Ao contrário de várias populações de lobo que se extinguiram na Europa, o lobo-ibérico tem resistido e apresenta uma característica muito singular. Esta história começou há mais de 3000 anos e há um gene de cão “perdido” que ajuda a contar o que aconteceu.
“Quando estamos sozinhos na montanha e sentimos um arrepio repentino na nuca é porque o lobo está perto.” Imaginem ouvir isto numa aldeia cheia de gente, onde as crianças brincam na rua, os mais velhos fazem da agricultura o seu sustento, e o som da Natureza se sobrepõe a todos os outros... Assim era a aldeia minhota de Aboim da Nóbrega nos anos 90, onde cresci.
Nos nossos serões em família, os meus avós contavam muitas histórias do passado na aldeia, e o lobo assumia o papel de personagem principal em muitas delas — e não era o de herói. Diziam-me que durante a sua juventude era frequente os lobos descerem da montanha para se alimentarem dos rebanhos: as pessoas assustavam-se e os homens juntavam-se para caçar estes impiedosos predadores. Conseguia perceber nas suas vozes e olhares o medo e o ódio que estas criaturas esquivas e misteriosas despertavam. E eu, ainda com seis anos, dava por mim a temer o lobo e a não o querer por perto.
A verdade é que a situação tinha mudado e o frequente avistamento de lobos tornara-se algo quase fantasioso. Nunca vi um lobo na aldeia, nem indícios da sua presença…
Pode parecer um sentimento inofensivo, mas este medo generalizado na população é fruto de uma história antiga de perseguição ao lobo que quase levou à sua extinção na década de 70. O declínio da população foi muito acentuado: nos anos 50, o lobo existia em praticamente toda a Península Ibérica; vinte anos mais tarde, ficou reduzido a poucas centenas na região Norte.
Há marcos históricos desta perseguição ainda visíveis nas nossas paisagens, como é o caso dos impactantes fojos do lobo – muros em pedra, em forma de “V”, com uma extensão que pode chegar aos dois quilómetros. Os lobos eram atraídos para dentro destas muralhas e perseguidos até uma armadilha: um fosso, onde ficavam aprisionados.
Ao longo dos anos, fui percebendo que o lobo é mais vítima do que vilão — e é importante desmistificar que muito deste medo é infundado.
E, apesar de toda a perseguição, a que se juntava a destruição de habitat, o lobo-ibérico foi capaz de sobreviver e recuperar, contrariando a extinção de várias populações de lobo na Europa. Mas como é que se tornou capaz de sobreviver nestes ambientes tão hostis?
A Diana Lobo que estuda lobos – uma coincidência quase predestinada
Quando era pequena, e ouvia as histórias assustadoras sobre lobos, não imaginava que um dia viria a estudá-los. O receio foi-se transformando em fascínio e essa foi uma das razões, assim como o meu interesse pela evolução das espécies, que me levaram a fazer o mestrado no Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto (Cibio- Ecogen).
Durante as aulas, a investigadora Raquel Godinho, que liderava projectos de investigação do lobo, e que mais tarde viria a ser minha orientadora de doutoramento, explicava como utilizava ferramentas genéticas – que explicarei mais em detalhe nos parágrafos seguintes – para estudar o lobo-ibérico (Canis lupus signatus). Mas foi uma das muitas conversas que se seguiram no laboratório com a Raquel que aguçou a minha curiosidade: “O nosso lobo não se mexe muito!”, dizia-me ela, enquanto mostrava mapas da Península Ibérica com trajectórias dos lobos, obtidas por colares GPS.
Isto era sem dúvida algo único: estava habituada a ouvir casos de lobos que percorrem centenas de quilómetros, não o oposto.
Começámos a questionar-nos se este comportamento poderia estar associado à capacidade de o lobo-ibérico sobreviver; e, se sim, qual seria a razão para o terem desenvolvido? Foram estas questões que deram origem à minha tese de doutoramento e é neste momento que os cães entram na história! Mas para tudo fazer sentido, vamos fazer uma (longa) viagem ao passado…
A domesticação dos nossos melhores amigos
Vamos viajar no tempo e andar uns 40.000 a 20.000 anos para trás, algures entre o continente Europeu e Asiático. Foi aqui que os nossos antepassados fizeram algo que mudaria para sempre a forma como vivemos – domesticaram uma população de lobos, que viria a dar origem aos cães.
Provavelmente, estão a pensar que os vossos cães não podiam ser mais diferentes de um lobo, sobretudo se tiverem um pequeno caniche, como eu. Mas o processo de domesticação (e consequente evolução) não foi instantâneo. Muita coisa mudou…
Os cães desenvolveram uma série de comportamentos, em resposta a uma forte selecção artificial imposta pelos humanos, como a docilidade e a capacidade de se manterem por perto, que os tornou muito díspares dos lobos, mas perfeitamente adaptados a viver com as pessoas. Do ponto de vista evolutivo, 40.000 anos é muito pouco tempo, o que faz com que lobos e cães partilhem cerca de 99% do seu ADN (incluindo os cães mais pequenos).
Esta proximidade genética permite que lobos e cães se possam reproduzir e que os híbridos resultantes deste cruzamento sejam férteis. Em Portugal e Espanha, estes casos de hibridação são eventos raros, mas sabemos que acontecem e, muito provavelmente, sempre aconteceram.
