Estamos em 1976. Na aldeia onde vivi, Lamaçães (Pedroso- Gaia), na rotunda, existe um cruzeiro medieval que anunciava este povoado como roteiro dos padres beneditinos até ao Mosteiro de Pedroso.
Em frente a ele e ao cimo da minha rua estava uma casa por alugar, há uns anitos. De repente, ou seja, de madrugada, chegou uma novidade. Ninguém ouviu nada, mas certamente que foi durante a madrugada que os novos habitantes fizeram a mudança com uma Citroën 2cv com móveis e bens que eram da D. Mariana e do pequenito Pedro.
De manhã, sábado, ainda me lembro, surgiu da casa a D. Mariana. A aldeia em peso ficou chocada. Era uma jovem, teria 26 anos e destacou-se logo por ter cabelo curto (?), fumar (?), conduzir (?), mãe solteira (?) e vestir calças (?). Outra revolucionária, comunista e puta!
A minha irmã Cindinha foi a pioneira nessas terras do Demo a usar calças. Pois, em 1965, teve logo a aldeia em peso condenando o seu atrevimento. Chegou a ser agredida e por onde passava insultavam-na. A aldeia também apontava o dedo à minha mãe, costureira, questionando a ousadia de coser essas calças. Era a mocidade, a rebeldia, o querer ser diferente, a idade de afirmação social e de manifestação terrena que está cá na Terra por muitos anos, era gente, mais uma pessoa com ideias na cabeça, pouco se importando perante uma sociedade retrógrada, caduca e bafienta. A minha mãe costurou mais de vinte calças num mês. Depois era hábito e passou a ser novamente a modista da aldeia, alinhavando saias e calças ao mesmo tempo.
A D. Mariana estava a marimbar-se para esta gente. Tinha cursado o 9º ano industrial, culta e lia muito ao fim de semana. Mãe adolescente, nasceu o Pedro. Era feminista. Não esteve com paciência para se subjugar às manias e ordens machistas do seu companheiro. Trataram do baptizado do menino, no Porto e cada um seguiu a sua vida.
Adorava capinar. A casa, que estava cheia de mato e silvas e ervas e jarros e rosas velhas, com um diospireiro ao fundo e uma linda cameleira perto do pátio da casa, ao fim de três meses estava transformada e exibia um terreno lavrado, roseiras novas, um pessegueiro jovem e um limoeiro. A Mariana adorava sumos de limão e de pêssego.
Matriculou o filho na Escola Básica dos Carvalhos e inteirou-se sobre qual era a minha turma. Disseram-lhe não havia vaga. Teve de o matricular noutra. E agora? Horários diferentes, ela a trabalhar, a aldeia em estado de sítio. “Pensa rápido, Mariana, pensa rápido. Fogo, tu consegues. Dás sempre a volta por cima”. Telefonou à mãe. Talvez a minha mãe, professora de várias costureiras, com a criançada a brincar no grande pátio da casa, não se importaria de ficar com o seu filho. E assim foi. A aldeia foi mastigando a intrusa. A aldeia viu que afinal até trabalhava no campo. Foi abrindo gradualmente as portas e deixou-se de impropérios. Estava arrependida. O Pedro brincava comigo, por vezes, pois tínhamos horários distintos.
Mas a aldeia esperava pelo belo momento em que a Mariana, regressando a casa do trabalho, chamava a bons pulmões: “Pedro, vem-te!”. Estalavam sorrisinhos marotos e carinhosos entre as mães da aldeia.
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