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quinta-feira, 12 de novembro de 2020

“Se podemos ser um exemplo, sem andar a chatear ninguém, ótimo”: Gonçalo Ribeiro Telles 1922-2020

“Tive uma filha que morreu nova. Tinha pouco mais de 30 anos. Tudo isso ajuda a perceber onde estamos e as fragilidades que temos. Todos temos os mesmos problemas e as mesmas dificuldades. Talvez não as resolvam de igual maneira. Se podemos ser um exemplo, sem andar a chatear ninguém, ótimo”: há cerca de sete anos e meio, Gonçalo Ribeiro Telles concedeu ao Expresso uma longa entrevista que se torna tão curta quando se chega ao fim - entre revelações pessoais, uma magnífica descrição sobre o Douro e a história de como parte importante da sua aprendizagem advém de “um tio velhote que era coxo”, Gonçalo Ribeiro Telles termina a explicar o que é mistério do montado, que na verdade é o mistério da eternidade. Tinha 98 anos, morreu esta quarta-feira e esta é a republicação dessa entrevista de abril de 2013 que explica o homem e o arquiteto


Nasceu a olhar para os ulmeiros da Avenida da Liberdade. A relação com Lisboa começou entre a Rua das Pretas e de São José, na casa da família onde ainda hoje mora, num segundo andar sem elevador. Todos os dias, Gonçalo Ribeiro Telles desce a escadaria de madeira a pé e percorre a cidade. É um cidadão notável, de obra cheia, que tocou todos os aspetos do fazer da nossa paisagem. Foi professor e fez escola. Foi político e responsável por leis fundamentais de proteção do nosso património, como a Reserva Agrícola Nacional (RAN) e a Reserva Ecológica Nacional (REN). Aos lisboetas deu os jardins da Fundação Gulbenkian, o corredor verde entre o Parque Eduardo VII e a mata de Monsanto. Só para falar das obras mais emblemáticas. Recebeu-nos em sua casa poucos dias depois de ter tido a notícia do prémio Sir Geoffrey Jellicoe, atribuído na Nova Zelândia e considerado o mais alto reconhecimento na disciplina de Arquitetura Paisagista. Não falámos de política. Nem de ecologia ou planeamento. Essas matérias estão sempre implícitas nas suas palavras. Nesta conversa visitamos a memória de Ribeiro Telles. Permanentemente atravessada pela paisagem e por um sentir das coisas essenciais.

O que significa este prémio para si e para a arquitetura paisagista portuguesa?
Para a arquitetura paisagista é o reconhecimento de uma matéria que está fora dos hábitos e das visões deste tempo. Para mim significa o reconhecimento de uma obra para a qual contribuíram muitas pessoas e que reflete uma vida que me satisfez, por me ter sentido à vontade comigo próprio.

Chegar a esta idade e poder dizer isso é muito compensador.
Isso é. A vida foi-me propondo este caminho. Porquê, não sei. Nasci urbano mas com um grande pé no campo. A minha família era de Coruche e de férias ia para lá. Mas não ia para gozar o campo. Ali era o campo autêntico.

O que é o campo?
A resposta é simples, você sabe o que quer dizer. É o contrário da praia. Quando se vai para o campo não se vai para a praia mas vai-se com as mesmas vantagens de se estar em contacto com a natureza. É uma procura que o citadino faz para fugir do meio urbano e encontrar o horizonte ou qualquer outra coisa que nos faz muita falta. Nós somos um elemento muito especial da natureza, fazemos parte. Tudo isto pressupõe uma procura cultural. Hoje a ida para a praia é uma revolta contra a cidade.

Como manifestava o seu interesse pelas coisas da natureza?
Metia o nariz em tudo. Nas lavouras, ia ver como funcionava o rebanho. Também me interessavam as aves.

Ia de carro para Coruche?
De comboio. Partíamos do Rossio e apanhávamos a linha de Vendas Novas. Era uma linha linda. Atravessava os montados, os arrozais e tudo isso me cativava. Gostava de escrever e fazia uns textos sobre o anoitecer no comboio.

O que escrevia?
Descrevia a transição do dia para a noite, que é muito diferente do campo para a cidade, e de como essa diferença marca.

Não ia para a praia?
Ia um mês para Santa Cruz. Sabe onde é?

Sei.
Gosta?

