Leonhard era músico, tendo começado cedo a operar a
transição para o mundo digital. Foi nesse processo que lançou as bases do seu
actual trabalho dedicado ao futuro, dividido entre a consultoria e a divulgação
científica, mas sempre preocupado com a dimensão ética da evolução. A obra
Tecnologia Versus Humanidade (editora Gradiva) está traduzido em português
desde o ano passado e é o resumo do seu pensamento estrutural: que é preciso
fazer escolhas no caminho tecnológico que estamos a construir e que as opções
são necessárias para que o futuro mantenha uma dimensão humana.
O trabalho que produz vem na sequência do pensamento de
outros autores, que têm alertado para a necessidade de preservar o elemento
humano na construção da sociedade digital. E é neste conceito que Leonhard está
bem acompanhado, graças às declarações que cientistas como Stephen Hawking e
empreendedores como Elon Musk têm repetido nos últimos anos. Mas a verdade é
que esse discurso surge por contraponto a uma visão libertária que considera
que a tecnologia vai superar todas as limitações da humanidade e que a fusão do
homem com a máquina é o último passo da evolução da espécie — a chamada
singularidade.
Essa possibilidade é real. Aliás, uma das frases mais
conhecidas de Gerd Leonhard confirma que o mundo vai mudar mais nos próximos 20
anos do que nos últimos 300, confirmando que o ritmo das mudanças tecnológicas
está a acelerar. E apresenta como símbolos maiores dessas mudanças a
inteligência artificial e a edição do genoma. Comecemos pelos computadores: “As
máquinas estão realmente a aprender, é aquilo a que se chama aprendizagem
automática. Em dez anos, aproximadamente, as máquinas vão ter capacidades
ilimitadas e vão conseguir fazer tudo o que lhes seja pedido, porque teremos
computação quântica, computação 3D, redes móveis muito rápidas (5G) e a Internet
das Coisas.” Depois temos a edição do genoma humano: “Após sequenciarmos o
genoma de todas as pessoas, teremos aproximadamente cinco milhares de milhões
de genomas, o que significa que poderemos investigar a função de cada gene. Ou
seja, em dez segundos podemos analisar os problemas de cada pessoa e trabalhar
clinicamente para prevenir e curar doenças.”
O culto da eficiência
Este é o lado positivo da evolução tecnológica. O negativo,
para o qual Gerd tem alertado da mesma forma, prende-se com o culto absoluto da
eficiência, que reduz o valor da humanidade. E isso manifesta-se em opções que
eliminam o elemento humano da equação a favor da proclamada eficiência, como se
tem visto em algoritmos que visam ser mais transparentes mas que confirmam
preconceitos e que não são capazes de reconhecer traços de humanidade
individuais — casos destes têm-se repetido, por exemplo, no sistema judicial e
em mecanismos de avaliação de concessão de benefícios sociais nos Estados
Unidos, em que o resultado tem sido o regresso aos modelos originais de
intervenção humana. “Eu digo sempre que a eficiência é o oposto da humanidade.
A eficiência é algo económico, serve para tornar um processo menos dispendioso
e mais rápido — que pode ser eficiente para apanhar lixo mas se torna grave
quando estamos a discutir questões relacionadas com o ser humano. Alguém
vai procurar trabalhar na eficiência de
uma relação afectiva, reduzindo uma relação de dois anos a uma de duas
semanas?”
E é para prevenir estes “excessos” que entra a necessidade
de regulação no processo de evolução: “Precisamos de regular o uso da
tecnologia para eliminar os aspectos negativos. Recorremos à regulação e às
leis para determinar o impacto de todas as indústrias, regulamentando as
consequências negativas, mas não o fazemos quanto à tecnologia.” Uma resposta
possível ao porquê de não o fazermos prender-se-á com o sucesso de marketing do
discurso dos líderes da tecnologia como Mark Zuckerberg, que dissimulam os
propósitos financeiros das suas empresas com vacuidades como “aproximar o
mundo” ou “dar uma voz a toda a gente.” E é por isso que as redes sociais são
um bom exemplo utilizado por Leonhard para se referir à necessidade de
regulação e consciência social do que se passa: “Acho que o problema é que o
Facebook é uma infra-estrutura, é a única auto-estrada de comunicação. Da mesma
forma que é impossível vivermos sem o Google, e é a isto que se chama um
cartel. Do meu ponto de vista, o Facebook é um verdadeiro cartel que tomou de
assalto o mundo tecnológico, como há uns anos aconteceu com a Microsoft. Quando
uma empresa se torna assim tão grande, é preciso desmantelá-la, o que vai
acabar por acontecer.
