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Avanços na genética mostraram que não faz sentido falar de “raças”, já que os seres humanos compartilham 99,9% do DNA. |
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Enquanto indivíduos que fazem parte de uma sociabilidade (totalidade social), querendo ou não, somos obrigados a tomar posição perante as situações concretas vividas, ainda mais quando se é um(a) educador(a), caso da autora. Tal posicionamento reflete a determinação de classe, tenha-se ciência disso ou não. Algo a ser ressalvado. No entanto, importante alertar que um contingente significativo de indivíduos está preso a uma falsa consciência (às aparências, às sombras, como no Mito da Caverna, de Platão), às ilusões acerca da realidade, incapazes de apreender a concretude de suas próprias condições materiais de existência, acreditando fazer parte de uma classe e segmento social ao qual, em essência, não pertence.
Além de educadora, para garantir minha reprodução dependo da venda da força de trabalho (assalariamento). Logo, faço parte daqueles que são explorados, dominados e sofrem diferentes tipos de opressão, assim como ocorre com toda a classe trabalhadora, embora haja diferenciações na intensidade e nas formas de exploração, dominações e opressões devido ao lugar ocupado na divisão social-técnica-hierárquica do trabalho, além de outras particularidades relacionadas à sexo, sexualidade, cor, “raça”, “etnia”.
Descrevo-me, portanto, como trabalhadora assalariada, membro da classe que vive da venda de sua força de trabalho (física e mental) como condição de reprodução e manutenção; explorada, dominada e oprimida pelo sistema capital e suas personas; heterossexual/cisgénero, branca; consciente de que faço parte da classe trabalhadora (independente do lugar que ocupo na divisão social-técnica-hierárquica do trabalho e da remuneração obtida) e que como classe da perspectiva do trabalho tenho como tarefa revolucionária primordial contribuir na agitação, propaganda e organização da classe trabalhadora e das camadas populares para reabsorver e reassumir o poder político-social a fim de superar o modo de produção capitalista, o Estado, a propriedade privada, o valor de troca, a sociabilidade de mercado e as classes sociais (exploração, dominação e opressão de seres humanos por seres humanos), construindo e fundando um novo modo de vida e sociabilidade.
Na construção dessa organização, é preciso enfrentar as questões do nosso tempo, que repõem e atualizam aquelas que tiveram continuidade no processo histórico-social e tornam ainda mais complexa e hercúlea a organização da classe trabalhadora, cada vez mais metamorfa e metamorfoseada pelas reestruturações produtivas do sistema capital e estágios do modo de produção capitalista. É preciso enfrentar os problemas que minam a unidade e solidariedade dessa classe trabalhadora segmentada em setores, fragmentada pelas novas estratégias do capital e dividida pelas particularidades que a cega para enxergar aquilo que compõe sua universalidade e unidade comum.
O educador que se posiciona na perspectiva do trabalho e da classe trabalhadora não pode negligenciar os debates e questões candentes de seu tempo. No presente e atual conjuntura brasileira, em que discursos homofóbicos, misóginos, racistas, preconceituosos, de ódio são propagados por aquele que ocupa o cargo de presidente da República, incitando práticas de violências noticiadas pelos jornais – como o caso do menino Miguel, em Recife, morto por negligencia da patroa de diarista; o espancamento de Moise Mugenyi, na praia da Barra da Tijuca; o assassinato de Marcelo Arruda, guarda municipal e tesoureiro do PT (Partido dos Trabalhadores) em Foz do Iguaçu, para citar alguns exemplos – mais do que nunca é preciso intervir através de análises e reflexões capazes de reconstruir as mediações (e não apenas interpretações, represetanções) da realidade, conectando a objetividade dos fatos à estrutura da totalidade social, expondo as determinações reflexivas entre particularidade e universalidade, a fim de que se possa apropriar do movimento e das contradições do real, apreendê-lo e intervir de modo o mais adequado e eficiente possível, contribuindo para a criação das condições objetivas e subjetivas para superá-lo.
