Serge Stroobants é o diretor para a Europa, Médio Oriente e Norte de África do Instituto de Economia e Paz, conhecido pelo seu Global Peace Index, e apresenta hoje em Lisboa o Relatório de Ameaças Ecológicas. Ao DN, por email, falou do aquecimento global e do aumento da violência no mundo.
Normalmente quando pensamos em aquecimento global ou alterações climáticas não pensamos em conflitos ou guerra. Qual é a ligação entre os dois conceitos?
O Relatório de Ameaças Ecológicas [ETR, na sigla em inglês] mostra que estas e as alterações climáticas representam sérias ameaças ao desenvolvimento global e à paz. Os efeitos adversos vão afetar de forma desproporcional os países mais pobres e mais vulneráveis do mundo e criar pressões indiretas nos países vizinhos através do movimento em massa de pessoas e extração de recursos. Construir resiliência às ameaças ecológicas será cada vez mais importante e irá requerer já hoje um investimento substancial. Muitas ameaças ecológicas existem independentemente das alterações climáticas. Contudo, estas têm um efeito amplificador, causando mais degradação ecológica e empurrando alguns países para pontos de inflexão violentos. Olhando para o futuro, as alterações climáticas vão atuar como um multiplicador de ameaças, exacerbando potencialmente a concorrência e tensões entre os países com menos recursos e resiliência.
E que países são esses?
O relatório identificou 30 países que são hotspots [pontos quentes], sendo que 28 desses 30 estão também na metade inferior do Global Peace Index [GPI] do Instituto de Economia e Paz. Onze dos 15 países com maior impacto ecológico estão já em conflito e os outros quatro países estão a cair na armadilha da violência e estão à beira desse conflito. Os recursos vão continuar a esgotar-se e a luta para aceder e eventualmente gerir esses recursos vai continuar a intensificar-se. Por exemplo, notámos um aumento de 270% nas disputas relacionadas com água na última década, concentradas em países como o Iraque ou o Iémen, mas também vimos um aumento forte (250%) da violência para resolver essas disputas. Esta é uma tendência que irá continuar. Estes são os ciclos viciosos que o relatório
menciona.
É importante a Administração de Joe Biden ter vindo dizer que as alterações climáticas representam uma ameaça crescente à segurança nacional dos EUA?
É importante porque sublinha a relação entre as ameaças ecológicas e a segurança. Chama a atenção para a luta por recursos e os seus efeitos nas migrações. Como disse, o relatório identificou 30 hotspots, países onde o impacto das ameaças é maior e a resiliência é menor. Estes países são a casa de 1,26 mil milhões de pessoas, que enfrentam o risco potencial de deslocamento. Ao todo, 3,3 mil milhões de pessoas vivem hoje em 47 países que enfrentam riscos ecológicos elevados ou extremos, sendo que o número irá aumentar 2% até 2050, quando 4,7 mil milhões de pessoas ou 48,7% da população mundial viverá nesses países. O relatório refere ainda que a evolução demográfica será mais forte nos países mais afetados ou onde a ameaça é maior, que são também países com níveis baixos ou muito baixos de paz.
Quais são as ameaças para Portugal?
Portugal tem uma pontuação de 1 no índice, o que revela uma ameaça muito baixa. Está em 28.º de 178 países, mas esta é uma classificação relativa. O maior risco prende-se com o indicador da água e das anomalias de temperatura. Mas Portugal é um país europeu e, como a maioria dos países da União Europeia, está exposto a um número reduzido de ameaças e desenvolveu altos níveis de resiliência. Daí o ranking muito bom. Os países onde a resiliência é alta não têm pontuações más, porque têm a adaptabilidade para tomar os passos necessários para evitar ou mitigar as ameaças.
Falou no GPI, pelo qual o instituto é mais conhecido. Este é o segundo relatório sobre ameaças ecológicas. Porque é que decidiram abordar este tema e qual é a correlação entre os dois relatórios?
