Quando vai ao supermercado, a quantidade de cores, formatos, marcas, desenhos, fotos e alternativas é desconcertante. À primeira vista, as suas possibilidades de escolha, para as refeições que tem pela frente, são cada vez maiores.
Mas, na verdade, a palavra mais marcante do padrão alimentar contemporâneo é monotonia. E isso representa uma tripla ameaça: à saúde, à segurança alimentar e aos serviços ecossistémicos dos quais todos dependemos.
Como assim? Como evocar monotonia, diante da estonteante variação das prateleiras?
O Estado Mundial das Plantas e dos Fungos(link is external), relatório recém-publicado pelo britânico Kew Royal Botanic Gardens, instituição prestigiada, dirigida pelo investigador brasileiro Alexandre Antonelli, ajuda a responder a esta pergunta.
O estudo mostra que as plantas comestíveis catalogadas globalmente pela ciência chegam ao impressionante número de 7.039. Destas, 417 são consideradas cultiváveis. As descobertas de novas plantas não cessam. Só em 2019, os botânicos registaram 1.942 novas plantas e 1.866 fungos que ainda não conheciam. No Brasil, duas novas espécies de mandioca selvagem foram catalogadas.
As plantas catalogadas em 2019 concentram-se na Ásia (36%) e na América Latina (34%), confirmando a liderança em biodiversidade dos territórios situados no Hemisfério Sul. Mas, diante desta diversidade, por que então falar em monotonia?
É que esta espetacular variedade quase nunca chega ao seu prato. Cerca de 90% do que a humanidade ingere vem de apenas 15 produtos plantados, dos quais dependem a alimentação humana e a alimentação animal contemporâneas. Quatro mil milhões de pessoas têm a sua alimentação baseada quase exclusivamente em arroz, milho e trigo.
Os processos de transformação industrial ampliam a variedade da oferta de produtos, mas não a biodiversidade daquilo de que são feitos. Pelo contrário, esta é sistematicamente reduzida em benefício de componentes industriais que permitem fabricar o gosto, o aroma, a consistência e a aparência do que é vendido, sobre a base da escassa variedade do que vem das plantas.
O problema não é o alimento industrializado — como o macarrão, o queijo ou o azeite, por exemplo. O busílis da questão é a ampliação do ultraprocessamento alimentar, que se apoia em matérias-primas básicas e pouco variadas e, ao mesmo tempo, numa engenharia de alimentos cada vez mais poderosa, como vêm mostrando diversos trabalhos do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP(link is external).
É aí que se encontra o vínculo fundamental entre a organização da agropecuária, a saúde humana e o estado atual da biodiversidade. A monotonia e a escassez em géneros naturais dos produtos ultraprocessados (aliadas a técnicas que neles introduzem componentes artificiais e, frequentemente, viciantes) são um dos mais importantes vetores da pandemia global de obesidade(link is external). Ao mesmo tempo, a homogeneidade e a baixa diversificação dos ambientes agropecuários são determinantes fundamentais da erosão global da diversidade genética, como mostra a Avaliação Global da Biodiversidade e dos Serviços Ecossistêmicos(link is external).
Um dos elementos mais preocupantes da erosão genética contemporânea está nas gigantescas concentrações animais(link is external), sobre a base das quais o mundo tem, hoje, proteínas mais baratas do que nunca. Estas concentrações representam riscos crescentes à saúde pública e ao meio ambiente.
Tim Spector(link is external), epidemiologista genético britânico, acaba de publicar um livro em que recomenda não tal ou qual regime alimentar, não quantas vezes por dia cada um deve comer, ou quanto exercício fazer, mas, antes de tudo, uma dieta com ao menos trinta plantas diferentes por semana. Para Spector, os alimentos ultraprocessados deveriam ser taxados e o produto desta imposição deveria subsidiar e baratear a diversificação do consumo comida de verdade — sobretudo, frutas e vegetais. Para ele, estimular a arte da cozinha doméstica é parte importante da necessária transição. Aprendemos a ler e escrever, mas precisamos também aprender mais sobre comida e cozinha.
A integração entre saúde, produção agropecuária e fortalecimento dos serviços ecossistémicos indispensáveis à vida social será um dos maiores desafios da Conferência Global sobre Biodiversidade(link is external), que deveria ter acontecido na China e foi transferida para o ano que vem, em função da pandemia. O que está em jogo são, em primeiro lugar, as florestas tropicais e a urgente necessidade de interromper sua devastação. Mas, no programa da conferência, estará também não só a maneira como se usa a floresta, mas o vínculo entre agropecuária, saúde e erosão da biodiversidade.
A Organização Mundial da Saúde, a Organização Mundial da Saúde Animal e a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação estão a trabalhar juntas em torno da noção de One Health (algo como “a saúde é uma só”). Mas, como mostra um trabalho recente de investigadores da Fondation Nationale des Sciences Politiques(link is external), multiplicam-se as iniciativas que procuram compreender e elaborar políticas juntando padrões de consumo alimentar, produção agropecuária, saúde humana e meio ambiente.
Para o Brasil, esta unidade é um trunfo e um imenso desafio. O trunfo está no facto de sermos o país mais mega-diverso do planeta, apesar do abalo na nossa reputação global — derivado do avanço da destruição na Amazónia, no Pantanal, no Cerrado e do descaso das atuais políticas governamentais em preservar estes patrimónios universais pelos quais os brasileiros deveriam ser responsáveis.
O desafio é que de nada adianta alardearmos a condição de maiores exportadores mundiais de alimentos, se um dos mais importantes resultados deste desempenho for a erosão da diversidade genética da agropecuária e produtos cuja transformação — e cujo uso — fazem parte de um problema que a humanidade quer combater: a pandemia de obesidade.
A eficiência no mundo contemporâneo exige uma abordagem que vá além da capacidade de produzir a baixo custo. O maior desafio está em articular organicamente produção agropecuária, o fortalecimento da biodiversidade e melhoria na saúde humana. Nisso, o Brasil teria tudo para assumir a liderança global.
Ricardo Abramovay é sociólogo, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, autor de vários livros. É especialista em sociologia rural e desenvolvimento sustentável.
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