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quarta-feira, 27 de março de 2024

A pandemia dos eucaliptos


Portugal, um país de curiosos recordes mundiais. A maior feijoada, o maior pão com chouriço ou os maiores chifres de um bode são alguns dos feitos registados no Guinness. O país é igualmente recordista mundial no uso de uma planta que vem do lado oposto do globo terrestre. Eucalyptus globulus. São perto de um milhão de hectares cobertos somente por esta espécie. Quase 30% daquilo a que chamamos floresta portuguesa.

“Se viajarmos de norte a sul do país, são assustadoras as áreas de monocultura de eucalipto pegadas umas às outras. A paisagem está completamente destruída. Daí se chamarem desertos verdes”, observa o biólogo e especialista em agrofloresta José Mateus.

“Ter um distrito inteiro em que a única floresta que existe são plantações, seja aqui, seja as palmeiras para óleo de palma, é desastroso”, anui Paulo Pereira, biólogo e co-autor da Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental. Publicada no início do outono, este projeto avaliou perto de 400 espécies de árvores e plantas nativas que estão hoje ameaçadas de extinção em Portugal, devido sobretudo à intensificação agrícola, às barragens, aos incêndios e às espécies invasoras.

Em 2017, um estudo internacional em que participou a Universidade de Coimbra concluíra: "os eucaliptais geram autênticos 'desertos' à sua volta, provocando uma dramática redução da biodiversidade do território". Em 2019, outro estudo realizado por investigadores de seis instituições de ensino superior e coordenado por Ernesto de Deus mostrou várias evidências do potencial invasor do eucalipto.

No verão passado, investigadores da Universidade Técnica de Munique e da Universidade de Zurique detetaram através de imagens de satélite 15 territórios da rede Natura 2000 afetados por eucaliptos, nove dos quais “fortemente afetados”. “Estes ecossistemas são únicos e albergam várias espécies ameaçadas”, lembraram ao jornal Público. Consideraram os eucaliptos uma das maiores ameaças ambientais, pois “substituem a vegetação existente e atuam como combustível para potenciais incêndios florestais futuros”. Um ciclo que, face às alterações climáticas, preveem cada vez mais recorrente em Portugal.

Monchique é um exemplo revelador. Há 17 anos que é considerado Zona de Proteção Especial da rede Natura 2000, com 50 espécies naturais entre as mais valiosas e ameaçadas do continente europeu. Já então o ICNF, Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, identificara as principais ameaças: a atividade de florestação intensiva com espécies exóticas, os incêndios florestais e a destruição da vegetação autóctone. Em 2018, Monchique ardeu brutalmente. Quem habita a serra tem visto com incredulidade e revolta o regressar dos eucaliptais industriais sobre as áreas ardidas, e o brotar descontrolado de eucaliptos no pós-fogo, espalhando-se para novos terrenos.

Após os trágicos incêndios de 2017, o governo alterou a famigerada “Lei do Eucalipto Livre”. Hoje, é apenas permitido plantar eucaliptos em áreas de eucaliptal já existentes, ou numa nova área se se arrancar uma área de eucalipto equivalente. Entretanto, nos meses entre o anúncio da nova lei e a sua entrada em vigor, a ganância que mora na sombra dos eucaliptais teve o seu apogeu. Os viveiros industriais, de onde nas últimas décadas saíram mais de um bilião destas árvores, esgotaram para responder à frenética corrida ao eucalipto. Números facultados pelo ICNF revelam a cumplicidade do instituto: as autorizações para alastrar eucalipto a novas áreas tiveram nesse ano de 2017 o seu pico, com mais de 2200 hectares aprovados.

De acordo com o Público, em 2009 o ICNF elaborara uma proposta para classificar o eucalipto como espécie invasora – proposta que terá desaparecido sem explicação.

Procurámos saber a posição do instituto hoje. Sediado na aparentemente impenetrável floresta de betão da Avenida da República, em Lisboa, o ICNF responde apenas por email. E a resposta é taxativa. “Facilmente se infere que o eucalipto não é uma espécie invasora”, lê-se, “porque não é suscetível de ocupar naturalmente o território de uma forma excessiva, provocando uma modificação significativa nos ecossistemas.” O instituto explica: o raio de dispersão das sementes é limitado, o vigor dos eucaliptos que brotam espontaneamente é inferior ao dos obtidos em viveiro, sendo eliminados precocemente e dominados pelos arbustos e árvores pré-existentes.

No mesmo email, defende que a análise dos incêndios não faz “qualquer referência a situações de ‘elevada inflamabilidade’ relacionados com qualquer espécie”. E aprova a reflorestação pós-fogo com novos eucaliptos. “A reflorestação com qualquer espécie florestal não provoca o seu aumento territorial e é fundamental como medida de contenção e minimização dos impactos no solo e biodiversidade após os incêndios florestais.”

