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terça-feira, 28 de março de 2023

Documentário: Censura - O Lápis Azul

O Lápis Azul

Pedaços de um Portugal censurado
Foi o símbolo de uma época. O "lápis azul" riscou notícias, fados, peças de teatro e livros, apagou anúncios publicitários, caricaturas e pinturas de parede. Sendo proibida qualquer referência ao material censurado, poucas foram as oportunidades de ver o que se perdeu. A exposição ?O Lápis Azul: A Censura do Estado Novo?, mostra uma pequena parte desse espólio. Mas ilustra o grande alcance da actuação censória que vigorou 48 anos, desde o Golpe Militar de 28 de Maio de 1926 aos regimes de Oliveira Salazar e Marcello Caetano.

Rolha na boca. Óculos na ponta do nariz. O jornalista não pode "falar". Tem uma faca à cabeça. E uma tesoura aberta entalada no pescoço. Na lâmina da faca lê-se "Lei de Imprensa"; na tesoura, "Censura". Os traços são de Francisco Valença que desenhava assim uma caricatura alusiva à "censura prévia". Viriam a ser publicados no semanário satírico Sempre Fixe a 8 de Julho de 1926. Um pequeno texto acompanha a gravura: «Na impossibilidade de desenharmos e escrevermos no "Diário do Governo", teremos de transformar o Sempre Fixe em jornal de modas. Já temos mesmo uma linda colecção de figurinos de "dolmans", calças à Chantijly, capotes, etc., para a presente estação. Vamos desbancar o Depósito de Fardamentos!»
Personificada numa mulher volumosa a "Censura" aparece também caricaturada nas páginas de uma das edições do semanário Agora de 16 de Fevereiro de 1969. Está sentada nas magras pernas de um ardina de sacola à tira colo. No chão um amontoado de páginas riscadas com uma cruz. À caricatura da autoria de Luís Trindade segue-se em legenda uma advertência ao leitor: «Explicação Necessária: Por motivos óbvios somos forçados uma vez mais a publicar a gravura alusiva ao facto. Decerto os nossos amigos compreenderão.» A caricatura política assumia-se desde logo como uma arma pronta a ridicularizar o regime e por isso interdita. A ditadura receava o humor.

Censura na Imprensa
Apresentada como uma medida transitória por se encontrarem suspensas as garantias constitucionais da República, a Comissão da Censura é instituída a 22 de Junho de 1926. Os jornais passam a ser obrigados a enviar a esta comissão quatro provas de página e a não deixar em branco o espaço das notícias censuradas. A implicação desta medida causa a indignação nas redacções. Em 1933 a Censura viria a ser legalmente instituída através da Constituição.
Começa assim a saga do "lápis azul" que conhecerá dois momentos. Um até Setembro de 1968, sob a alçada de António de Oliveira Salazar e com a designação de Comissão da Censura. O outro com a nomenclatura de Comissão do Exame Prévio durante o governo de Marcello Caetano, que só terminará a 25 de Abril de 1974.
Quando a 27 de Setembro de 1968 António de Oliveira Salazar é afastado do poder, Marcello Caetano sucede-lhe. Aproveitando a mudança na Presidência do Conselho, Sá Carneiro e Pinto Balsemão, deputados da ala liberal do regime, apresentam em 1970 um projecto de lei de imprensa onde propõem uma redução do âmbito da Censura. A resposta de Marcello Caetano surge em 1971. O Diário do Governo publica a Lei 5/71 onde se decreta apenas uma mudança de nomenclatura. Na prática, a imprensa periódica continua sujeita às proibições e correcções da Censura.
A 1 de Junho de 1972, o Diário de Lisboa noticia em primeira página a entrada em vigor da Lei de Imprensa (decreto-lei n.º 150/72) onde se estabelece como regra a "liberdade": «É lícito a todos os cidadãos utilizar a imprensa de acordo com a função social desta e com o respeito dos direitos de outrem, das exigências da sociedade e dos princípios da moral».
 E como "excepção" o regime de Exame Prévio: «A publicação de texto ou imagens na imprensa periódica pode ficar dependente do exame prévio, nos casos em que seja decretado o estado de sítio ou emergência».
A razão apontada para esta excepção lê-se no parágrafo final da notícia. «Dado que nos encontramos oficialmente em estado de emergência (após a resolução de 20 de Dezembro passado) a imprensa periódica fica sujeita a exame prévio. Assim, o que até ontem era regra (a autorização administrativa prévia para a publicação de texto ou imagem) é, a partir de hoje, excepção.»
No jornal República, de 9 de Junho de 1972 é publicada uma advertência semelhante onde se faz uma referência a uma outra implicação do decreto-lei 150/72: «Nos textos ou imagens publicados não é consentida qualquer referência ou indicação de que foram submetidos a exame prévio». A Primavera Marcelista faltava à promessa de uma maior abertura do regime.

