O planeta atravessa uma crise multidimensional sem precedentes na História da humanidade: uma policrise, como alguns lhe chamam, que inclui alterações climáticas, perda de biodiversidade, poluição, desigualdades sociais, entre outras.
Para combater as suas causas e efeitos, é preciso um esforço conjunto de todos os setores das sociedades humanas, incluindo as empresas, às quais vem sendo exigido, cada vez mais, que reduzam os seus impactos negativos e que, idealmente, abandonem lógicas de fazer negócio assentes na mera extração a favor de abordagens com impactos neutros ou até mesmo de regeneração dos danos causados.
Uta Jungermann, diretora de Member Engagement & Global Network do Conselho Empresarial Global para o Desenvolvimento Sustentável (WBCSD), contou à Green Savers que “uma empresa realmente responsável, primeiro que tudo, reconhece que estamos a experienciar uma policrise – alterações climáticas, perda de Natureza e crescente desigualdade”.
À margem da conferência anual do BCSD Portugal, associação que faz parte do WBCSD, que decorreu no passado dia 3 de julho em Lisboa, a responsável disse que quando a consciência dessa policrise é internalizada pelas empresas “também reconhecem a urgência em agir e que é preciso começar a perceber o que se pode fazer para se preparem para liderar a limitação dos impactos das alterações climáticas, para restaurar a Natureza, para abraçarem a noção de retribuir e não apenas de extrair”.
Reconhecida a existência desse quadro crítico e os riscos que representa para sociedades e, claro, empresas, “começamos a perceber que são necessárias transformações realmente profundas, da parte de todos”. Da parte dos negócios, são necessárias mudanças não só ao nível das suas operações diretas, mas também ao longo de toda a cadeia de valor.
“Para mim, uma empresa responsável, que é credível e responsabilizável, estabelece compromissos e metas com base na ciência, que são mensuráveis, que a coloquem num caminho para a neutralidade carbónica”, afirmou Uta, mas também assume, com precisão, os seus impactos no ambiente e na sociedade, “e comunica esse progresso de uma forma muito transparente”. Uma empresa responsável, em suma, “é verdadeira acerca dos seus impactos positivos, mas também reconhece os negativos e procura mitigá-los”.
É preciso que as empresas mudem a forma de estar no mundo?
Para Uta Jungermann, as empresas estão cada vez mais cientes de que não podem ser bem-sucedidas se as sociedades e ambientes dos quais fazem parte não forem, também eles, bem-sucedidos.
“Acho que estamos a experienciar essa mudança. Penso que as empresas estão a começar a perceber que não podem ter sucesso em sociedades que fracassam, há uma evidente interdependência. Os negócios querem prosperar, as sociedades querem prosperar. Os negócios só podem ser viáveis em sociedades saudáveis. Sei que ainda temos um longo caminho a percorrer, mas creio que as empresas que internalizaram isso estão a pensar já que, para o seu sucesso a longo-prazo, precisam de criar as condições para que as sociedades em que operam possam prosperar”.
E acredita que “a mudança está a começar”, embora reconheça que “provavelmente não está a acontecer tão rapidamente quanto todos gostaríamos”. Para a responsável, a demora está, em certa medida, a ser causada por “este mundo polarizado em que vivemos”, e, sobretudo, devido à ausência de quadros regulatórios claros no que diz respeito à jornada da sustentabilidade das empresas.
“As empresas gostariam de ter quadros regulatórios muito claros e estabilidade. Tornaria tudo muito mais rápido, mas não é esse o caso. Há muita polarização em torno destes temas, e isso certamente obstaculiza a velocidade e a escala que precisamos, mas acredito que há um número cada vez maior de empresas que realmente percebem que isto é inevitável”.
Uta disse-nos que, acima de tudo, é preciso perceber que as alterações climáticas, a perda de Natureza e as desigualdades sociais são várias facetas de um mesmo problema e que não é possível resolver um sem combater os demais.
“A interdependência destes três desafios é tão clara e penso que as empresas estão a perceber isso”, referiu, acrescentando que “muitas vezes é mais fácil começar com as emissões de carbono, porque é uma só métrica, fácil de medir, mas as empresas estão a reconhecer que não é a única métrica” e estão a procurar abordagens que permitam responder a essas dimensões interconectadas e interdependentes.
Questionada sobre se as empresas, no que toca à sustentabilidade, deveriam assumir a dianteira desses esforços e não ficar à espera de que os legisladores criem as regras do jogo, Uta disse “sim, por vezes sim”.
