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terça-feira, 26 de julho de 2022

O fascismo anticristão do Chega, a Igreja e os jornalistas

Hitler também foi eleito numa eleição democrática e sabemos em que tragédia isso acabou. A irresponsabilidade criminosa que é considerarmos como normal aquele discurso de ódio, só porque foi eleito, caiu-nos sempre em cima, quando o discurso se transformou em poder. Não nos lembramos?



"É público que o líder do Chega se afirma católico, vai à missa e comunga. Não sei como pode fazê-lo. Não me atrevo a julgar o íntimo de ninguém mas, enquanto católico, creio que há uma total contradição entre comungar e gritar disparates como aqueles que ele e o seu partido tantas vezes gritam.

Ontologicamente, a fé em Jesus expressa-se em comunidade. Comungar na missa é, por isso, uma afirmação de comunhão com Deus, através das suas criaturas. Desde logo, com todas as mulheres e homens que habitam neste planeta. Para um cristão, as pessoas concretas – cada pessoa, mesmo aquelas que não conheço, as que me são pouco simpáticas ou até as que detesto – são o rosto real de Deus.

Na linguagem cristã, dizer que ninguém é perfeito é dizer que somos todos pecadores  limitados na nossa imperfeição). Mas não falo da imperfeição inerente à condição humana. Uma coisa é ser imperfeito. Outra, bem diferente, é gritar coisas que são a antítese absoluta do Evangelho (não me refiro a ideias, porque o Chega não as tem; apenas grita mentiras, demagogias e indecências).

E é isso que se passa: o Chega defende, em muitas coisas, o oposto do Evangelho e da tradição cristã (e judaico-cristã). Quando Abraão acolhe os três estrangeiros em Mambré, é o próprio Deus que está a acolher. A história está no Génesis, o primeiro livro da Bíblia, no capítulo 18, caso porventura no Chega não a saibam localizar. A sua leitura é edificante.

Uma página deste jornal não seria suficiente para reproduzir as dezenas de citações, advertências, apelos do próprio Deus sobre este tema (para quem crê que é Deus que fala na Bíblia, claro). Como esta, do livro do Levítico (19, 33-34): “Se um estrangeiro vier residir contigo na tua terra, não o oprimirás. O estrangeiro que reside convosco será tratado como um dos vossos compatriotas e amá-lo-ás como a ti mesmo, porque fostes estrangeiros na terra do Egipto.” Ou no Deuteronómio (10, 18-19): “Ele [Deus] faz justiça ao órfão e à viúva, ama o estrangeiro e dá-lhe pão e vestuário. Amarás o estrangeiro, porque foste estrangeiro na terra do Egipto.” Ou quando, no livro de Ezequiel (16, 49), se lembra o verdadeiro pecado de Sodoma (que não é a sodomia que muitos pensam): “Eis em que consistiu o crime de Sodoma: orgulho, abundância de alimentos e insolência; estas foram as faltas que cometeu e as de suas filhas: não socorreram o pobre e o indigente.”

Vale a pena lembrar ainda o apelo do Êxodo (23, 9) para que não se oprima o estrangeiro? Ou o aviso do profeta Malaquias (3, 5) contra os que “roubam o salário do operário” e os que violam “o direito do estrangeiro”? Ou o rogo (I Livro dos Reis 8, 41-44) a que se atendam “todos os pedidos do estrangeiro”?

A Bíblia (não) dá para tudo
Jesus continuou nesta lógica, claro, em relação aos bandidos, prostitutas, adúlteros, estrangeiros (os samaritanos ou o centurião romano), presos e todos os proscritos do tempo em Israel. “Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo.” (Está em Mateus 25. Jesus fala em ir visitar quem está na prisão e não aumentar a pena de prisão para 65 anos, ou seja, para uma prisão perpétua disfarçada.)

É estranho, aliás, que um político que vai à missa e comunga veja inimigos e pessoas de mal em tanta gente – e ainda mais nas pessoas ciganas – e esqueça a máxima do amor ao próximo (a todos) e do amor aos inimigos – a maior exigência cristã.