Mentalidades
A actuação do censor variava entre a proibição total da matéria submetida a exame e a aprovação com cortes. Entre a actualidade informativa algumas temáticas pareciam mais "predispostas" a receber o carimbo "Cortado".
É o caso de um inquérito sobre namoro, casamento, relações pré-conjugais e controle de natalidade destinado a ser publicado no Notícias da Amadora de 17 de Janeiro de 1968. A propósito de alguns dados divulgados no Anuário Demográfico pedia-se a opinião de alguns jovens sobre aquelas temáticas. Uma estudante universitária, de 18 anos confessava-se «católica mas a favor do controle de natalidade». As estatísticas do Anuário mostravam um decréscimo no número de partos: 221736 em 1964, 214824 em 1965 e 211452 em 1966. Um jovem, estudante e empregado de 16 anos confessava-se a favor das relações sexuais pré-conjugais e do casamento pelo registo por considerar «um erro o casamento pela igreja face à mudança de mentalidade entre os jovens». O artigo é totalmente censurado

Más condições de vida
O mesmo tratamento merece um artigo sobre o flagelo do Bócio Endémico a publicar no Jornal do Fundão. As provas de página das edições de 26 e 28 de Janeiro de 1968 dão conta de um estudo médico exaustivo sobre esta doença, realizado pelos médicos Fernando Dias de Carvalho e José Lopes Dias, nos meios rurais do concelho de Oleiros, e terras dos concelhos de Castelo Branco, Fundão, Prença e Sertã.
Com base num inquérito sanitário a 10481 indivíduos (2/3 da população de 147 localidades), dava-se a conhecer as más condições de vida daquelas gentes: «carências alimentares», «excesso dos trabalhos rudes e pesados», «envelhecimento precoce agravado no sexo feminino pela sobrecarga das gestações e dos partos repetidos». Era ainda denunciada a existência de 4533 casos identificados de Bócio.

O Ultramar
O trabalho minucioso do censor é visível num memorando relativo a uma edição (sem data) do diário portuense O Primeiro de Janeiro. Numa lista, as diferentes secções do jornal aparecem enumeradas e classificadas quanto à sua publicação ou não. Censurados estava a secção Noticiário do Ultramar e alguns artigos relacionados com a actuação dos tribunais, o aborto e a PIDE.
Outras notícias seriam publicadas mas com cortes. Um artigo sobre o envio de tropas para a guerra ultramarina recebia a atenção do censor que advertia para o corte da referência ao número de homens, ao seu destino e à quantidade de armas.
Não raras vezes a pena pela publicação de notícias censuráveis que escapavam ao controle do censor era a suspensão das publicações por tempo a determinar. O jornal A Voz Africana, na sua edição de 16 de Fevereiro de 1968 destaca um desses casos na sua primeira página: a suspensão por 30 dias do Diário de Moçambique. O motivo ficara a dever-se ao facto de este jornal ter relatado uns incidentes ocorridos no Norte da província moçambicana dos quais resultara a morte de um militar.