E esta é uma situação que se estende a outros domínios da
tecnologia. Os gigantes da inteligência artificial são empresas americanas e
chinesas. “São usadas como armas porque esta é uma questão de poder, e
precisamos de tratados de não-proliferação porque estas são as armas mais
poderosas alguma vez inventadas”. No livro Tecnologia Versus Humanidade,
escrito em 2016, o autor comparou a questão da inteligência artificial à das
armas nucleares, em que tratados internacionais regulavam a dimensão dos
arsenais e impediam que Estados-párias acedessem à tecnologia. Sabemos que o
cenário já não é o mesmo, e a inteligência artigical ou a manipulação genética
são bastante mais difíceis de controlar — pelo que o risco aqui é que só se
regule tarde de mais. Gerd Leonhard acha que isso vai acontecer: “Vamos ter um
incidente grave antes de chegar à regulação. Podemos falar sobre isto, mas a
realidade é que nada foi feito em relação às armas nucleares até serem usadas,
e depois chegámos à conclusão que foi mau e que tínhamos de evitar que voltasse
a acontecer — porque podíamos morrer todos. Relativamente à inteligência
artificial, ainda temos cerca de dez anos, porque ainda não está a esse nível,
mas vamos ter de chegar a um acordo. Vai ocorrer uma catástrofe que nos forçará
a regular estas tecnologias, tal como, por exemplo, uma Inteligência Artificial
a controlar o tráfego aéreo e 100 mil pessoas morrerem. As pessoas não
acreditavam na bomba nuclear até esta explodir.”
Para que a regulação ocorra, é preciso que o poder legislativo
esteja atento. Enquanto elogia o papel da Comissão Europeia pelo esforço no
controlo da tecnologia, Leonhard assume que a principal preocupação nos tempos
que correm tem a ver com o trabalho. Mas também isso precisa de ser revisto,
porque a relação entre a produtividade, o emprego e os salários está a ser
revista. “O que a maioria das pessoas não sabe é que nós não precisamos de
trabalhar como trabalhamos hoje se tirarmos o melhor proveito das tecnologias.
Hoje, as pessoas preocupam-se com os empregos porque não é muito bem-visto
estar desempregado. É normalmente aqui que começo por dizer que se não
compreendem o que as máquinas conseguem fazer vão acabar por ficar sem trabalho
muito rapidamente. E isto vai ter consequências”. A principal das quais é a
desigualdade, que graças à globalização se tem reduzido muito entre países mas
se tem agravado dentro de cada país. E é aí que se vai sentir a grande mudança:
“Em cinco anos não vai haver um único líder de Governo, presidente da câmara,
ou alguém com um posto importante que seja eleito sem abordar estes temas.”
A dimensão ética
Um aspecto determinante no livro e no discurso de Gerd
Leonhard é a ética da utilização da tecnologia — porque há um discurso moral
sobre a tecnologia, mas seria interessante que a discussão se voltasse a
centrar no elemento humano. “A tecnologia não é inerentemente boa ou má, ela
simplesmente existe, nós é que a criamos. E penso que o futuro vai acontecer
independentemente de nós, mas é um facto que nós fazemos o futuro, nós decidimos
o futuro. De momento, estamos preocupados com o custo ou com quem controla a
tecnologia e em dez anos só vamos perguntar: porquê? Por que é que o estamos a
fazer?”
E este olhar tem consequências também sobre o primado dos
valores a transmitir às gerações seguintes. Com a evolução das máquinas,
poderemos descurar o ensino das tarefas mecânicas e dar mais espaço aos valores
humanos: “Acho que foi Marvin Minsky, especialista em inteligência artificial,
que deu origem a este debate, dizendo que a inteligência humana também
significa que conseguimos viver não sabendo algo, encontramos outra forma de o
fazer. Como é que vamos fazer as crianças entender compaixão, empatia e
criatividade? Nada disto se aprende na escola, mas sim a viver. A visão
holística é fundamental, e a ciência é apenas uma parte dela. Isto é um grande
desafio para a comunidade científica, que tende a pensar que as respostas estão
sempre na ciência. E ainda que ache que por vezes é verdade, é preciso ter em
conta a visão holística, que será mais preponderante no futuro. Porque a
ciência não vai ter limites, vamos poder inventar tudo o que quisermos.”
É aqui que a conversa chega a uma das mais interessantes
abordagens do livro, ao repetir que “a evolução é um processo espiritual” e que
precisa de um equilíbrio que neste momento não existe. “Acho que é natural para
as pessoas procurarem atalhos porque é conveniente. Mas o pior é quando a
conveniência se torna o princípio e o fim do raciocínio. Podemos ser mais
eficientes e dar à luz numa máquina, mas será que seria humano? Temos a
tendência de substituir a consciência pela conveniência. É muito mais
importante ser convenientes do que sermos conscientes. E não interessa se são
coisas pequenas, como o Google Maps ou assim. Quando analisamos a um nível
pessoal, é desumano. O Governo tem de delimitar a fronteira entre as máquinas
que elevam a humanidade e as que não — a pergunta essencial que surgiu depois
de ter escrito o livro foi se é humanamente sustentável, e essa tem sido a
minha preocupação.”
O seu ponto de vista ético é eminentemente humanista, por
contraponto ao ideário tecnológico de Silicon Valley. Se voltarmos a colocar o
acento na humanidade, se nos concentrarmos no que é bom para o ser humano,
deixamos de encarar a maior produtividade e eficiência como fins em si mesmos e
passamos a encarar valores mais humanos como primordiais: “Para responder à
derradeira questão da tecnologia, se faz o ser humano feliz, se proporciona
mais avanços para os humanos, se cria uma sociedade melhor. E se a resposta for
não, devíamos pensar em não a utilizar ou em implementar algumas restrições.”
Fonte: Público, 30.04012
Fonte: Público, 30.04012
Concordo. Tenhamos porém a noção de que este combóio vai em andamento acelerado e que os poucos que se atreveram a carregar no botão de alarme serão tratados como passageiros indesejados.
ResponderEliminarÉ isso mesmo. Beijinhos
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