Assim sendo, não é por ser branca que não posso e não irei me posicionar frente às práticas racistas, às várias formas de violências infringidas contra as pessoas por questões econômico-sociais, sexistas, de sexualidade e todas as outras formas de opressão possíveis e inimagináveis. Ao contrário, como lembra Angela Davis, “numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, independente da cor de nossas peles, pois, em última instância (frise-se), o aspecto econômico-social torna-se o fator predominante, sendo mesmo capaz de artificialmente produzir “branquiamentos
[2]”, o que nos remete à sentença de Lucy Parsons:
“Há alguém tão estúpido”, perguntou Parsons em 1866, “a ponto de acreditar que essas afrontas têm […] se acumulado sobre o negro por ele ser negro?” “De forma alguma. É porque ele é pobre. É porque ele é dependente. Porque ele é mais pobre enquanto classe do que seu irmão branco nortista, escravo do salário” (DAVIS, 2016, p. 159).
Ser branco não significa ser a personificação encarnada do colonizador, já que a brancura do branco se define por sua classe (trabalhadora ou capitalista), condição de classe (hierarquicamente falando) e por sua origem geográfica (europeia ou não). “Lugar de fala”, como esclarece Guilherme Terreri/Rita Von Hunty (“Lugar de fala e a confusão que se faz” …, Tempero Drag, dezembro 2021), não é um dado proibitivo do discurso, mas sim um dado analítico, evidenciando de onde ele vem, e não aquele discurso que pode ou não ser dito. Nenhuma fala é neutra, carregando consigo classe, sexo, sexualidade, “raça”, cor, etc. É importante que ao ouvir alguém se pronunciando perguntemos “quem” está falando, de “qual lugar”, identificando as origens de quem fala. Também é necessário precisar se se fala a partir da episteme (teoria do conhecimento, conhecimento científico, partindo de um método de análise, reflexão e proposição), da sophia (vivência, experiência) ou da doxa (senso comum, crença, opinião). Se por “lugar de fala” é entendido que só fala quem viveu e experimentou, não há espaço para a episteme e se fica apenas na sophia alimentando a doxa, o que empobrece e prejudica a apreensão do problema em suas múltiplas determinações e concretude.
É por isso que mesmo sendo branca discorrerei sobre “raça” e “cor”, porque, ainda que não fale pela sophia, como educadora estarei embasada na episteme como forma de desconstruir a doxa historicamente fabricada, criando conceitos que até hoje guiam as pessoas em sua forma de pensar, agir e interagir com os outros, demonstrando que tal discussão não é apenas acadêmica, mas essencial para transformar nossas práticas (a mudança começa pela mudança daquele que vê), uma vez que a linguagem tende a preestruturar o pensar e o agir. O significado de uma palavra ou expressão “é o que ela faz, ou seja, o efeito que ela produz em seus ouvintes… Um nome pode determinar a natureza da resposta que lhe é dada em virtude das associações que o uso desse nome evoca” (Keith Baird, jovem especialista afro-americano do Conselho de Educação de Nova York. In: Revista Ebony 23, p. 46 a 54, novembro de 1967. Disponível em: Quilombohoje).
Embora seja a existência quem determina a consciência, na dialética entre o real (a prática social) e o pensamento abstrato, faz-se a apropriação do movimento contraditório da realidade pelo concreto pensado, que ao nomear o mundo, conceituando-o e categorizando-o, permite a intelecção de sua objetividade pelos sujeitos, que passam a comunica-lo para os demais, alterando e transformando o modo de pensar, ser e interagir das pessoas entre si e com o mundo. Logo, a existência, ponto de partida é desvendada no ponto de chegada pelo trabalho da reflexão crítica que busca retotalizar as mediações que perfazem as relações entre os objetos, apreendendo como se efetiva sua objetividade.
Uma outra forma de sociabilidade necessita de indivíduos que se norteiem por outros valores, criados em contraposição àquilo que é (o real), capacitando-os e criando as condições para que direcionem suas ações ao que deve ser.