O instituto cuja missão é a proteção da nossa floresta não avista qualquer relação entre eucaliptais e incêndios, nem o perigo de esta espécie se tornar dominante. Uma visão que, se não cola propriamente com a das populações ou da academia, cola perfeitamente com a da indústria do papel, de empresas como a Altri e a Navigator. De resto, recorda o ICNF, “a Estratégia Nacional para as Florestas em Portugal reconhece a necessidade de garantir resposta à procura de matérias-primas das principais fileiras silvo-industriais”.

Uma floresta ligada à máquina
Em apenas duas gerações, a floresta em Portugal passou de ser o sustento da vida nas aldeias, com base numa convivência quotidiana e ancestral, a um cobiçado recurso para a indústria. Primeiro com a intervenção autoritária do Estado Novo, e o Fundo de Fomento Florestal nos anos 50, depois com a intervenção autoritária do mercado, marcada pela entrada na CEE e pelo Projeto Florestal Português financiado pelo Banco Mundial, nos anos 80. E o interior do país, enquanto se encheu de monoculturas florestais de pinhal e o eucalipto, esvaziou-se de pessoas.

“Houve um grande crescimento de tudo o que é floresta artificial, por vezes completamente estranha à ecologia de cada lugar”, observa Paulo Pereira. Para o biólogo, o advento da engenharia agronómica trouxe consigo uma certa presunção do ser humano achar que controla todos os processos. “Em qualquer tipo de sistema agrícola intensivo, há aquela ideia de que a única coisa que nos interessa é o que temos a produzir. Tudo o resto é concorrência a eliminar. Isto é como ligar a nossa produção à máquina. Como se tivéssemos um doente de Covid ligado ao respirador. Só com a água a pingar, adubos, tratores, pulverização de inseticidas e herbicidas todo o ano se consegue manter a cultura. Estamos a criar um zombie, que não tem qualquer autonomia fora do cuidado humano.”

“O engenheiro florestal está preocupado apenas com produzir uma espécie de madeiras, não tem conhecimento de como todo o ecossistema vai funcionar”, acrescenta José Mateus. “E acaba por não funcionar, ou ter de ser assistido de maneiras muito artificiais, como regadio, canudos a proteger as plantas, etc.” O entusiasta da agrofloresta convida a sentir a um eucaliptal: ao contrário de uma floresta biodiversa, sentem-se poucas relações, vê-se poucos insetos a alimentar-se, avistam-se poucas aves, ouve-se pouca vida. “No meio de todos aqueles hectares estamos a deixar pouco espaço para a fauna, para a flora, para muitos elementos fulcrais para o bom funcionamento do sistema todo. As técnicas de extração são brutais: corta-se a eito, insensível ao que se está a passar em baixo. A produção está desenhada para monocultura, para depender de tudo o que é externo e para se ter de comprar tudo novo. Maximizar o lucro, ter o mínimo de intervenções e ‘produzir dinheiro sem ter chatice’. É mais barato plantar eucaliptos, mas, no fim, o barato sai caro.”

“Até agora nunca demos um valor real aos serviços que os ecossistemas nos dão”, completa Paulo Pereira. “Quando numa plantação de eucalipto metermos a erosão das terras, a qualidade da água, a perda de biodiversidade, esse mesmo hectare passa a ser deficitário. Quando metemos tudo na equação, a agricultura moderna sai a perder”.

A abundância, desde uma perspetiva agroecológica, começa por conhecer as leis e os processos naturais, percebê-los e replicá-los. “Na natureza estão todos a trabalhar para aumentar a complexidade do sistema. A vida cria sempre condições para suster mais vida”, observa José Mateus. “O ser humano é o único que não o faz. Limpámos tanto, com essa visão de querer tudo limpo, que perdemos os elementos que trazem estabilidade ao sistema. Com máquinas de guerra enormes - retroescavadoras, tratores, alfaias agrícolas - temos um poder de destruição imenso. Conseguimos voltar à estaca zero num dia.”

Paulo Pereira considera que a natureza estará sempre a tentar voltar ao mosaico mediterrânico, que funcionou durante milhares de anos. “Se insistimos em destrui-lo e em artificializá-lo, vai ter consequências muito graves. Ninguém faz ideia quanto tempo levamos a recuperar o sistema que havia. Podem ser milhares de anos, e estar fora da escala humana.”

Hoje, mais de 60% do território português está em risco de se tornar um deserto. Enquanto a lei permite o eterno replantar de eucaliptais, a ciência estima que, em menos de trinta anos, o sul do Tejo se torne impraticável mesmo para o cultivo de eucaliptos. “Tivemos o Covid para distrair as pessoas, mas o grande problema é a sustentabilidade ecológica do planeta”, alerta Paulo Pereira. “Não está em causa a sobrevivência da Terra. Já sobreviveu a muitas extinções. Está em causa a nossa sobrevivência. O modelo produtivista não é compatível com a vida humana.”

Eis um convite a uma mudança radical – desde a raiz – na nossa relação com a floresta e com a Terra.

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