Não me diz muito.
Pois é. Essas coisas são afetivas. Foi o meio que me conduziu a esta sensibilidade. A família tinha umas quintas e íamos na carreira de Torres Novas. O meu pai, quando podia, aparecia a cavalo. Nesse período era a vida da costa e dos rochedos que me entusiasmava. Naquelas praias fazia-se a pesca do pequeno barco que levava três a quatro homens. Praticava-se uma pesca familiar, hoje fora de moda, e os pescadores de rochedo andavam no polvo e às amêijoas.

Ia com eles?
Não. Apanhar polvo era muito chato. Andava por ali a pé a ver. Naquele tempo tudo estava mais perto do olhar. Os carros andavam a 30 quilómetros à hora. Era um caminhar completamente diferente. Todas estas coisas me ensinaram a ver o território.

Tinha um grupo ou explorava sozinho?
Em Coruche havia muitos primos. Era uma coisa complexa porque a família era numerosa.

E irmãos?
Tive um. Foi para cavalaria. Morreu cedo.

O seu pai o que fazia?
Também morreu cedo. Era oficial no exército e mestre veterinário. O meu pai fazia a compra dos cavalos para o exército e quando ia ao Minho comprar eu ia com ele. Achava piada ver aquilo tudo: saber de onde vinham os garranos, assistir à compra, ver como eram as pessoas que os vendiam.

E a sua mãe?
Tinha estudado canto, fazia aquilo a sério, mas desistiu porque achava que não tinha qualidade suficiente. Lembro-me dela a estudar canto. Nessa altura todas as senhoras o faziam. Não sabia que era assim? Algumas eram péssimas.

Como era a sua mãe?
A minha mãe? Achavam-na estranha.

Estranha?
Sim. Tinha a poesia das coisas pequenas.

Em que é que se traduzia isso?
Um menino pequenino passava lá na rua e ela tinha logo de o conhecer e encontrava sempre qualidades na criança; o amor por uma cadelinha que andava colada a ela. Traduzia-se em coisas desse género. Não entrava no jogo social da época. Gostava de ir à ópera por gostar e não por ser necessário. Talvez a achassem estranha por ela ser verdadeira.

Herdou dela essa parte? Tentou ser sempre verdadeiro na luta pelas suas convicções.
As heranças são muitas coisas. Uma parte importante da minha aprendizagem fui buscá-la a um tio velhote que era coxo. Estudou e publicou muito sobre as iluminuras renascentistas e medievais. As iluminuras, ou os livros de horas, eram os calendários dos ricos, que os mandavam fazer aos pintores. Representavam o trabalho do campo mês a mês, ao longo do ano, e descreviam o que se fazia em cada época. Em Itália fazia-se de uma maneira, em França de outra. Já viu um desses livros de horas? Eu mostro- lhe. [Levanta-se] Cá está. [Passa as páginas devagar] Ora veja: “Inverno, outono, lavoura, recreio, o prado, a pesca, a vindima...”. E lá ao fundo sempre a cidade em silhueta. [Aponta para a cidade] Quando isto transbordou cá para fora destruiu o campo.

Essa relação entre cidade e campo teve muita importância na sua obra. Ainda não falámos da sua cidade.
A minha cidade foi sempre aqui. Nasci na Rua das Pretas, na esquina com a Avenida da Liberdade, e depois vim morar um pouco mais abaixo, para este prédio na Rua de São José, dos meus bisavós, onde vivia toda a família. Nunca saí deste lugar. Tive essa sorte.

E como era?
A minha cidade estava muito dependente do campo e o campo entrava dentro da cidade. Não calcula o que era o movimento de carros de mulas e de bois carregados de hortaliça que vinham pela Estrada de Benfica até à Praça da Figueira. Eu vivia ali na esquina e ia ver o que faziam. Uma coisa que me impressionava muito era a chegada dos pássaros aos ulmeiros da Avenida. Ao fim da tarde chegavam bandos e bandos de pardais que passavam o dia a comer nas searas dos arredores de Lisboa e vinham pernoitar nas copas das árvores. Aquele chilrear ensurdecedor anunciava a cair do dia. À noite aparecia sorrateiro um pássaro branquinho que passava à janela do quinto andar. Era a coruja a atravessar a Rua das Pretas em direção aos ulmeiros para ir papar. Os ulmeiros ainda lá estão, os pardais é que não. Desapareceram com o fim das searas.