“As empresas estão numa posição única para liderar. Têm uma influência significativa a vários níveis da sociedade e em diferentes geografias, ao longo das suas cadeias de valor, etc. Obviamente que as políticas são importantes, mas, ao mesmo tempo, se estivermos à espera de uma única abordagem global, pode nunca chegar. Não temos tempo para estar à espera. Por isso, as empresas podem, nas suas esferas de influência, fazer muito e liderar pelo exemplo”.
O combate à policrise não pode ser feito sem as empresas
“As empresas não podem fazê-lo sozinhas, mas também não pode ser feito sem elas”, salientou Uta Jungermann, pois “as empresas têm uma capacidade única para liderar”, sobretudo porque têm à sua disposição recursos e capacidade para a inovação que muitas vezes falta ao setor público.
Contudo, as transformações necessárias para combater a policrise aconteceriam mais rapidamente, sugeriu a responsável, “se tivéssemos vontade política para fazer acontecer”. Ainda assim, na ausência dessa vontade, as empresas podem ainda assumir a dianteira. “Não creio que tenhamos a inovação que precisamos sem as empresas na liderança”, disse Uta, e deixou um apelo: “Temos de parar de demonizar o setor privado”.
Mas será realmente possível mudar a forma como as empresas operam e se posicionam no mundo sem alterar o próprio sistema em que estão inseridas? A responsável explicou que o atual sistema económico global “não distingue entre a criação de valor e a extração de valor, e basicamente está desenhado apenas para extrair valor, em vez de criá-lo”.
Dessa forma, “existem poucos ou nenhuns incentivos para as empresas criarem verdadeiro valor”, pelo que há que “reinventar o capitalismo” de forma a “criar as condições para o sucesso dos negócios a longo-prazo, e assegurar que os mercados recompensam comportamentos que reforçam os sistemas ambientais e sociais que alicerçam a prosperidade económica”.
“Mas atualmente não é isso que se passa, e torna difícil que as empresas mudem, inovem, transformem”, lamentou.
Preparar para o futuro pode implicar alguns sacrifícios
As transformações profundas que são entendidas como necessárias para alinhar as empresas e a forma de fazer negócios com os objetivos de combate às crises planetárias pode, por vezes, implicar investimentos sem retorno imediato. Será que as empresas estão dispostas a fazer esses sacrifícios, não só em prol das sociedades e do planeta em geral, mas também da viabilidade dos seus próprios negócios no futuro?
Uta Jungermann acredita que “depende de quão avançada uma empresa está na sua jornada de sustentabilidade”, uma vez que “cada empresa está numa etapa diferente”.
Para a responsável, “as empresas com visão de futuro percebem que a sustentabilidade não é apenas uma opção ética, mas sim um imperativo estratégico para a viabilidade a longo-prazo”.
Se as empresas tiverem uma verdadeira visão de futuro, sublinhou, então perceberão que é preciso fazer certos sacrifícios para garantir a sustentabilidade dos seus negócios.
“Cada vez mais, as empresas apercebem-se dos riscos financeiros causados, por exemplo, pelos riscos físicos das alterações climáticas. Por isso, quando olham para o futuro, as empresas reconhecem que, por vezes, é preciso fazer certos sacrifícios.”
Um ‘empurrão’ regulatório e uma dose de auto-motivação
Uta Jungermann salientou que atualmente há um “ritmo sem precedentes” no desenvolvimento de quadros regulatórios sobre a sustentabilidade das empresas, com a Europa a impulsionar grande parte dos esforços, e, a nível global, “isso significa que o reporte obrigatório está a tornar-se inevitável”.
“Algumas empresas fazem isso há anos voluntariamente”, referiu, mas a obrigatoriedade do reporte está a acelerar a transformação e a trazer todas as empresas para o mesmo plano, o do rumo à sustentabilidade.
No entanto, para essa transformação é preciso não apenas obrigatoriedades regulatórias, mas também estar disposto a ir mais além. Ou seja, é preciso haver um equilíbrio entre o que as empresas são obrigadas a fazer e o que, como parte integrante das sociedades, devem fazer para lá do que lhes é legalmente exigido.
“Obviamente que a regulamentação é importante, mas ao mesmo tempo as empresas têm de ter auto-motivação também. Penso que as empresas estão a adotar essa mentalidade”, afirmou.
“Claro que precisamos de mitigar os impactos, isso é essencial. A mitigação é sempre importante. Temos de minimizar e eliminar os impactos negativos onde podemos, mas também precisamos de restaurar, precisamos de recuperar os danos que causámos. No final de contas, todos queremos prosperar. É uma longa viagem, mas acredito que estamos no caminho certo.”
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