Artes
Na prova de página do Notícias da Amadora de 2 de Março de 1968 está uma notícia sobre o compositor Fernando Lopes-Graça autorizada pelos Serviços da Censura onde se podem ver os cortes efectuados.
No primeiro parágrafo suprimido lê-se alguns elogios ao génio de Lopes Graça que o censor decide apagar: a descrição do compositor como «um homem cuja vida é uma luta exemplar contra a ignorância e o modo de dizer "estou aqui"; e o elogio às «canções que recolhe do sangue do nosso povo».
Umas linhas depois segue, sem cortes, o motivo da notícia: a projecção internacional que o compositor português atingira pelo facto de Rostropovich, um reconhecido violoncelista russo, lhe ter encomendado o "Concerto para Violoncelo", classificado pelo o jornalista como "a sua última obra de fôlego". Mas logo depois a censura volta a cortar uma parte incómoda deixando o leitor sem saber que a primeira audição mundial daquele concerto do compositor português fora interpretada por Rostropovich durante as comemorações da Revolução Bolchevista.

Internacional
O tratamento da informação internacional merecia algum "cuidado" censório. Exemplo, os cortes efectuados num artigo de Francisco Mota, sobre a crescente apreensão nos meios internacionais com a Alemanha Ocidental, a publicar na edição de 11 de Maio de 1968 do Notícias da Amadora. São cortadas informações sobre escândalos que se abatem sobre o governo alemão e a acusação feita pelo jornal Der Spegel de que o presidente Lubke teria "colaborado na construção de campos de extermínio de judeus durante o reinado hitleriano".

Desporto
Outro caso de suspensão de publicação acontece com o jornal desportivo A Bola devido a uma reportagem publicada a 25 de Março de 1946. A matéria, não censurada, reportava  um desafio de futebol amigável entre a Selecção Portuguesa e, de acordo com o jornalista responsável pela peça "onze marinheiros britânicos da Home Fleet tomados como a selecção Britânica". Portugal vencera por 11-1.
O jornalista escrevia assim: " A luta não foi equilibrada, foi indiscutivelmente correcta ou não estivessem em campo 11 'cidadãos' britânicos (?) só para se ver como se perde com uma 'cara alegre? e sorriso nos lábios a grande maioria ? mas muito grande ? dos assistentes ao espectáculo não deve ter dado por mal empregado o dinheiro gasto com os bilhetes da entrada? No entanto outro motivo de indiscutível sucesso houve, por milagre, para justificar a deslocação de tantos milhares de pessoas ao vale do Jamor (?) a exibição da Banda de Música Inglesa durante o intervalo do desafio. A compostura, o garbo e a afinação daquele conjunto compensou de sobejo o 'sacrifício' da tarde. Com aquela pequena amostra de um breve quarto de hora o público ficou deliciado, aplaudindo merecidamente.".
Os comentários custariam ao jornal um mês de suspensão por «falta de respeito para com um país Velho Aliado e para com Sua Majestade, a rainha», lê-se num comunicado da Comissão de Censura.

