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sexta-feira, 30 de julho de 2021

Quatro peritos mostram como a agricultura pode ajudar ou destruir a biodiversidade

Falta pouco para entrar em consulta pública no nosso país o Plano Estratégico para a Política Agrícola Comum (PEPAC) para o período de 2023-2027. Quatro peritos falam de como a agricultura pode ajudar ou prejudicar a natureza.


WILDER: Quais os maiores impactos negativos da agricultura na biodiversidade em Portugal?

Maria Amélia Martins-Loução (SPECO): O maior impacto é a extensão, a massificação de culturas todas iguais (clones, sem variabilidade genética) e o tipo de exploração, intensivo, à base de rega e de nutrientes. As culturas, por si, não são gravosas. A principal questão tem a ver com a extensão das explorações e o modo como são exploradas como culturas únicas: o olival, o amendoal, daqui a pouco o nogueiral, mesmo a vinha, como culturas contínuas.

Domingos Leitão (SPEA): Os ecossistemas terrestres mediterrânicos beneficiam com um certo grau de intervenção humana. Por isso, muitos sistemas agro-pastoris ditos tradicionais albergam mais espécies de fauna e flora do que os sistemas naturais originais. O problema é quando o grau de intervenção humana aumenta para aquilo que se chama o uso intensivo e as estruturas naturais desaparecem completamente. A intensificação da agricultura é responsável por uma simplificação da paisagem, devido ao aumento do tamanho da parcela agrícola, à predominância de um único tipo de cultivo (monocultura) e ao desaparecimento ou redução drástica de estruturas “não produtivas” (bosques, bosquetes, sebes e linhas de árvores, margens naturais de ribeiras e linhas de água, charcas e outras zonas alagadas, e áreas rochosas ou pedregosas). Uma paisagem mais simples não possui os nichos de habitat suficientes para albergar muitas das espécies rurais mais especializadas, ficando apenas as poucas espécies generalistas. Adicionalmente, a intensificação agrícola acarreta também uma mobilização do solo mais frequente, uma utilização maior de fitofármacos e em muitos casos a cobertura com plástico, destruindo a biodiversidade do solo e o que restava da biodiversidade da vegetação.

Num primeiro plano, os cultivos mais graves neste momento são a intensificação associada ao regadio, que possibilita monoculturas intensivas de olival, amendoal, abacate, hortícolas e frutícolas, por vezes com estufas e outros processos extremamente artificiais que provocam a obliteração total da biodiversidade natural de vastas áreas do território. Num segundo plano, algumas formas de cultivo tradicionais, numa tentativa de competir com o intensivo aumentam o uso de fitofármacos e o uso do espaço levando a problemas adicionais em larga escala. Um exemplo é o aumento da densidade de animais nas explorações bovinas, levando frequentemente ao sobre pastoreio e à destruição dos habitats.

A agravar ainda mais o cenário de falta de espaço e artificialização do uso do solo, temos um aumento das mega-centrais fotovoltaicas.

Eduardo Santos (LPN): Alguns dos maiores impactos da agricultura sobre a biodiversidade estão relacionados com as mudanças nos usos do solo e com a degradação de habitats de espécies protegidas e/ou dos recursos naturais de que as mesmas dependem (como seja da quantidade e qualidade da água). Em particular é a intensificação agrícola e a adopção de práticas insustentáveis ou desadaptadas às nossas condições naturais que causam este tipo de problemas. Nesse sentido é a expansão descontrolada do regadio/culturas intensivas (ex. culturas permanentes super-intensivas de olival, amendoal ou outros pomares intensivos e muito consumidores de água e de fertilizantes/fitofármacos), o sobre-encabeçamento pecuário, ou como recentemente se denunciou na Costa Sudoeste, a instalação desregrada e o rápido aumento da área de estufas/culturas cobertas.