Claro: a Bíblia dá para tudo. Até para dizer o contrário do que lá está ou do sentido que as palavras têm. Com a Bíblia na mão, muitos já justificaram o racismo e o apartheid, a escravatura e o colonialismo, a morte de “inimigos” ou “heréticos” nas cruzadas e na Inquisição. Quem isso fez frequentava mal a Bíblia. Quem defende a intolerância e promove o ódio continua, por isso, a mostrar a sua profunda ignorância sobre a Bíblia – mesmo ouvindo os seus textos nas missas, todos os domingos.

Em relação aos estrangeiros, é pena que a gritaria daquele partido não lhe permita conhecer todos os estudos que dizem que Portugal (e qualquer país de imigração) só tem ganho com os estrangeiros que para cá vêm trabalhar. Contribuições para a Segurança Social, impostos, força de trabalho, natalidade, quantos factores a ajudar o país.Convém estudar, já agora! Teve razão, aliás, o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na quinta-feira, recordando o que devemos, como país, aos estrangeiros.

Igreja e jornalistas, os meus problemas
E com isto o que quero? Dizer que tenho dois problemas. E não são com o Chega: é mesmo com a minha comunidade de fé, a Igreja Católica (enquanto instituição), e com a minha casa profissional, o jornalismo.

Com a Igreja: não entendo como os seus responsáveis se podem calar perante o discurso profundamente antievangélico daquele partido e a instrumentalização que ele faz da instituição. A mensagem cristã consubstancia-se na defesa dos direitos e da dignidade humana; da primazia dos trabalhadores sobre o capital ou do bem comum sobre a propriedade privada; da necessária protecção de refugiados, migrantes, pobres e injustiçados; na proclamação da paz contra a indústria do armamento; no acesso de todos à saúde e à justiça.

O líder do Chega gosta de dizer que prefere o Papa João Paulo II ao Papa Francisco. Provavelmente, não o diria se tivesse lido alguma das encíclicas sociais do Papa Wojtyla – em que ele defende todas aquelas prioridades.

Nisso, aliás, o Chega não está sozinho – e por responsabilidades da Igreja institucional, que não promove a formação dos seus crentes na doutrina social católica, fundada no Evangelho. A social-democracia, que nasceu cruzando influências marxistas e da doutrina social da Igreja, é hoje essencialmente um liberalismo mal disfarçado (pobre Sá Carneiro, que bebeu precisamente no Evangelho a sua forma de intervenção política). E a “democracia-cristã” há muito que se eclipsou, esquecendo a sua matriz e adoptando um populismo liberal, demagógico e amorfo.
Com os meus camaradas jornalistas tenho também um problema. Existencial, no caso: porque se dá tanto espaço e tempo a quem se limita a gritar e a criar epifenómenos que se esvaziam no momento seguinte?

Ah, a democracia e tal, foram eleitos e mais não sei quê. Nada disto justifica o tempo exagerado, o espaço, o fazer daquele um discurso normalizado, que não o é. Hitler também foi eleito numa eleição democrática e sabemos em que tragédia acabaram os nossos pais e avós. A irresponsabilidade criminosa que é normalizar aquele discurso de ódio, só porque foi eleito, caiu-nos sempre em cima, quando o discurso se transformou em poder. Não nos lembramos? A gritaria que apenas busca o protagonismo deve ser reduzida à sua insignificância.

É um exagero falar de fascismo? Foi sempre na recusa do outro e da diferença que germinaram (e continuam a germinar) todos os fascismos. Sejam eles os que levaram ao inominável da Shoah, sejam os salvinis, orbáns, erdogans, modis ou putins da actualidade. Não tenho dúvidas de que, se o Chega fosse poder, não haveria lugar para a divergência democrática, para a busca de consensos e o respeito pela dignidade humana.

O caminho? Para os cristãos, conhecer o Evangelho e o pensamento social dos últimos papas. Para os jornalistas, uma reflexão sobre a responsabilidade de cavar a sepultura da própria profissão cada vez que se abre o microfone ou o bloco-notas à gritaria protofascista. Para a democracia e os democratas, o cultivo do exemplo cívico. Mas este discurso anticristão não pode avançar.

António Marujo (Jornalista e director do jornal digital 7Margens), Público, 24/07/2022

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