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segunda-feira, 27 de junho de 2022

As maravilhosas ruas familiares nos Países Baixos (e que Portugal devia imitar)



A estrada desaparece e ergue-se à altura do passeio. O passeio, por sua vez, passa a abarcar toda a rua. Os sinais de trânsito desaparecem, os semáforos também. Parece uma receita para o desastre, mas não é. É, aliás, uma experiência bem-sucedida daquilo a que os neerlandeses chamaram woonerf — que, em tradução literal, significa “área residencial”.

O conceito é simples: a circulação dos automóveis perde a prioridade, que passa a ser dada às pessoas. O resultado são ruas que se transformam, literalmente, numa espécie de sala de estar extra dos residentes, uma área de convívio, onde os miúdos brincam, os adultos conversam e o transporte preferencial é a bicicleta. Os carros, esses continuam a circular, mas de forma muito mais controlada e, acima de tudo, segura.

O design urbano de assinatura holandesa não é novo, mas está mais do que nunca em voga em algumas das cidades mais desenvolvidas de todo o mundo, à medida que o movimento verde vai tentando reclamar o espaço urbano que, nas últimas décadas, foi sendo dominado pelos automóveis. Em plena crise de habitação e num momento em que, nas grandes cidades portuguesas, se discutem os problemas de mobilidade, o woonerf parece ser a solução holandesa para um problema global.

Em Lisboa, por exemplo, debate-se a continuidade da ciclovia da Avenida Almirante Reis, ao mesmo tempo que se esgrimem argumentos pró e contra a redução da velocidade máxima no centro da cidade e em áreas residenciais. E enquanto tudo isso não passa de uma miragem, em muitas cidades holandesas é uma realidade que parece agradar a todos.

A viagem começa na década de 60 com uma experiência de Niek de Boer, o homem responsável pelo planeamento urbano da pequena cidade de Emmen, desenhada sob o conceito que viria a receber o nome de woonerf. A ideia era simples: promover a coexistência (pacífica) dos carros com peões, ciclistas e outros utilizadores das vias.

Uma das medidas implementadas foi precisamente a eliminação dos elementos que separam e distinguem as estradas dos passeios. As vias por onde podem circular os automóveis foram redesenhadas, receberam árvores, plantas, bancos e alguns obstáculos que pretendem desincentivar os automobilistas a carregarem no acelerador. Quando a prioridade nestas vias é dada aos peões, os carros, inevitavelmente, desaceleram.

Na reconstrução pós-guerra, os arquitetos urbanos neerlandeses olharam para os vizinhos escandinavos e inspiraram-se nos seus espaços residenciais para criar ruas mais convidativas, mais cómodas e preocupadas em melhorar a qualidade de vida dos residentes, sem alienar, claro, os que necessitam de se deslocar de automóvel.

Uma das cidades holandesas que se tornou num caso exemplar foi Delft, que arrancou com o projeto durante as décadas de 60 e 70. Era também um reflexo da vontade dos próprios neerlandeses, cada vez mais insatisfeitos com o tráfego automóvel que dominava as ruas.

Não se pense que os automobilistas ficam completamente esquecidos. Nas regras está a criação, quando possível, de espaços de estacionamento. Simplesmente, a prioridade é dada às pessoas: uma inversão aparentemente básica, mas que tem implicações drásticas.

As woonerf são, também, uma forma de obrigar os condutores a desacelerarem sem necessidade de recorrer aos truques habituais como semáforos ou lombas. Chamam-lhes “lombas mentais”: quando os automobilistas percebem que não há distinção entre estrada e passeio e percebem que, no mesmo espaço, brincam crianças e peões, há uma necessidade automática de abrandar, mesmo que a lei permita velocidades mais elevadas.

Será responsável deixar-se tal decisão à mercê do critério dos automobilistas? A verdade é que, nestes locais onde coabitam bicicletas, peões e carros, os estudos indicam que existem, efetivamente, menos acidentes. De acordo com o “The New York Times”, a diferença chega a uma redução de mais de 40 por cento no número de acidentes.

“A motivação para que algo fosse feito a nível político foi a questão da segurança rodoviária”, explica André Pettinga, antigo engenheiro camarário na cidade de Delft, num estudo de 2021 sobre tema. “Apostou-se em lombas, nas chicanas, no estreitamento das estradas, dos cruzamentos. No livro de qualquer engenheiro estavam os grandes cruzamentos, as grandes vias, as grandes curvas. Tornar tudo mais pequeno foi efetivamente uma revolução.”

Fonte: NIT

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