O largo alcance da Censura
Música
A censura estendia-se a outros domínios que não a Imprensa. A realização de um espectáculo público dependia de uma solicitação de autorização submetida à Comissão da Censura. E nem as letras dos fados a serem cantados escapavam ao exame da Inspecção dos Espectáculos, Serviços de Censura.
Foi o que aconteceu com a noite de fados marcada para o dia 9 de Dezembro de 1939 no Café Mondego, em Lisboa. As letras das canções haviam sido enviadas para a Inspecção dos Espectáculos, Serviços de Censura, a fim de serem examinadas antes de ser decidida a sua exibição em público.
Entre os visados o fado "Tejo- Canção da Saudade" da autoria de Aureliano Lima da Silva merecera a aprovação sem cortes. Já um outro fado do mesmo autor intitulado ?A Guitarra? fora aprovado mas com alguns cortes. Na primeira quadra cantava-se «Querida guitarra/ Alma bizarra/ és imortal? mas omitia-se o final: "A tua história/ é a gloria de Portugal". A última quadra sofria um corte semelhante. Cantava-se «Guitarra querida/ a tua vida/ está gravada dentro de nós? e cortava-se "Por que és a voz/ da pátria amada"
Menos sorte teria o "Fado Socialista", escrito em 1927 por Ramada Curto que seria proibido. A letra não deixava ao censor margem para dúvidas: «Gente rica e bem vestida/ P´ra quem a vida é fagueira/ Olhem que existe outra vida/ N´Alfama e na Cascalheira!  Mas um dia hão-de descer/ Os lobos ao povoado?/ Temos o caldo entornado/ Vai ser bonito de ver/ Não verá quem não viver/ O fogo dessa fogueira/ Soa a hora derradeira/ De quem é feliz agora?/ Às mãos da gente que chora.»

Cinema
Mas se alguns dos cortes da censura são "óbvios" pelas mensagens subversivas ao regime político fascista, outros são menos claros. Num panfleto de divulgação do filme "A Casa Encantada" de Alfred Hitchcock, a navalha que um homem segura enquanto abraça uma mulher é apagada. Um outro filme, "Bonnie e Clyde" de Arthur Penn é visado pela censura e vê cortada a crítica cinematográfica presente na prova de página da edição de 11 de Maio de 1968 do Notícias da Amadora. 

Publicidade
Um anúncio de uma marca de vestuário, de homem e senhora apresentava uma foto com dois casais vestidos em primeiro plano e outra em segundo plano onde o grupo aparecia sem roupa, ainda que não se percebesse a nudez dos seus corpos, o slogan "Ou Daga ou nada" explicava a imagem. A Censura autorizava o anúncio mas cortava a segunda imagem.

Pintura
Em 1947 Júlio Pomar pintava um fresco numa das paredes do interior do Cinema Batalha, no Porto. Depois do trabalho acabado a censura manda tapar a pintura com tinta branca. Hoje, passados 55 anos ainda lá está coberta a obra.

Teatro
Pela mesa censória passavam também os guiões das peças teatrais, antes da sua exibição. A revista "Travessa da Espera" da autoria de Vasco Sequeira e António Cruz com exibição marcada para Dezembro de 1945 no Teatro Maria Vitória viu cortados pela censura 2/3 do seu texto. E um dos seus actores chegara a ser repreendido por ter proferido diálogos cortados.
Para além dos guiões o material de divulgação das peças eram também objecto de censura. Em comunicado, a PSP do Porto informa o Circulo de Cultura Teatral do Teatro Experimental do Porto da apreensão decorrida a 18 de Março de 1972 de diversos cartazes anunciando a peça "A Casa de Bernarda Alba" de Frederico Garcia Lorca por determinação do Governador Civil do Porto. O cartaz exibia uma mulher nua da cintura para cima.

Livros
A Ave sobre a Cidade, Papiniano Carlos
A Campanha, Fiana H. P. Brandão
A Classe Operária irá desaparecer?, N. Gaouzner
A Esperança Agredida, José Manuel Mendes
A Revisão do Contrato Colectivo de Trabalho dos Metalúrgicos
Minha Senhora de Mim, Maria Teresa Horta
Moçambique pelo seu Povo, José Capela
O Motim, Miguel Franco
O que é a Reforma Agrária, Blasco Hugo Fernandes
Oração Fúnebre por Ernesto Guevara, Fidel Castro
Os Clandestinos, Fernando Namora
Podem Chamar-me Euridice, Orlando da Costa
Poesia Portuguesa Erótica e Satírica  Séculos XVIII - XIX
Revolução Sexual na União Soviética 1917-1944
Um Homem Não Chora, Luiz de Sttau Monteiro

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