Foi simplesmente por causa da forte relação entre a degradação ecológica e os conflitos. O instituto tem como objetivo uma mudança de paradigma de forma a que o mundo pense na paz, usando investigação baseada em dados para mostrar que a paz é uma medida positiva, tangível e alcançável do bem-estar humano e desenvolvimento. Fazemos isto desenvolvendo índices globais e nacionais, calculando os custos económicos da violência, analisando o risco dos países e as fragilidades e compreendendo a Paz Positiva. Ao todo, 19 dos 20 países com a maior pontuação no ETR estão entre os cem países menos pacíficos medidos pelo GPI. Estes países incluem o Afeganistão, o Iémen, a Somália, o Níger, o Burkina Faso e o Paquistão. À medida que a paz se deteriora, o nível do ETR tende a piorar. Como resultado, os países com alto ou muito alto índice de paz tendem a ter um ETR melhor do que os países com níveis de paz médios, baixos ou muito baixos.
Angola e Moçambique, dois dos membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, estão entre aqueles com o ETR mais elevado. Porquê?
As previsões apontam para que ambos dupliquem a sua população até 2050. No caso de Angola terá o segundo maior crescimento populacional a nível mundial. Ambos também têm alguns dos níveis mais elevados de malnutrição e insegurança alimentar. A relação entre a paz e a insegurança alimentar, a falta de água e o crescimento populacional é complexa. Mudanças adversas no ambiente natural podem levar ao aumento das tensões sociais e à agitação civil se as sociedades não tiverem os níveis necessários de resiliência para lidar com estas ameaças. Da mesma maneira, o conflito e o crescimento populacional descontrolado têm impactos bem documentados no ambiente. Estas duas dinâmicas - de aumento da escassez de recursos e conflito - podem criar um ciclo vicioso onde uma aumenta a possibilidade da outra, levando a sociedades falhadas.
O vosso relatório não mostra apenas o cenário negro, também oferece recomendações para tentar quebrar este ciclo. O que pode ser feito para impedir que a situação piore?
Em 2020, o instituto organizou uma série de seis seminários com 60 peritos de governos, think tanks, instituições militares e organizações de desenvolvimento para explorar opções políticas com base no relatório do ano passado. A principal contribuição desse relatório foi a identificação e análise do ciclo vicioso que existe entre os conflitos violentos e a degradação dos recursos. Países que sofrem a pior degradação ecológica também tendem a ser alguns dos mais violentos. Uma mensagem recorrente dos seminários foi que é pouco provável que a comunidade internacional consiga reverter os ciclos viciosos em algumas partes do mundo. É o caso em particular no Sahel ou no Corno de África, com os seus elevados níveis de degradação de recursos, crescimento populacional e correntes conflitos.
A recente queda do Afeganistão para os talibãs pôs em destaque a incapacidade de as grandes democracias ocidentais implementarem uma agenda de desenvolvimento para o país. O estudo da Universidade de Brown sobre os custos da guerra diz que o governo norte-americano gastou 2,261 biliões de dólares na guerra do Afeganistão. Isso não inclui os gastos das forças da coligação ou os gastos norte-americanos no vizinho Paquistão. Ou seja, o custo per capita da guerra é mais do que cem vezes o rendimento anual per capita do Afeganistão e dado que o estudo foi conservador, o verdadeiro custo pode ser muito maior. O exemplo afegão demonstra que o modelo para os programas de desenvolvimento e de construção de resiliência precisa de ser revisto para desenvolver um alinhamento mais próximo às necessidades das comunidades locais. Os desafios sistémicos requerem análises sistémicas que levam a soluções sistémicas. Aconselhamos o agilizar da revisão dos esforços de desenvolvimento com uma abordagem internacional compreensiva e concertada. Enfrentar a degradação ecológica reforçada pelas alterações climáticas está na casa dos mil milhões agora, mas irá ser de biliões nos próximos anos. Só os conflitos custam 600 mil milhões por ano, isto irá aumentar gradualmente até aos biliões se não for tratado de forma adequada e sistemática. O custo total da violência é estimado em 14,5 biliões. Imagine quanto dinheiro poderia ser redirecionado para a ajuda ao desenvolvimento e climática se mudássemos o paradigma existente! Apenas um ou dois por cento, sendo que 1% já representa o equivalente ao orçamento para a ajuda global ao desenvolvimento.
O que espera ver dos líderes mundiais na cimeira do clima em Glasgow (COP26) que começa no domingo? Acha que haverá algum avanço?
Eles precisam de concordar num investimento mais considerável do que o que está a ser feito hoje para responder a muitos dos temas e quebrar o ciclo vicioso de degradação ecológica e violência que muitos países sofrem e vão continuar a sofrer. O que devíamos esperar dos nossos líderes era uma mudança de paradigma e a concentração na natureza sistémica dos problemas em causa.
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