E a escola?
A atenção estava sempre fora. A instrução primária fiz ali ao pé do Elevador do Lavra, num pavilhão em madeira todo envidraçado e rodeado de jardins. A senhora via-se aflita. Tinha uma reguazinha e quando um menino estava a olhar para os pardais ela vinha bater no menino. Levei com a reguazinha uma data de vezes. Também no liceu comecei por me dar mal. No Pedro Nunes era uma grande preocupação com as minhas notas, recuperar de um oito para um dez era uma dificuldade. Depois mudei para o Colégio Vasco da Gama porque tínhamos uma ligação ao diretor, que era de famílias conhecidas, e descansei.

Tudo está no início?
Tudo está na relação entre as coisas. A biblioteca do meu tio das iluminuras, com as suas 18 estantes, foi uma sorte espantosa. Mas houve outra sorte igualmente importante. Decidi estudar Agronomia e logo no primeiro ano aconteceu a coincidência de ter como professor de desenho o Francisco Caldeira Cabral. Ele tinha chegado nesse ano de Berlim para lançar o curso livre de arquitetura paisagista e eu sou dos primeiros alunos desse curso. Éramos quatro.

Em que ano foi?
Não me peça para fazer contas de cabeça.

O que o motivou a escolher a componente de arquitetura em Agronomia? O desenho?
Esse lado foi importante. Em miúdo pintava muito e gostava de desenhar paisagens. Pus a hipótese de Belas-Artes mas depois achei que seria uma chatice. No curso descobri o desenho organográfico. Foi uma grande sorte o professor Caldeira Cabral ter chegado de Berlim com aquela novidade da arquitetura da paisagem. As portas abriram-se no momento certo. Podia ter levado mais tempo a encontrar-me. Quando descobri a disciplina da paisagem comecei a
procurar as obras que me podiam auxiliar. Fui muito à literatura. Aos textos de Manuel de Melo e à “Floresta de Enganos”, de Gil Vicente, ao pastor e à pastora da pastorícia medieval. Andava à procura da ruralidade.

Nessa descoberta, o que o marcou mais?
Havia o trabalho de estirador e as viagens. O Caldeira Cabral todos os anos levava um pequeno grupo de alunos a visitar a universidade na Alemanha para aprender o que os paisagistas andavam a fazer. A minha primeira viagem foi de Volkswagen até Hanôver. Atravessámos Espanha pelas estradas de Castela Velha, França e depois subimos o Reno. Imagine o que se vê! A Alemanha era uma paisagem destruída pela guerra. Estavam a reconstruir tudo e tivemos a oportunidade de assistir. A referência e o estudo comparativo são fundamentais. Estas coisas deram-me uma leitura do meu território.

Que mais descobertas fez?
À partida temos tendência para achar que a paisagem é uma coisa natural. Que está ali. Quando comecei a estudar tive o reconhecimento de que ela está ligada a uma antecedência importantíssima, que é a Humanidade. Toda a paisagem é obra do homem, não é obra da natureza. Sem a mão do homem não valia nada. Quando se começa a perceber isto, o espanto maior é ver como é que determinada paisagem tem uma origem, não pictórica, não de cenário, mas como funciona na sua diversidade. Pense no Douro. O que é aquilo?

Está a pedir-me para descrever?
Descrever uma paisagem é complicado, não é? Corresponde a uma estética, que por sua vez
responde a uma função, e também é criação.

Pode descrever a paisagem do Douro?
Então, eu quando olho para o Douro vejo fundamentalmente um presépio de socalcos lindíssimos a subir as encostas, coroadas por uma mata, que vão cair sobre um rio cheio de salgueiros. Entramos no Douro e vemos aquela majestosa linha dos socalcos, com a vinha encarniçada no outono e os castanheiros lá em cima. Aquilo foi feito e não se pensou em paisagem. Mas o resultado está certo. As vidas e as técnicas ilustram-se.

É uma paisagem sublime.
E sabe porquê? A visão de certas paisagens aproxima-nos muito da experiência da transcendência. Daí o sublime. Mas isto acontece não por ser obra da natureza mas por ser uma criação do homem. Há duas maneiras de interpretar o sublime. Uma delas é intervir no meio. Todas as paisagens da Europa têm interpretação do homem. O reconhecimento é o primeiro ato criativo. Mas o homem não se fica pelo reconhecimento. O desenvolvimento da Humanidade vai criando sistemas cada vez mais complexos. O pior é quando se perdem os princípios e o sentido da paisagem.

O que distingue a arquitetura paisagista portuguesa?
Toda a intervenção num território tem um objetivo. A nossa especificidade é que soubemos traduzir no meio o que ele foi proporcionando e interessava ao desenvolvimento de uma cultura.

