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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Não é o fim do mundo é apenas tarde

The Man in the High Castle (1963) is an alternative history novel by American writer Philip K. Dick

Por Nuno Ramos de Almeida
Vivemos num tempo estilhaçado. Uma das figuras centrais do nosso novo mundo é a fragmentação dos espaços de encontro, das expectativas em relação ao futuro e até da ideia do tempo.
Na realidade, passado e futuro parecem ter desaparecido, e ser substituídos por um imenso presente, em que a cadência da sucessão acelerada das “coisas” que acontecem parece retirar qualquer possibilidade de construir um sentido que se projete para além deste tempo repetido num presente sem fim.
A multiplicação das identidades e a tentativa neoliberal de reduzir todos os problemas sociais a questões de biografia individual, tornaram mais difícil a existência de um sentimento coletivo de pertença e de identificação numa comunidade de luta.

Dizia Baudelaire que o maior feito do Diabo era ter-nos convencido da sua inexistência. O maior feito do capitalismo é precisamente o contrário: é ter-nos convencido da sua eternidade. Nesse sentido o capital foi erigido em divindade com a sua poderosa teodiceia. Afiançam-nos que goza da omnipresença, está em todo o lado; de omnipotência, é superior a qualquer forma pensada alternativa; e omnisciência, o mercado tudo compreende e tudo faz.

Escrevia Frederik Jameson, numa passagem muito citada pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek, que ninguém mais considera seriamente alternativas ao capitalismo, enquanto a imaginação popular é assombrada pelas visões de um futuro “colapso da natureza”, da eliminação de toda a vida na Terra. Parece mais fácil imaginar “o fim do mundo” que uma mera mudança muito mais modesta de modo de produção, “como se o capitalismo liberal fosse o 'real' que de algum modo sobreviverá, mesmo na eventualidade de uma catástrofe ecológica global. Assim pode-se afirmar categoricamente a existência da ideologia como uma matriz geradora que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável, bem como nas mudanças nessa relação”.

Estamos, também, numa época em que cada vez mais o Estado de Direito se mistura com o Estado de Exceção. O crescimento do neofascismo não se mede por votos e pelo seu reforço orgânico e de massas, mas principalmente pela sua capacidade de conseguir espalhar os seus conceitos no Estado, instituições, política e violência mediática.A resposta a este regresso aos tempos negros que elegem os pobres, os imigrantes, os “de outra raça” como inimigos passa por construir comunidades de luta que redescubram que a humanidade transcende a nossa existência individual.

Há um belíssimo texto de Luiz Pacheco que se chama “A comunidade”, em que se descreve um tipo muito particular de laços: uma família que sobrevive à miséria. É numa espécie de jangada que se torna a cama de família que ganha forças para as tempestades. O texto é mágico e começa assim: “Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de carne macia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas para a luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; faço um gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntária tenaz de dedos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio morno nu ou numa cabecinha de bebé, com um tufo de penugem preta no cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos na boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos e suor uns com os outros, uns pelos outros, tão aconchegados, tão embrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transportassem o mesmo sangue girando, palpitassem compassadamente, silenciosamente, duma igual vivificante seiva”.

Num tempo em que estamos atomizados e isolados – em que só “socializamos” pelo consumo; em que, segundo estudos científicos, somos definidos pelos likes automáticos que colocamos nas redes sociais; em que a imagem que damos é reflexo dinâmico dos condicionamentos que nos impõem; em que os estudos que sobre nós fazem permitem otimizar aquilo que querem que sejamos: grandes consumidores –, perdemos essa capacidade de nos tornar sujeitos, passamos a ser só objetos.

Contra isso é preciso formar comunidades que tenham como ponto de partida a igualdade. Só conseguindo poder para todos será possível que o fim do trabalho como o conhecemos não seja a divisão total e espacial entre os muito ricos e os 99% restantes, confinados a zonas cada vez mais selvagens nas nossas sociedades. Para inverter este processo de destruição social e ambiental é preciso redescobrir a movimentação coletiva que não se fundamentem apenas na situação social em que vivemos, mas se projetem naquilo que pretendemos que o mundo seja.

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