«A tragédia não foi maior porque estamos, no que toca ao combate aos fogos, melhores do que em 2017, quando houve um sobressalto nacional que permitiu que algumas medidas, muito menos do que as necessárias, avançassem. Apesar do que melhorou nos últimos anos, continuamos a ver falhas inaceitáveis, bem evidentes em tantos vídeos de pessoas a atravessar o fogo em estadas fundamentais e autoestradas. Não se repetiram algumas desgraças de 2017 por milagre. A comunicação preventiva à população também foi muito fraca, apesar dos avisos prévios, com dias, do IPMA e da Proteção Civil.
Estes fogos não chegaram a ser um tema propriamente político. De tal forma, que o governo se deu ao luxo de fazer um briefing do Conselho de Ministros sem direito a perguntas – um estilo que parece agradar a uma comunicação social anestesiada por um dever de “estado de graça” – e a ministra da Administração Interna desapareceu. Ao contrário do que vimos em 2017, a cobertura do Presidente foi total, ao ponto de ter presidido a um Conselho de Ministros, coisa que costuma ser reservada a momentos meramente simbólicos.
Talvez a ausência de aproveitamento político, no meio dos fogos, deva ser o normal. Mas ela só não se repete porque o ambiente político é muito diferente do dos quatro anos da “geringonça”, em que tivemos uma oposição de uma agressividade poucas vezes vista na nossa democracia constitucional. Que contrasta, aliás, com as exigências de moderação e sensatez que os seus principais atores fazem ao Partido Socialista.
Do abandono ao eucalipto
Voltando ao que interessa, o que ficou por fazer nestes anos é o essencial: a gestão florestal. Somos um país com grande parte do território abandonado e envelhecido, onde não é possível cuidar da floresta, dar-lhe rendimento e garantir a prevenção. Onde pessoas que detêm pequenas parcelas de terra vivem no local e outras não, sabem que as têm e outras não. Onde o Estado quase não tem floresta e a que tem é mal gerida. Onde não há ordenamento território e, portanto, não há ordenamento florestal. E a floresta, como é hoje gerida, não garante financiamento à sua preservação e à gestão de combustíveis finos.
Para além do minifúndio e da ausência de gestão florestal, sobra o eucalipto por todo o lado. Uma árvore que não fazia parte da nossa tradição e clima é hoje a prevalecente. A área plantada de eucalipto é superior à de todos os outros países europeus juntos. 81% da área reflorestada depois de 2017, ano em que se disse que iríamos ter de aprender com os erros, são desta espécie. Se fizermos a justaposição dos mapas dos incêndios destes dois dias e da área de eucaliptal veremos uma coincidência quase absoluta.
É verdade que os eucaliptos são dos produtos economicamente mais sustentáveis na nossa floresta. Mas também são dos piores para incêndios. Com ventos 30 quilómetros hora, as folhas incineradas desta árvore são autênticas bolas de fogo que atravessam autoestradas e causam novas ignições e novas frentes.
Aparentemente, ainda não chega. O CEO da Navigator, António Redondo, defendeu, há muito pouco tempo, o aumento da área para a plantação de eucalipto em Portugal, de forma a garantir a sustentabilidade da empresa. Tratou-se de uma crítica às alterações à lei que tinha liberalizado a plantação de eucaliptos. Lei que fora da autoria do ex-secretário de Estado das Florestas, Francisco Gomes da Silva, que posteriormente se tornou diretor-geral da CELPA, que reúne os gigantes das celuloses em Portugal.
As alterações climáticas são agora
Nos cursos mediáticos intensivos destes períodos – e sobre fogos temos tido, infelizmente, muitas oportunidades para os frequentar –, aprendemos a regra dos três 30: temperatura superior a 30º, humidade inferior a 30% e vento superior a 30km/hora, a que podemos acrescentar 30 dias sem chover, é receita para o desastre. E a verdade é que esta combinação atingiu, em várias regiões do país, o primeiro lugar desde 2001. Não é preciso muito para verificar os efeitos das alterações climáticas. Um relatório conjunto da Organização Meteorológica Mundial e do Serviço de Alterações Climáticas da União Europeia concluiu que o verão de 2023 foi o mais quente de que há registo na Europa. O centro da Europa está a viver das cheias mais brutais deste século. Uma semana antes, tivemos cheias dignas das monções no deserto do Sahara.
A Europa aqueceu mais rapidamente do que qualquer outra região nos últimos 30 anos. O relatório mostra que as temperaturas aumentaram, no continente, mais do dobro da média global nos últimos 30 anos – a um ritmo de cerca de 0,5 graus celsius por década. Pior: o que está a conduzir essa subida é o sul, como se percebe pela falta de água que se pode tornar comum no Algarve ou o anunciado fim da pastorícia na Sicília.
Como já escrevi várias vezes, nada disto é uma herança que deixaremos aos nossos netos. Já está a acontecer. São campos agrícolas destruídos, populações perdem casas e haveres, migrações forçadas, mortes prematuras, sistemas de saúde sobrecarregados.
Podemos reduzir risco da perda de vidas e de bens materiais, em condições cada vez piores. Não há como preparar territórios e forças de combate para este novo tempo. Algumas das florestas mais bem cuidadas do mundo, nos parques nacionais da Califórnia, já perderam, este ano, 4046 quilómetros quadrados em consequência dos fogos florestais. É isto todos os anos, nos EUA ou Austrália, com fogos que ficam ativos semanas a fio.
O crime não explica
De tantos temas, o que o primeiro-ministro preferiu tratar, por saber que é o mais popular e desvia do governo qualquer responsabilidade, foi o do crime de fogo posto. E fê-lo da forma mais populista possível, falando de interesses que sobrevoam o crime, com insinuações não concretizadas, impensáveis em quem lidera o governo. E dizendo que ia perseguir os criminosos, tarefa que cabe às forças policiais e à justiça. Confirma-se: Montenegro está sempre em campanha.
Claro que há fogo posto. Sempre houve. Mas Portugal reduziu em três quartos o número de ignições (temos um número de ignições semelhantes ao de Inglaterra). Apenas 1% das ignições são responsáveis por 90% da área ardida. Como disse o arquiteto paisagista Henrique Pereira dos Santos, na SIC Notícias, “o problema não é como o incêndio começa, é porque é que ele não para”.
O que é desesperante nestes debates é o empenho de tanta gente em desligar a causa da consequência. Lembro-me de, em 2017, ser trucidado por falar de alterações climáticas, como se fosse uma desculpabilização do governo. Se não falamos delas quando sentimos de forma mais dramática os seus efeitos, falamos quando? São, aliás, os mesmos que recusam a causa a serem mais vocais na responsabilização política pelas consequências.
Acontece o mesmo nos debates sobre a imigração: ela irá aumentar por causa das alterações climáticas e os que maior partido político tiram deste fenómeno são os que negam uma das suas causas. A razão para resistência é simples: é mais fácil responsabilizar os poderes públicos por não estarem preparados para as consequências do que participar numa mobilização geral para reduzir a pressão das causas.»
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