«Tudo é mau nos resultados eleitorais dos EUA. Acontece. Já não é a primeira vez na história que demagogos, populistas, protoditadores ganham eleições e, sem excepção, os efeitos são sempre maus. Não são maus para toda a gente, nem são maus para tudo, mas no geral são maus, em primeiro lugar, para a democracia, depois, dependendo do país, são maus para outros países ou para o mundo. No caso de Trump, são maus para quase tudo, a não ser para a direita radical em todo o mundo e para a Rússia porque, como se vê, eles são “estranhos companheiros de cama”, para não dizer em inglês.
Como quem me lê sabe, não foram uma surpresa estes resultados e a preocupação com a possibilidade e depois com a sua concretização. Estando a escrever dos EUA, em plena Trumplândia, e tendo tido já várias discussões com votantes no Trump, lendo a propaganda republicana, ouvindo as rádios como a Patriot Radio, tenho uma noção do que levou Trump ao poder. Percebe-se muito bem como os MAGA e Trump ganharam primeiro a guerra cultural, depois a guerra política, por esta ordem. A esquerda que anda há mais de uma década convencida das suas “causas fracturantes”, que nos EUA tem consequências práticas, muito mais absurdas do que na Europa, acantonou-se nas elites e perdeu as suas bases sociais, a começar pelos sindicatos. Se lessem Marx, perceberiam que trocar “bases sociais” por “bases intelectuais” é derrota certa. Não é razão única, mas foi a fundação em que todo o resto se construiu: medos, ódio ao “outro”, identidade construída contra o “outro”, radicalidade grupal, substituição da ciência e do saber por fake news e teorias conspirativas, ignorância agressiva, discurso violento nas redes sociais que são excelentes para isso, dissolução de muitos mecanismos que são fundamentais para haver democracia. Não é um anátema contra os votantes de Trump, mas é isso mesmo que os “faz”.
Eu não me irrito com muita coisa, mas a minimização do Trump, antes e depois das eleições, sob várias formas e feitios, deixa-me “balístico” e a cantar o hino nacional como se fazia antes do 25 de Abril, com uma subida do tom de voz numa certa parte da letra. A Marselhesa também serve. E a Constituição americana também.
Não tenham ilusões: há muita gente em Portugal, no processo de radicalização à direita dos últimos anos, que está feliz com a vitória de Trump, e não é só o Chega. Estão felizes com a derrota dos “outros”, os socialistas, os bloquistas, os centristas, os do “sistema”, e essa felicidade transparece por todo o lado.
Sem dúvida que é necessária análise no comentário e na academia sobre as “razões” do que se passou, até porque há muita coisa nova no movimento MAGA e nas razões do seu crescimento e no papel carismático de Trump. Mas para quem sabe o que é a fragilidade da democracia, há um combate político imediato a travar. Nós não estamos nos anos 30, mas também estamos nos anos 30.
Por tudo isto, deve denunciar-se a minimização em curso do que se passou, e as suas várias formas – uma delas é só falar dos malefícios e asneiras dos democratas em tom de fúria, muito trumpista, aliás, para evitar falar dos desmandos de Trump; outra é dizer que não se deve tomar à letra o que ele diz, que hoje tem uma equipa e um programa (um susto de equipa e o programa é o do Project 2025), que não vai fazer o que disse que ia fazer (esquecendo que ele é um narcisista patológico e, pelo menos, vai tentar, deixando um rastro de estragos pelo caminho), que não vai entregar a Ucrânia a Putin, que não vai aprovar taxas aduaneiras retaliatórias, que não se vai vingar (vai, vai) dos seus opositores, e que não vai fazer nada do que prometeu no “primeiro dia” em que quer ser “ditador”. Esquecem-se de que Trump é um criminoso que se vai perdoar a si próprio e aos assaltantes condenados do 6 de Janeiro, e que não há hoje para um homem como Trump quaisquer “checks and balances”, com uma interpretação absoluta do poder presidencial, tendo na mão o Supremo Tribunal, o Senado e talvez a Câmara dos Representantes.
Deixei para o fim a questão, que presumo alguns vão logo fazer depois de lerem o primeiro parágrafo deste artigo: "E, então, a pujança da democracia americana, o valor do voto popular, a escolha inequívoca dos americanos?" É que há um pequeno problema, o mesmo com que faz que seja uma asneira dizer que Hitler subiu ao poder democraticamente: é que a democracia não é apenas a vontade popular expressa no voto, é o primado da lei, o valor dos procedimentos constitucionais, o respeito pelos limites e separação dos poderes. Democracia apenas com o voto, sem a lei, é demagogia e a demagogia é o terreno ideal para os ditadores. Esperem por seis meses de Trump e voltamos aqui.»
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