Para a qual contribuiu.
Todos contribuímos. Só não contribuiu quem não entendeu.

Referiu que andava à procura da ruralidade e falou desse saber vernacular. Mas nos nossos dias a ideia de ruralidade ganhou um sentido pejorativo. Porquê?
Por isso é que vai ser tão difícil recuperar.

Tem que ver com memória de pobreza?
Não. Tem que ver com luxo. No Mediterrâneo houve uma degradação maior, porque como o meio é mais sensível e mais rico em biodiversidade foi mais fácil. Todo o saber que tínhamos do terreno alterou-se com as possibilidades técnicas na obtenção de bens em tempos cada vez mais curtos. Ao acelerarmos o processo natural perdemos o correr das estações e o sentido de relação entre as coisas. Porque é que durante gerações tivemos por incumbência subir a encosta com pedras às costas e fazer muretes para segurar aquele solo? O trabalho do homem tem determinados objetivos. Um deles é a continuidade. A questão dos eucaliptos é interessante. Houve uma febre nacional de eucaliptização, agora os técnicos estão a coçar a cabeça. Aquilo só dá nove cortes, depois ficará desértico. Milhares de hectares não servirão para nada. A vida resulta de matéria orgânica. Vamos demorar 200 anos a recuperar. Quanto mais complexa é a vida de um território maior são as possibilidades de o usar.

A sua vida foi também política. De onde lhe vem o lado cívico?
Está ligado à Juventude Agrária Católica e à relação direta com os agricultores do Oeste. Na zona de Mafra e das Caldas da Rainha tinham nas mãos uma paisagem fundamental. Para terem agricultura, com o mar ali ao lado e os ventos salgados, faziam a agricultura dos canaviais com canas secas entrelaçadas. Vi naquele miolo extraordinário a obra do homem pela defesa da terra. Estes pescadores, quando saíam do mar, eram hortelões nas areias. Com eles aprendi o que está por baixo de tudo. O meu caminho da militância cívica e da política começou aí.

Ainda dá aulas?
Vou à universidade quando me pedem para discutir um tema. Interessa-me o diálogo.

Como é a sua vida agora?
É juntar papéis velhos.

Anda a tratar do legado?
Ando a juntar papéis e a dar-lhes sentido. Coisas que quero publicar porque andam desarticuladas das preocupações políticas atuais. Falta escrever sobre demografia e regionalização.

O que não serve deita fora?
Junto em resmas. Alguém que as deite fora.

O que ensinou aos seus filhos?
Só dei o exemplo. Não intervim para lá do essencial. Sempre houve grandes discussões sobre tudo e sobre todos e um debate aceso. É preciso é não deixar cair o debate em maledicência.

Em maio faz 91 anos. Quantos anos tinha quando se casou?
Deveria andar pelos 29. Ela também já se aproxima. Já não é uma rapariga nova.

Uma vida de casal nessa idade como é?
Um casal vai envelhecendo. Tenho a liberdade política de fazer o que quiser, contando que tenha um sentido. Principalmente que seja referência para os filhos. A minha mulher já sabe como sou, não precisa de referência nenhuma. Tenho seguido bem isso e tem dado bom resultado. É preciso não criar implicações rígidas, ter filhos é importante. As preocupações, ou as satisfações com os filhos, completam muito. Tive uma filha que morreu nova. Tinha pouco mais de 30 anos. Tudo isso ajuda a perceber onde estamos e as fragilidades que temos. Todos temos os mesmos problemas e as mesmas dificuldades. Talvez não as resolvam de igual maneira. Se podemos ser um exemplo, sem andar a chatear ninguém, ótimo.

E a eternidade? Acredita na vida eterna?
Faço por acreditar. Se estivéssemos sempre à espera que esta vida desse o bafo era uma chatice.

Que árvore escolheria para o representar?
Um sobreiro. É uma árvore que conheço desde pequenino. Quando me perguntam para onde vou fugir respondo sempre: para o montado. Tenho esta ideia de existência, não sei porquê. Talvez porque haja ali uma vida de grande bicheza, que julgo ser moldada à situação, e uma presença humana permanente. E depois tem estas árvores espantosas, os sobreiros. Sabe o que é o mistério do montado? É a gente entrar, não conhecer os caminhos e só ver troncos à frente. Tudo pode surgir e tudo acontece sem parar. No montado temos sempre pela frente o mistério. Também assim é a eternidade.

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