Sobre “raça”…
Alguns autores relacionam o aparecimento da raça com a escravidão moderna (acumulação primitiva de capitais e sistema colonial). Entrementes, na Antiguidade Clássica, egípcios, sumérios, babilônios, assírios, hindus, persas, hebreus, cretenses, fenícios, gregos, macedônios e romanos tinham em comum o trabalho escravo. Uma das diferenças significativas entre o “escravismo patriarcal” (MAESTRI, 1994) da Antiguidade Clássica para o “escravismo moderno” da acumulação capitalista é que o primeiro não fazia distinção de cor ou fenotípica, como passa a ocorrer nas Américas e Antilhas com a escravidão colonial.
Consoante Peter Wade (2017, p. 49), o termo raça surge entre os séculos XIII e XVII no contexto europeu. Nesse período, fazia menção à religião, ao comportamento e ao meio ambiente, já que eram os critérios mais relevantes à época para conceituar a diversidade humana. Ainda segundo o autor, embora a etimologia da palavra seja incerta, há registro de seu uso no século XIV em Itália e Espanha, sendo empregada para discernir estirpe e linhagem de cavalos e vacas. O vocábulo só será utilizado na língua inglesa no século XVI.
Até o século XVIII o termo “raça” codificava um racismo religioso (judeus, muçulmanos e cristãos), de pureza/limpeza (exclusão de pessoas judias e muçulmanas) de sangue, cuja importância atinge seus píncaros no século XVII e pelas determinações do meio ambiente (determinismo geográfico), provocando alterações no biofísico. Uma noção de raça mais próxima ao que conhecemos se estabelece na segunda metade do século XVIII e se formaliza no decorrer do século XIX e início do XX.
A biologia e a antropologia serão as áreas da ciência da natureza que irão contribuir para a constituição da ideia de raça no século XIX, criando as condições para o desenvolvimento do “racismo científico” e do determinismo racial.
A partir desses fatos históricos é possível induzir (e não deduzir) que a distinção, superioridade/inferioridade, discriminação, preconceitos e a culminância desse processo com a estruturação de uma organização social (a sociabilidade capitalista, moderna) baseada na ideia de superioridade racial advém de tempos remotos, originado na dominação do ser humano por outro ser humano, quando aqueles que são vencidos nas guerras tornam-se escravos dos vencedores, ou no momento em que um ser humano é escravizado por outro devido à dívidas, ou então, ao perder os instrumentos e meios de produção, que passam a ser concentrados e centralizados por poucos, reduzindo o indivíduo a servo daqueles que detêm tais instrumentos e meios (servidão) ou vendedor de sua força de trabalho física e/ou mental (tornando-se mercadoria) em troca de salário para poder obter os meios necessários à sua própria reprodução enquanto força de trabalho.
Isso demonstra que as desigualdades entre os seres humanos aparecerem concomitante às condições (propriedade privada, vencedores e vencidos, endividados, etc.) que proporcionam a dominação, exploração e as variadas formas de opressão de uns sobre todos(as) os(as) outros(as). O fato dessa dominação, exploração e opressão tornar-se uma escravidão racializada e embasada na cor da pele e nos traços fenotípicos é historicamente determinada pelo processo de acumulação primitiva de capitais iniciada pelos países europeus e o avanço expansionista de sua dominação pela colonização dos demais continentes, colocando-se como referência e modelo de civilização e humanidade, um falso universal em relação a todas as particularidades, legitimando-as ou classificando-as como não pertencentes àquilo que se entende por “humano”.
