«Temos de agradecer à vida as possibilidades que nos dá de recomeçar. Penso na máxima repetida por Santo António Abade, fundador do monaquismo. De forma lapidária, ele explicava: “Em cada manhã digo ao meu coração: hoje começo.” Mas pode acontecer que perante a ideia de recomeçar nos sintamos impreparados. Como quando os “regressos” de setembro parecem requerer um suplemento de energia e um alento que havíamos jurado recuperar no período de férias, mas que percebemos agora que não foi assim. Ou quando o tempo fora de nós (o das agendas, dos ciclos de trabalho, da pressão social) não coincide exatamente com o tempo interior que estamos a viver. Na verdade, porém, isso não constitui um obstáculo para recomeçar.
O sentimento de impreparação, quantas vezes não o experimentámos já! De certa maneira, e na proporção devida, é condição do próprio recomeço. Sem ele não nos sentiríamos principiantes (que é a maneira mais bela de honrar a vida); não olharíamos para o que vem como um horizonte aberto, do qual há tanto a aprender; não nos tornaríamos exploradores do casual e do novo; não irromperíamos tremeluzentes como o fazem as dezenas de flores que escolhem florescer não na primavera, mas em pleno outono (por exemplo, a flor do medronheiro, as candeias, o açafrão-bravo, a torga). Sempre que recomeçamos, a vida nos toca com maior intensidade. E se insiste em mobilizar em nós uma força súbita, um impulso e um ardor cuja evidência não vemos é, no fundo, para nos despertar, para nos demonstrar que tal é possível, e nos introduzir, desse modo, numa tensão criativa que não é senão a forma plástica que resgata a vida da rigidez, da estase ou do desânimo.
Encaremos, portanto, com confiança os recomeços, tão vitais mesmo na sua exigência; tão propícios, ainda se nos colhem num movimento desfasado, com perplexidades e demoras. Hannah Arendt escreveu: “O curso da vida humana, direcionado para a morte, conduziria o ser humano ao declínio e à destruição se este não tivesse a faculdade de interrompê-lo e de iniciar algo de novo... Os seres humanos, mesmo se devem morrer, não nasceram para morrer, mas para começar.” Somos chamados a isso em ocasiões diferentes da nossa vida, e as causas podem ser muito concretas: um sofrimento ou uma alegria, uma transformação, um objetivo a atingir. Mas podem ser também razões mais amplas, como se começar/recomeçar se tornassem simplesmente a nossa atitude perante a existência, como o Padre do deserto, Santo António Abade, propunha.
Essa espécie de lento parto que recomeçar significa não está dito que seja indolor. Contudo, será sempre melhor do que passar pela vida que nos pertence como um estranho, sem chegar nunca ao seu âmago, sem ter compreendido apaixonadamente o que se pode entender e olhado, com consciente espanto, a porção irremovível de mistério nela contida. Um coração amadurecido sabe que a vida não se consuma em campos necessariamente alternativos (ou isto, ou aquilo), mas espera de nós a capacidade de desenhar complementaridades. É na noite que a aurora começa. Não raro, os risos mais inesquecíveis chegam acompanhados de abundantes lágrimas. E, com a perceção dos nossos limites, aprendemos a conhecer não apenas a impotência, mas também possibilidades que não víamos. Avizinhamo-nos melhor daquilo que somos. O poeta Miguel Torga contava assim como chegou à escolha do seu pseudónimo: “Torga é uma planta transmontana, urze campestre, cor de vinho, com as raízes muito agarradas e duras, metidas entre as rochas. Assim como eu sou duro e tenho raízes em rochas duras.”»
José Tolentino Mendonça
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