Quando os híbridos se reproduzem novamente com os lobos, há porções de ADN dos cães – os bocadinhos a que chamamos genes – que passam para o ADN dos lobos. Pensem nos genes como uma receita no livro de culinária da vida. Os genes contêm as instruções que dizem ao nosso corpo como fazer proteínas, que são os “ingredientes” necessários para manter o nosso corpo a funcionar, desde os músculos até ao cabelo.
Se genes dos nossos cães passam para o ADN dos lobos, será que alguns comportamentos típicos de cão também podem passar? Esta questão fez-me acreditar que talvez a adaptabilidade do lobo-ibérico e o seu comportamento peculiar de não se dispersar por longas distâncias estivessem associados a genes de cão adquiridos através de hibridação.
À procura do gene perdido
Como fazemos para encontrar genes de cão no ADN dos lobos? É uma tarefa difícil, diria mesmo que é como procurar uma agulha num palheiro de agulhas, porque o ADN de ambos é quase idêntico. Mas, através de técnicas recentes, é possível analisar todo o ADN – o genoma – de vários organismos de forma relativamente rápida.
Foram várias as horas que passei no laboratório, e tantas outras em frente ao computador, para conseguir analisar centenas de amostras de lobo-ibérico. Estas amostras, que normalmente são tecidos extraídos da pele ou do músculo, chegam-nos, sobretudo, de animais encontrados mortos.
No caso dos lobos que vivem nos dias de hoje, obter amostras é relativamente fácil. Mas como podemos estudar os lobos que viveram no passado e analisar o seu genoma? Infelizmente não é possível viajar no tempo, mas há algo muito próximo disso: as colecções de história natural.
Visitei vários museus em Portugal e Espanha onde encontrei colecções muito ricas de grandes carnívoros, que outrora viveram em abundância nas nossas paisagens. E uma quantidade de peles de lobo impressionante!
Foi impossível não ficar fascinada com tudo o que vi e imaginar o que aqueles animais viveram no passado... Tive acesso a amostras de lobos que viveram ainda noutro século e em regiões do país onde seria actualmente inimaginável, como Setúbal e Alentejo.
Seguiu-se um trabalho intensivo no laboratório, e finalmente, a análise dos genomas e a procura de genes de cão no genoma do lobo-ibérico...
Alerta de “spoiler”: encontrámos!
Os resultados dos testes estatísticos eram convincentes e apontavam na mesma direcção: um gene de cão tinha passado para o genoma do lobo-ibérico! A primeira coisa que me ocorreu foi: “Mas, então, qual será a função deste gene?”.
Como muitos genes são idênticos e partilhados entre mamíferos, fui investigar este gene no catálogo genómico dos humanos, visto que somos o organismo mais bem estudado de todos. Descobri que está associado a mecanismos cognitivos e de desenvolvimento, o que me fez pensar que pode ter afectado o comportamento do lobo-ibérico, tornando-o mais juvenil. Ou seja, o lobo-ibérico retém na idade adulta características típicas da sua forma mais jovem, como o facto de não se dispersar por longas distâncias. Este processo é típico de animais domésticos, como o cão.
A longo prazo, este comportamento poderá ter levado a que o lobo se mantivesse mais próximo das alcateias de origem – o que acaba por aumentar as chances de sobrevivência, uma vez que diminui os encontros indesejados com os humanos. Et voilà, tudo parecia fazer sentido!
Ainda assim, faltava responder a uma pergunta: quando é que este evento de hibridação aconteceu?
A próxima parte da história tem mais de 3000 anos
Se tivessem de viver em terras muito áridas, onde a água escasseia e as temperaturas são altas, para onde iriam? Este foi o cenário que os povos da Península Ibérica enfrentaram há cerca de 4000 anos, quando um evento climático extremo atingiu a bacia do Mediterrâneo. Estas condições levaram a que as pessoas (e os seus cães) migrassem para a costa, e regressassem para o interior apenas centenas de anos mais tarde, quando as condições climatéricas normalizaram. Acreditamos que o mesmo tenha acontecido com o lobo.
Sabemos que a hibridação com o cão é mais frequente em locais para onde o lobo se está a expandir, uma vez que são tipicamente indivíduos solitários e não têm par reprodutor. Por isso, o momento de regresso para terras do interior reunia as condições perfeitas para a hibridação acontecer. Através de ferramentas bioinformáticas – programas e algoritmos que usamos para analisar dados biológicos e moleculares –, consegui estimar uma data para este evento de hibridação que pode ter mudado para sempre o comportamento do lobo-ibérico: 3000 anos!
De repente, tudo fez sentido. Esta data coincidia com a expansão após o período de aridez, e as peças do puzzle encaixaram na perfeição. Para mim, este foi o verdadeiro momento “eureka” deste trabalho – o que é um privilégio enquanto cientista, porque nem sempre chegamos a momentos de conclusões evidentes. Ainda temos um longo trabalho pela frente para perceber melhor este fascinante animal, mas essas futuras descobertas ficam para uma próxima história. A verdade é que o lobo tem um papel fundamental no ecossistema e é nosso dever assegurar a protecção de todas as espécies do nosso planeta.
Comecei esta história a dizer que nunca tinha visto nem um lobo na aldeia, nem indícios da sua presença... Pois bem, quero dizer-vos que isso mudou com um belo uivo longínquo que ouvi numa aldeia, perto de Aboim da Nóbrega, numa noite de Verão do ano passado.
Para mim, não foi só um uivo: trazia consigo a mudança dos tempos e a certeza de que os lobos estão de volta. E, desta vez, espero que seja para ficar.
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