Catarina Grilo (ANP-WWF): A questão da intensidade da agricultura é deveras preocupante e já tem implicações na qualidade de vida das populações que vivem perto destas culturas (há relatos recentes, incluindo em notícias), e mais cedo ou mais tarde terá também na saúde dos consumidores. Há culturas e modos de produção que são desadequadas para as condições edafo-climáticas (solo e clima) que temos: cultivar abacates, uma cultura tropical que precisa de muito calor (que temos) e muita água (que não temos) não faz sentido, e não é por acaso que os abacates não são originários de cá. Por muito eficiente que possa ser uma produção de abacates em termos de consumo de água, continuará sempre a consumir muita água que não temos. Os modos de produção intensivos também são desadequados para os nossos solos, maioritariamente pobres.

W: De que forma pode a agricultura fomentar a biodiversidade? Que exemplos concretos de medidas que os agricultores podem tomar?

Maria Amélia Martins-Loução: Deixando manchas biodiversas entre explorações, mantendo a variabilidade genética das cultivares como reduto, não limpando as entrelinhas, o que significa deixar mais espaço entre culturas para manter alguma biodiversidade. Claro que a parte económica também é importante, por isso o que é produtivo devia ser incentivado mas com regulação em termos de água e nutrientes. A agricultura consome mais de 70 % da água doce disponível, maioritariamente de rios e toalhas freáticas. Mas as alterações globais, a poluição e a sobreexploração irão afectar a quantidade e qualidade de água disponível. 

O modo como o sistema responde depende da diversidade de organismos, abaixo e fora do solo, que desenvolvem diferentes funções complementares que operam como um todo. A diversidade do solo é uma componente ecológica responsável pela funcionalidade do ecossistema, que explica a capacidade competitiva das espécies, os padrões de co-ocorrência dessas espécies, o estabelecimento de comunidades, a estabilidade do sistema, a produtividade e o balanço dos nutrientes. A lição aqui é óbvia: se um sistema agrícola tiver diversidade funcional todo o sistema é mais produtivo, menos afecto a pragas e mais resiliente face a extremos climáticos. Trata-se de um modo de gestão agrícola que tem por base o conhecimento ecológico sobre a gestão dos ecossistemas naturais. O foco é aumentar a capacidade de armazenamento de carbono e recuperar solo.

Domingos Leitão: Ao nível das estruturas não produtivas da paisagem, os agricultores podem proteger bolsas de biodiversidade que existem nas suas explorações, mantendo as sebes e bosquetes, as galerias de vegetação arbustiva e arbórea nas margens das ribeiras e canais, e as charcas e áreas paludosas que possam ter nas margens dos campos. Manter o que existe não dá trabalho, nem tem custos adicionais. Mas também podem criar refúgios para a fauna e flora, com custos económicos mínimos, através da manutenção de faixas por lavrar de vegetação natural juntos às linhas de água, margens dos campos e cabeceiras rochosas, construção de montes de pedras e troncos (maroços), instalação de caixas-ninho e criação de charcas artificiais com vegetação palustre.

Ao nível da gestão agrícola, só com a diversificação de cultivos já favorecem a biodiversidade. Depois podem optar por implementar rotações de cultivos com pousios, por modos de produção extensivos, deixar restolhos por lavrar, reduzir a densidade de gado nas pastagens, entre muitas práticas que deviam ser apoiadas pela PAC e não são.

Eduardo Santos: Embora representem ainda a menor parte do investimento da PAC, existem já medidas/apoios agroambientais que promovem espécies e habitats naturais, que devem ser ampliados, melhorados e replicados. É o caso das medidas dirigidas às aves estepárias no âmbito do plano zonal de Castro Verde (com apoios para a rotação ceral/pousio, por exemplo), a medidas para o lobo-ibérico (que apoia produtores pecuários extensivos a prevenirem prejuízos causados por esta espécie), ou os pagamentos Natura (como medida de discriminação positiva para as explorações localizadas em Rede Natura 2000). A agricultura, silvopastorícia e produção florestal podem, e frequentemente são, um aliado fundamental na conservação da natureza, têm apenas de ser desenvolvidas de forma sustentável e conciliada com os valores naturais de cada local. Só assim teremos uma PAC e uma agricultura que sirva as pessoas, a economia e o ambiente.

