A pobreza é histórica e socialmente relativa, os critérios para a sua definição mudam consoante a época e a sociedade.
Ao mesmo tempo que eram divulgados alguns números sobre o aumento da pobreza em Portugal e se publicavam reportagens que amplificam demagogicamente a situação, o Governo depositava 125 euros na conta bancária de uma grande parte dos cidadãos. Esse dinheiro vai alimentar o fluxo económico e volta a reentrar parcialmente nos cofres do Estado. Mas o que importa é cultivar a imagem de um Estado benfeitor.
Muito embora o universo dos beneficiários inclua a maior parte da população e não se limite aos que têm rendimentos muito reduzidos ou se situam abaixo do limiar de pobreza, esta “dádiva”, no contexto em que é feita, arrisca-se a parecer uma manobra de assistência ou um suplemento de generosidade do sistema de protecção social.
Evidentemente, a operação é económica, bastante alargada, e tem objectivos políticos, mas na sua forma e graças à coincidência com a divulgação de dados alarmantes, acaba por se confundir demasiado com a assistência à pobreza. E ser assistido é, como sabemos desde que em 1907 Georg Simmel publicou o seu célebre estudo sobre os pobres, com o qual impulsionou uma “sociologia da pobreza”, o critério essencial para que uma pessoa seja representada pelos outros como pobre.
Onde está afinal esta enorme massa de população pobre se nós não a vemos ou a vemos muito pouco? Não a vemos porque na nossa sociedade (democrática e rica ou com aspirações a tal) é o modelo da riqueza que se tornou conspícuo ou até exuberante, enquanto os pobres foram relegados para a condição da invisibilidade. De outro modo, constituiriam um grande incómodo que justifica, aliás, o assistencialismo: este acaba por ser uma forma de assistência não apenas aos assistidos, mas aos sujeitos da assistência. É preciso apresentar ainda uma outra razão para esta invisibilidade: em países como Portugal há uma pobreza integrada socialmente.
Muitas pessoas com quem nos cruzamos diariamente, que nos prestam serviços e que nos atendem nas lojas, nos supermercados, nos cafés e restaurantes, fazem parte deste estrato social; nos países da Europa do Norte, pelo contrário (embora com alguns desvios que se têm acentuado nos últimos anos), a classe média é a regra geral e a pobreza é quase sempre marginal, os pobres vivem na condição de “restos”, de inadaptados, não formam um conjunto social.
Outra coisa que Simmel nos ensinou é que a pobreza é sempre relativa e, por isso, devemos interrogar a própria noção de pobreza, tal como ela é definida e quantificada pelas estatísticas. Basta mudar um pouco o limiar de pobreza oficial e imediatamente se altera a proporção dos pobres em relação à totalidade do universo populacional.
A pobreza é histórica e socialmente relativa, os critérios para a sua definição mudam consoante a época e a sociedade: um pobre em Inglaterra na época da revolução industrial não é o mesmo que um pobre na Inglaterra de hoje, tal como um pobre na Suíça não se assemelha a um pobre em Portugal. Mas esta definição relativa de pobreza aplica-se também às categorias profissionais. Um exemplo, que tem actualmente uma extrema evidência, demonstrativa desta realidade: a classe dos jornalistas tem os seus pobres, que são a maioria, e os seus ricos, uma minoria.
A pobreza, em sociedades como a nossa, é apenas bem visível quando ostentada pelos “outros”, os que não são como nós, os imigrantes ou os que são etnicamente identificados. Mas, para além de genericamente invisível, é também muda ou, pelo menos, muito pouco eloquente. Não se vê e pouco fala. Há quem fale por ela, muitas vezes instrumentalizando-a, mas é muito raro apreendê-la com voz própria e sem mediações. Uma excepção a esta regra é um livro-reportagem, um fabuloso livro de um notável escritor dos Estados Unidos, William T. Vollmann, intitulado Poor People (2007).
Vollmann percorreu entre 1994 e 2006 vastas zonas do mundo onde prolifera a pobreza e perguntou aos pobres porque é que são pobres. E as respostas que recebeu são as mais variadas: o destino, dizem uns, a preguiça, confessam outros, o infortúnio e as decisões políticas, avançam outros. Enfim, as respostas são muito diferentes e há até uma mulher indiana que lhe respondeu que a sua pobreza era ditada pelas leis da encarnação; e há um sem-abrigo, algures no México, que diz que não se considera pobre porque arranja dinheiro diariamente para se embebedar.
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