Uma “Declaração Mundial sobre o Clima” assinada por mais de 1.100 pessoas, e compartilhada milhares de vezes nas redes sociais desde agosto de 2022, desafia o consenso científico de que o aquecimento global foi provocado pelo ser humano. As afirmações contidas no documento foram desacreditadas por especialistas e poucas das pessoas que assinaram o documento são cientistas da área. Alguns têm vínculos com a indústria petrolífera e organizações negacionistas em relação ao aquecimento global.
“FIM DE PAPO: 1.200 cientistas e profissionais de todo o mundo liderados pelo Prémio Nobel de Física norueguês Professor Ivar Giaever declaram: ‘Não existe emergência climática.’”, diz uma das publicações que circulam no Facebook, Twitter (1, 2) e Telegram, que incluem links para sites (1, 2) que reportaram a declaração.
Vínculos com a indústria petrolífera
O documento que circula é uma versão atualizada de um texto publicado em 2020 pela Fundação de Inteligência Climática (Clintel), organização com sede na Holanda e fundada por Guus Berkhout — geofísico aposentado que trabalhou para a gigante petrolífera Shell — e pelo jornalista Marcel Crok.
A Clintel descreve-se como uma “fundação independente” e promove os que assinaram o texto como “uma grande variedade de cientistas competentes”.
Seus fundadores desmentiram duas reportagens (1, 2) publicadas nos meios de comunicação holandeses, segundo os quais o dinheiro de companhias de combustíveis fósseis teria financiado o trabalho de Berkhout. “A Clintel nunca recebeu um centavo da indústria petrolífera”, disse Crok à AFP por e-mail em 2 de setembro de 2022.
Entre as cinco companhias petrolíferas mencionadas nos informes holandeses, a Shell comunicou à AFP via e-mail que “não estava ciente” de ter financiado Berkhout e a ExxonMobil disse que a afirmação de que havia financiado a organização era “inexata”. As outras três empresas recusaram-se a comentar.
No entanto, sete dos que assinaram a declaração foram identificados como funcionários da Shell e outros oito são empregados da indústria petrolífera. Crok confirmou à AFP que o próprio Berkhout trabalhou para a empresa Shell “faz uns 40 anos”. Além desses, assinaram o documento 13 engenheiros e geólogos da área do petróleo e diversos especialistas em mineração.
Vários dos signatários (1, 2) teriam ligações, fossem mencionadas na lista ou documentadas noutros registos, com grupos norte-americanos do livre mercado e céticos do clima vinculados à indústria petrolífera: o Heartland Institute, Competitive Enterprise Institute e o Cato Institute.
Cada um desses grupos recebeu dinheiro da gigante petrolífera ExxonMobil, segundo os documentos fiscais e de doadores publicados pelo Greenpeace (1, 2, 3). A companhia foi acusada de minar a ciência para proteger o seu negócio de combustíveis fósseis, algo que nega.
Posto de gasolina da Shell, na Inglaterra, em 7 de junho de 2022 ( AFP / Paul Ellis)
Poucos climatologistas
As afirmações do documento são seguidas de uma lista de 1.113 signatários de 40 países: 1.007 vivos e seis registados como falecidos (com uma cruz ao lado de seus nomes). Outros 26 são denominados “Embaixadores da Declaração Mundial sobre o Clima”, e um já faleceu.
Uma das assinaturas é a de Ivar Giaever, co-vencedor do Prémio Nobel de Física em 1973 pelo seu trabalho sobre supercondutores. O Google Académico indica que ele não publicou nenhum artigo sobre a ciência do clima.
Segundo uma contagem feita pela AFP, 10 signatários descreveram-se explicitamente como climatologistas ou cientistas do clima, menos de 1% do total. Alguns outros denominaram-se especialistas em paleoclimatologia e ciências atmosféricas.
Também assinaram o documento aproximadamente 40 geofísicos, 130 geólogos e 200 engenheiros de diversas áreas, além de vários matemáticos, médicos e agrónomos.
Captura de ecrã feita em 7 de setembro de 2022 de alguns dos nomes que assinaram a “Declaração Mundial sobre o Clima”
Entre os signatários estão um pescador, um piloto de avião, um sommelier, um músico, um advogado, um linguista, um professor aposentado, um urologista, um psicanalista e, pelo menos, três representantes sindicais de trabalhadores da energia.
O aquecimento global é um fato
Os documentos que afirmam, cientificamente, a existência do aquecimento global são mais completos do que a “Declaração Mundial sobre o Clima”. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) convidou 721 especialistas de 90 países para serem autores e editores do Sexto Relatório de Avaliação em três partes, publicado entre agosto de 2021 e abril de 2022.
O relatório é a avaliação mais completa do conhecimento científico sobre a mudança climática. Cada parte tem 3.000 páginas. Os autores revisaram centenas de estudos listados por seções de referências e concluíram que há uma evidência “inequívoca” de que o clima está a aquecer como consequência das atividades humanas que envolvem a queima de combustíveis fósseis.
Numerosas publicações nas redes sociais colocaram em dúvida o consenso científico de que os seres humanos estão impulsionando o aquecimento global. No entanto, três análises de estudos climáticos dos últimos anos indicaram que o consenso está perto de 100% (1, 2, 3).
O presidente do IPCC, Hoesung Lee, rodeado de copresidentes, em uma entrevista coletiva a respeito o relatório especial sobre as mudanças climáticas e a Terra, em Genebra, em 8 de agosto de 2019
Afirmações climáticas falsas
Apesar do consenso, a declaração viralizada nas redes diz que vários aspectos da ciência do clima ainda estão em debate. “O que conta não é o número de especialistas, mas a qualidade dos argumentos”, assinala a Clintel.
O documento inclui uma série de afirmações sobre o tema que foram desacreditadas por especialistas da área, e não fornece as fontes usadas. A AFP e outras organizações verificaram previamente vários dos argumentos:
1. “O clima da Terra tem variado desde que o planeta existe, com fases naturais de frio e calor… Portanto, não surpreende que agora estejamos vivenciando um período de aquecimento”.
Os especialistas citados nesta verificação da AFP em espanhol disseram que o aumento das temperaturas globais nos últimos 150 anos foi anormalmente agudo, impulsionado pelas emissões de carbono posteriores à industrialização.
2. “O mundo aqueceu significativamente menos do previsto pelo IPCC sobre a base do forçamento antropogénico modelado… A política climática baseia-se em modelos inadequados”.
Esta análise, realizada pela Carbon Brief, mostrou que alguns modelos projetavam menos aquecimento do que o visto e outros mais, porém, todos mostraram aumentos de temperatura na superfície entre 1970 e 2016 que não estavam muito longe do que realmente aconteceu. Os especialistas defenderam os modelos em declarações à AFP.
3. “Mais CO2 é favorável para a natureza, trazendo de volta o verde ao nosso planeta. O CO2 adicional ao ar tem promovido o crescimento da biomassa vegetal global”.
Os especialistas citados neste artigo da equipa de verificação alemã da AFP indicaram que as plantas só podem processar uma parte limitada do excesso de emissões de dióxido de carbono e sofrem os efeitos das mudanças climáticas.
4. “Não há evidência estatística de que o aquecimento global esteja intensificando o aparecimento de furacões, inundações, secas e desastres naturais similares, ou fazendo com que eles sejam mais frequentes”.
A World Weather Attribution (WWA) calculou, utilizando métodos que incluem análise de observação de conjunto de dados históricos, que vários desastres foram mais prováveis devido às mudanças climáticas, incluindo inundações e tempestades. Seus métodos foram descritos nesta verificação da AFP em inglês sobre incêndios florestais.
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