Catarina Grilo: É preciso também trazer os representantes destes agricultores e gestores bem intencionados para a discussão e ter os seus contributos em conta. O atual PEPAC claramente não os teve. Mas a incorporação de medidas que incentivem a proteção da biodiversidade, um uso parcimonioso da água, a recuperação de solos degradados, a mitigação das alterações climáticas, etc., não se faz só com a participação dos representantes dos agricultores. As ONGA, as associações de consumidores, entidades da área da saúde e da conservação da natureza, associações de desenvolvimento local – todos são também partes interessadas e com conhecimento aprofundado para contribuir para que o PEPAC, e a agricultura nacional, possa fazer a transição para a sustentabilidade que tantos desejam.

W: Actualmente, quais os maiores obstáculos à criação de mais espaço para a natureza em terrenos agrícolas em Portugal, por parte de agricultores e gestores de terrenos bem intencionados? 

Maria Amélia Martins-Loução: Julgo que hoje em dia há já novos agricultores sensíveis para estas questões. Mas a formação contínua, o apoio técnico-científico e supervisão são necessários. Há mesmo casos de sucesso onde se privilegia a biodiversidade entre linhas de culturas, em manchas laterais acessórias. Mas tudo isto devia ser incentivado e até premiado para que mais agricultores possam seguir estes exemplos. Diminuir a produção total, tendo por base assegurar uma diversidade funcional, tanto abaixo como acima do solo, com repercussões positivas para a sua resiliência pode e deve ser uma mais valia a ser incentivado até como minimização das alterações climáticas. 

Domingos Leitão: Sem dúvida é a falta de informação e de incentivo económico para isso. Muitos agricultores implementam já práticas benéficas que não têm custos, mas muito poderia ser feito se houvesse exigência e incentivo para isso na PAC. A exigência com respeito à agricultura intensiva, mais destrutiva, que não deveria receber qualquer apoio da PAC se não implementasse as medidas básicas e efetivas de proteção do solo, água e biodiversidade. Incentivo para a agricultura extensiva, com práticas e variedades tradicionais, que deve ser apoiada pelos benefícios públicos que produz.

E depois temos os agricultores dentro da Rede Natura 2000, que têm que manter práticas agrícolas especiais, pouco produtivas e que o mercado não remunera, como a rotação com cereal de sequeiro nas ZPE (Zonas de Protecção Especial) estepárias no Alentejo, o barrocal no Algarve, os olivais em socalco no centro e Norte interior ou o pastoreio de percurso nas montanhas. Estes agricultores e criadores de gado têm de ser apoiados, porque precisamos do seu trabalho para manter paisagens e ecossistemas ameaçados. Se não o fizermos vamos perder as pessoas e o património natural que protegem. A verdade é que até agora não foram suficientemente apoiados. Dos mais de 4.000 milhões de euros que a PAC coloca em Portugal, o Ministério da Agricultura apenas retirou 1,2% (pouco mais de 50 milhões) para medidas de apoio à agricultura na Rede Natura 2000, que ocupa 20% do território. Tinha prometido mais, mas a meio do quadro de apoio desviou dinheiro da Rede Natura 2000 para mais regadios no Alentejo.

Com falsas políticas ambientais, medidas pouco exigentes e sem o investimento necessário não vamos conseguir proteger a rica biodiversidade dos meios rurais.

Eduardo Santos: Claramente, falta uma PAC que promova verdadeiramente esse objectivo, com incentivos adequados técnica e financeiramente e sem subsídios/apoios perversos que actuem em sentido contrário (como tem acontecido até agora). O Plano Estratégico nacional para a PAC tem a obrigação de promover este tipo de objectivos, gerando evidentes benefícios sociais e ambientais com o enorme investimento financeiro que esta política representa, e não perpetuando uma estratégia de produção agrícola insustentável e lesiva do interesse (da saúde) dos cidadãos e da natureza.  

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