Entrementes, toda a ideologia pseudocientífica das “raças” humanas é desvelada e se desfaz quando retomamos, historicamente, o modo como se deu o povoamento do que hoje conhecemos como os continentes do planeta Terra. (Re)descobre-se o que de fato une a todos os seres humanos, que é o gênero, o “homo”, o verdadeiro universal, e a grande ironia histórica de que o continente africano engendra, enquanto protoforma, nosso DNA, nossa ancestralidade e nosso género. Daí a importância de conhecer e se apropriar da história como condição para destruir as ideologias e ficções criadas por aqueles que dominam e produzem o conhecimento científico, que não é A teoria da Pangeia (era Paleozoica, cerca de 200 milhões de anos) e do povoamento da Terra é uma comprovação científica de que cada representante da espécie humana é membro do gênero humano. Os continentes estavam unidos num único bloco (pangeia). O movimento das placas tectônicas – milhões de milhares de anos (descoberta da década de 1960, pelo geólogo canadense John Tuzo Wilson, conhecida como Teoria da Tectônica de Placas) – contribuiu para a configuração continental atual. Os continentes e oceanos ficam sob esses blocos rochosos rígidos em movimento (Deriva Continental, teoria de Alfred Wegner, meteorologista alemão, de 1915). Descobriu-se que na primeira movimentação, a pangeia dividiu-se em duas partes: Laurásia (continentes que correspondem ao hemisfério norte) e Gondwana (continentes do hemisfério sul), porém, posteriormente, com as respectivas movimentações, há cerca de 65 milhões de anos esses dois blocos continentais começaram a se dividir e foram se separando, até formar a configuração atual dos continentes.
Do coração da África, a cerca de 1 milhão de anos, os grupos de Homo Habilis começam a explorar outros territórios, como a Ásia e a Europa, embora uma migração de proporção significativa tenha sido datada há 80 mil anos. Deve-se considerar que o processo de separação dos continentes foi lenta e gradual, sendo a distância entre eles, inicialmente, pequena, permitindo as migrações desses grupos de hominídeos por toda a terra. A datação desse povoamento da Terra pelos seres humanos é feita através dos fósseis encontrados nos diferentes continentes, além de semelhanças geológicas, climáticas, de biomas, etc.. Mais recentemente, com o avanço das ciências naturais, também foram dadas contribuições pela genética via decifração do DNA. Mediante a análise do estudo de três cientistas geneticistas – David Reich, Eske Willerslev e Mait Metspalu – foi possível inferir que uma grande migração, acontecida entre 80 mil e 50 mil anos, levou ao povoamento de todo o mundo.
Com base nesses dados é possível sentenciar que todo indivíduo, todo ser humano é única e universalmente membro do género humano (homo = género / sapiens = espécie), como também comprovam os estudos encomendados pela UNESCO a eminentes cientistas das ciências da natureza entre os anos 1950 e 1960 (pós II Guerra Mundial e a tragédia do nazismo alemão, pautado na pseudoteoria racial e na eugenia da raça ariana), donde se concluiu que “as diferenças entre os grupos humanos não são determinadas geneticamente e as evoluções sociais e culturais são independentes das constituições inatas” (CAMPOS. “Não existe raça, mas racismo”. Escola Brasileira de Psicanálise – EBP, s/d).
Reiterando os resultados obtidos pelos cientistas convocados pela UNESCO, em 1972, nos Estados Unidos, na Universidade de Harvard, foram realizados testes genéticos e moleculares analisando proteínas no sangue de diferentes populações.
Os resultados não mostraram diferenças significativas do ponto de vista molecular para separar as raças humanas. Estudos subsequentes ajudaram a verificar que a sequência base (as unidades que compõem a informação genética) no DNA humano é 99,9% idêntica, o que esvaziou completamente o argumento de encontrar um parâmetro confiável para definir raças. Esses dados foram importantes para apoiar a igualdade dos seres humanos do ponto de vista científico, imparcial e rigoroso (BOVE. “Racismo: como a ciência desmantelou a teoria de que existem diferentes raças humanas”. BBC, 12 de julho de 2020).
É lícito ressalvar a parte final da sentença: “igualdade dos seres humanos do ponto de vista científico, imparcial e rigoroso”. Geneticamente, os seres humanos são a espécie mais uniforme do planeta. Como diz Lessa (1996, p. 91), apoiado em Lukács: