Por Filipe Duarte Santos |
A motivação para a economia circular é de natureza ecológica mas também económica, dado que, sendo a procura de recursos naturais renováveis e não renováveis cada vez maior, o aumento do seu custo tende a dificultar o crescimento económico.
Os primeiros registos do uso do carvão encontram-se na China e datam de 4000 anos a.C. O filósofo grego Teofrasto, sucessor de Aristóteles, refere no seu livro Sobre as Pedras o carvão mineral como pedra que arde tal como o carvão vegetal. Mais tarde, o carvão acabou por desempenhar um papel central na civilização emergente da Revolução Industrial. A Grã-Bretanha, sendo muito rica em carvão, usava-o desde a Idade do Bronze, e especialmente durante a colonização romana, como combustível e para a fundição de metais. A partir do século XIII, os depósitos superficiais esgotaram-se e foi necessário explorá-lo em minas. Porém, as minas de carvão e estanho tinham o problema de acumularem água, impossibilitando a extracção dos minérios. Em 1712, Thomas Newcomen, um ferreiro inglês, inspirado na máquina a vapor rudimentar de Thomas Savery e na máquina a vapor com pistão muito mais evoluída do físico francês Denis Papin, construiu uma para ser utilizada nas minas. Finalmente, em 1776, James Watt, um técnico de laboratório da Universidade de Glasgow, em colaboração com Matthew Boulton, conseguiu melhorar muito o modelo de Newcomen e comercializar a nova máquina, contribuindo de forma decisiva para o avanço da Revolução Industrial.
A partir dessa época, o carvão teve uma história de grande sucesso. Em 1800, as duas únicas fontes primárias de energia à escala global (para além da muito pequena contribuição da força motriz da água nos moinhos de água e dos moinhos de vento e barcos à vela) eram o carvão, com 1,7% do total, e a biomassa, com 98,3%, principalmente sob a forma de lenha. Em 1900, o carvão representava 47% do total das fontes primárias globais de energia, e surgia o petróleo com 1,5%, o gás natural com 0,53%, a hidroelectricidade com 0,14%, sendo o restante a biomassa tradicional (Smil, 2017). No princípio da década de 1960, o petróleo ultrapassou o carvão, e de 1971 a 2015 os combustíveis fósseis asseguraram entre 78,7% e 84,8% do consumo global de energia (World Bank, 2020). Para além destes sucessos notáveis, importa recordar que as centrais térmicas a carvão têm externalidades negativas sobre a saúde humana e o ambiente ao emitirem material particulado, dióxido de enxofre, óxidos de azoto, crómio, arsénio e gases com efeito de estufa, especialmente o dióxido de carbono (CO2). Em 2008, a Organização Mundial da Saúde advertiu que as emissões provenientes das centrais a carvão provocam um excesso global de mortalidade estimado em cerca de um milhão de pessoas por ano.
Desde as publicações do químico sueco Svante Arrhenius, nos finais do século XIX, sabe-se de forma quantificada que o CO2 emitido na combustão dos combustíveis fósseis, por ser um gás com efeito de estufa, causa uma alteração do clima global que se traduz por um aumento da temperatura média da atmosfera à superfície, para além de outros efeitos. As emissões de CO2 variam com o tipo de combustível fóssil e as condições em que se faz a sua combustão. O carvão é o que mais emite com um valor médio próximo de 1000 g de CO2 equivalente por cada kWh gerado, podendo atingir valores superiores a 1500 g. Segue-se o petróleo, com um valor médio próximo de 760 g de CO2 equivalente por cada kWh gerado, e, por fim, o gás natural com um valor médio mais baixo próximo de 490 g. Será necessário diminuir drasticamente o uso mundial do carvão para haver alguma esperança de cumprir o Acordo de Paris.
