utilização aumentou 60% nos dias de trabalho e 100% nos fins de semana. 48% dizem que deixam os carros em caso e 5% venderam o seu.
Wojcieh Keblowshi, um especialista em transportes da Universidade Livre de Bruxelas, comentando as medidas anunciadas para a cidade de Paris - que a partir de setembro de 2019 tem viagens grátis no metro e autocarro para menores de 11 (incluindo estrangeiros) e para deficientes com menos de 20 anos, assim como um desconto de 50% para estudantes -, chama a atenção para o facto de que "a utilização pelos grupos vulneráveis, como os desempregados, os idosos e os jovens que não são classe media aumenta muito quando o preço é zero. A cidade fica muito mais acessível para eles. Podem procurar emprego e frequentar atividades culturais, etc. Essa vantagem é especialmente notória no contexto francês."
Mas a tendência não é exclusivamente europeia: além de Kansas City (488 mil habitantes), que anunciou em 2019 um sistema de autocarros grátis, Olympia, capital do estado de Washington, com cerca de 51 mil habitantes, vai fazer o mesmo, e Lawrence, no Massachusetts, com 80 mil, começou em setembro um programa piloto de autocarros grátis. Este último caso, tal como o de Dunquerque, parece ter resultado num aumento de frequência: a cidade diz ter mais 24% de passageiros.
"Se o objetivo é maximizar o uso, eliminar o custo para o utilizador é uma estratégia bastante ineficaz. E como é também cara, talvez não deva ser a primeira em que se deve pensar."
Até uma das grandes cidades dos EUA, Boston, capital do Massachusetts, com 685 mil habitantes, está a ponderar entrar na onda. O valor dos bilhetes pagos pelos utilizadores ultrapassa 100 milhões de dólares, o que está a ser encarado como um obstáculo, mas há quem argumente que o sistema de pagamento e bilhética custa 36 milhões e o resto seria facilmente pago pelo aumento da taxa de combustível da cidade em 2%. Uma ideia defendida pelo jornal Boston Globe num editorial do primeiro dia do ano cujo título clama: "Em Boston, vamos tornar os autocarros grátis."
Há no entanto quem torça o nariz. Por exemplo a Associação de Utilizadores de Transportes Públicos do estado australiano de Victoria, que num artigo com o título "Mito: Tornar os Transportes Públicos Grátis Encoraja a Sua Utilização e o Apoio Político", chama a atenção para o facto de os economistas considerarem que existe para os transportes públicos uma baixa elasticidade da procura com base no preço.
O que isso quer dizer é que, prossegue o artigo, se tudo permanece igual, uma descida de 10% no preço do transporte não causa um aumento de 10% na utilização. Assim, conclui, "se o objetivo é maximizar o uso, eliminar o custo para o utilizador é uma estratégia bastante ineficaz. E como é também cara, talvez não deva ser a primeira em que se deve pensar."
Melhor transporte público poupa vidas e aumenta resiliência económica
Em contrapartida, propõe a associação, que tal aplicar os mil milhões (de dólares australianos, ou seja, 590 milhões de euros) que custaria abolir as tarifas na cidade de Melbourne, capital do estado de Victoria, com quase cinco milhões de habitantes, em mais e melhor transporte público? Isso sim, conclui, iria aumentar o número de utilizadores, e porque mais passageiros significa maior entrada de dinheiro, permitiria melhorar ainda mais a oferta.
Certo é que os sistemas de transportes públicos que se pagam com o preço de bilhetes e passes se contam pelos dedos de uma mão. São, como frisa José Manuel Viegas, casos excecionais, correspondendo, como o metro de Tóquio, a zonas densamente populadas onde não existe realmente alternativa no trânsito automóvel. Por definição, o transporte público é deficitário.
O que não significa, pelo contrário, que fazendo as contas incluindo as chamadas "externalidades positivas" não acabe por ser muito compensador em termos económicos.
Estudos económicos recentes, de 2015 e 2017, citados num muito aprofundado relatório de outubro de 2019 da organização independente canadiana Victoria Transport Policy Institute sobre Custos e Benefícios dos Transportes Públicos, indicam que cada dólar (ou euro) investido em transportes públicos resulta em mais de um dólar em benefícios económicos. Isso é mais verdade, diz o relatório, nas grandes áreas urbanas, mas também sucede nas rurais.
Entre os vários benefícios dos transportes públicos está a diminuição da sinistralidade e das mortes. De acordo com o relatório, nas 32 cidades americanas com mais de meio milhão de habitantes a correlação negativa entre a utilização de transportes públicos e as taxas de mortalidade rodoviária é muito forte. Em quase todas as cidades grandes com menos de 30 viagens por ano, per capita, em transportes públicos há mais de seis mortes em acidentes rodoviários por 100 mil residentes, e em quase todas as que apresentam mais de 50 viagens por ano per capita em transportes públicos o número de mortes é menor.
Num estudo de 2014 (Stimpson et al), a análise de dados de 100 cidades americanas relativos a mais de 29 anos, e tendo em conta variados fatores geográficos e económicos, levou a concluir que cada aumento de 10% na fatia de utilização de transportes públicos no total das viagens está associada uma redução de 1.5% nas mortes devidas a acidentes rodoviários. E um estudo de 2012 (Lalive, Luechinger and Schmutzler) sobre utilização de transporte ferroviário apurou que aumentar a frequência do serviço em 10% reduzia o uso de carros e motos em quase 3%, e os acidentes na estrada em 4.6%.
Outro dos benefícios é naturalmente o da redução da emissão de gases poluentes que contribuem para as alterações climáticas. Estudos de 2008 e 2010 relativos ao Canadá apontam para que, diminuindo a utilização de automóvel, os engarrafamentos e melhorando os padrões de uso do solo, os transportes públicos reduzem em cerca de 37 milhões de toneladas as emissões anuais de CO2.
Mas talvez uma das descobertas mais interessantes seja a de três estudos diferentes (Gilderbloom, Riggs e Meares em 2015, Lee e Li em 2017 e Welch, Gehrke and Farber em 2018) que, segundo o relatório citado, indicam que os lares nas zonas bem servidas por transportes públicos têm mais baixas taxas de incumprimento nas hipotecas, indicando maior resiliência financeira. O que parece fundamentar a ideia de que, ao melhorar as opções de mobilidade para os que partem de desvantagens físicas, económicas e sociais, transportes públicos de qualidade tendem a melhorar as oportunidades económicas (acesso a educação, emprego, bens de consumo e serviços essenciais) e portanto a dita resiliência.
Sem comentários:
Enviar um comentário
1) Identifique-se com o seu verdadeiro nome e sem abreviaturas.
2) Seja respeitoso e cordial, ainda que crítico.
3) São bem-vindas objecções, correcções factuais, contra-exemplos e discordâncias.