Surge a pandemia de covid-19 e há tendências que se intensificam. Com a gravíssima crise de saúde, social e económica, que está a afectar sobretudo os países mais pobres e frágeis, o consumo de energia eléctrica baixou e nas economias avançadas o uso do carvão deixou de ser competitivo face às energias renováveis e ao gás natural. As importações de carvão para a UE diminuíram nos últimos meses cerca de dois terços. Nos EUA, a percentagem de uso de carvão na geração de energia eléctrica poderá chegar a um mínimo de 10%. Em 2017, o Governo português, com o objectivo de atingir a neutralidade carbónica em 2050, decidiu encerrar as centrais termoeléctricas a carvão, em Sines e no Pego, até 2030. Porém, a quebra no uso do carvão começou a dar-se muito mais cedo quando o consumo passou de 4,5 milhões de toneladas em 2018 para 2,09 milhões em 2019. Devido à queda de rentabilidade, a EDP adiantou a data de fecho de Sines para 2023. Com a crise da covid-19, a EDP surpreendeu o Governo ao anunciar em 14 de Julho o encerramento da central de Sines em Janeiro de 2021 quando espera ter consumido o carvão que tem armazenado. É provável que o pico do consumo global do carvão tenha sido ultrapassado, o que são boas notícias para a saúde humana e para o clima. Será que a tendência de fuga ao carvão se vai manter? É provável, mas longe de estar garantido porque as economias emergentes, especialmente a China e a Índia, registam um enorme aumento da procura de energia e o carvão é ainda abundante e economicamente acessível.
O que tem o carvão que ver com o conceito de economia circular, com origem nas ideias desenvolvidas em 1976 pelo arquitecto suíço Walter Stahel? A ideia fundamental é adoptar uma economia baseada em processos cíclicos “do berço ao berço” em lugar de processos lineares de extracção, produção e descarte, ou seja, “do berço ao túmulo”. A motivação para a economia circular é de natureza ecológica mas também económica, dado que, sendo a procura de recursos naturais renováveis e não renováveis cada vez maior, o aumento do seu custo tende a dificultar o crescimento económico. É pois necessário reduzir, reciclar e reutilizar. Afinal é aquilo que faz a biosfera com grande mestria ao desconhecer os conceitos de descarte e lixo. O seu metabolismo recicla todos os dejectos e todos os organismos que morrem. Ao beneficiar de cerca de 4000 milhões de anos de evolução, os processos de reciclagem da biosfera tornaram-se extremamente eficientes. Mas como em tudo na vida, houve falhas que originaram impasses.
Uma delas deu-se no Carbonífero, que ocorreu no período de há 358,9 a 298,9 milhões de anos, quando as plantas, cuja origem se encontra nas algas marinhas, desenvolveram a capacidade de colonizar e dominar a terra firme. Para tal foi necessário protegerem-se das radiações ultravioletas solares e adquirirem uma rigidez estrutural robusta para contrariar a gravidade e assim conquistar a dimensão vertical. Foi assim que a evolução das plantas sintetizou alguns polímeros, tais como, lignina (do latim lignum para madeira), suberina (associada ao sobreiro através do seu nome científico de Quercus suber) e cutina (componente da cutícula das plantas). As condições climáticas do Carbonífero nos trópicos permitiram a formação de extensas florestas em zonas húmidas, lacustres e lagunares. Muitas das árvores mortas ficaram submersas, dificultando a sua decomposição. Quando a lignina surgiu, não havia organismos capazes de a decompor, pelo que os troncos não sofreram decomposição e acabaram por ser cobertos por sedimentos, transformando-se em turfa, lenhite e carvões minerais mais ricos em carbono. Para sair do impasse, a evolução da biosfera levou dezenas de milhões de anos até produzir fungos lignolíticos capazes de digerir a madeira, processo também designado por podridão branca, castanha ou mole da madeira.
As consequências deste impasse na economia circular da biosfera foram muito significativas. As emissões de CO2 para a atmosfera diminuíram devido à menor decomposição da biomassa das árvores e, consequentemente, no Carbonífero a concentração de CO2 atingiu valores de cerca de 100 ppmv (partes por milhão em volume) (Feulner, 2017), quatro vezes inferior aos valores actuais (417,1 ppmv em Maio de 2020). Este decréscimo da concentração do CO2 provocou uma intensa época glacial no princípio do Pérmico. Outra consequência do impasse foi que as “florestas do carvão” do Carbónico eram de tal modo extensas e exuberantes que aumentaram a concentração do oxigénio molecular na atmosfera para cerca de 30% (50% mais do que o valor actual de 20,946%), gerando um impulso evolutivo, que conduziu ao surgimento de insectos e anfíbios gigantes, e a um provável aumento da biodiversidade global.
O carvão mineral que moldou a nossa civilização e mudou o clima global é afinal a história de uma falha no metabolismo da biosfera. Agora, a era do carvão dá sinais de terminar. A mesma história revela a incomensurável distância que separa o engenhoso e eficiente metabolismo da biosfera da rudimentar economia circular da tecnosfera.
Professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
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