Fonte: aqui |
Hoje é dia mundial da Bicicleta. É curioso que a ONU tenha metido uma das suas efemérides mais recentes (foi criada apenas em 2018), entre o Dia Internacional da Criança (para a ONU, é dia dos pais), e o Dia Mundial do Ambiente (5 de Junho). Os algarismos 1, 3, 5 têm em comum o facto de serem uma sequência de números primos, mas mais do que isso, são, neste mês de Junho, uma sequência de efemérides que ficam muito bem assim juntas, e que mereciam ser celebradas todos os dias.
Na era do apelo digital, a velha e convencional bicicleta ainda consegue ser um dos brinquedos mais desejados pelas crianças, e experimentado por muitas delas. E é, garantidamente, depois das nossas pernas, o meio de transporte com menor impacto ambiental, facto pelo qual, entre outros motivos, as Nações Unidas decidiram dedicar-lhe um dia. Este ano, a efeméride coincide com um movimento mundial de corrida às bicicletas, e de transformação do espaço público em favor dela, visível em centenas de cidades que nos últimos meses estiveram sujeitas a fortes restrições de mobilidade, por causa da covid-19.
Ainda estamos para ver – e em Portugal, são tão poucos os exemplos, que vamos mesmo ficar a ver, infelizmente – se este movimento veio para ficar. Mas uma coisa é certa: nenhum programa de descarbonização da mobilidade pode assentar apenas na transferência de viagens de automóveis de motores de combustão para automóveis eléctricos ou de carros para autocarros e comboios, não só porque o investimento necessário seria elevadíssimo como também, se assim fosse, ficariam por resolver outros problemas: a excessiva ocupação de espaço público por estes veículos de maiores dimensões e a sinistralidade rodoviária.
Décadas à frente
Há cidades que já resolveram boa parte desses problemas, e Copenhaga, onde o Manuel Roberto se divertiu, durante dias, a fotografar o movimento e a vida nas ruas, é uma delas. A capital dinamarquesa rivaliza com Amsterdão e outras cidades holandesas pelo estatuto de cidade mais amiga dos ciclistas, e seja lá quem tenha razão, descontando o marketing territorial que sempre exacerba uns dados e minimiza outros, os números que apresentam colocam-nos décadas à frente do que a União Europeia está a pedir que todos os Estados Membros façam até 2050.
E sabe uma coisa? Quando se pergunta a um dinamarquês as razões por que vai a pedal para o trabalho, para a escola, ou para o pub, ele dirá, em primeiro lugar (53%), que o faz porque é mais rápido, o que é normal numa cidade que tem infra-estruturas dedicadas e limita em grande parte das ruas a velocidade a 30 km/h ou menos; dirá depois (50%), que é mais fácil, que é pelo exercício (40%), que é barato (27%) e conveniente (23%). Poucos (uns míseros 7%), se lembraram, neste inquérito de 2017, da Danish Cycling Embassy, de dizer que o faziam por ser ecológico, o que prova que se pode ajudar o planeta sem dar por isso. Basta tomar as atitudes certas.
Copenhaga já escolheu o seu caminho, e percorre-o com um prazer que se nota a cada pedalada, desde logo na forma descomplexada com que pais transportam as suas crianças em cargo bikes - uma em cada quatro famílias com dois filhos usa este meio de transporte na cidade. Mas também se nota nas roupas que usam (talvez por que não se vistam “para” pedalar), e que levaram um conhecido consultor da mobilidade ciclável, Mikael Colville-Andersen, a criar um blogue, o Copenhagen Cycle Chic, que esteve na origem de um movimento mundial de celebração das possibilidades de nos pormos em duas rodas sem abdicarmos de andar na moda.
Crianças imitam os pais
Com tudo isto, é certo que as crianças dinamarquesas vão seguir o exemplo dos pais, que nem no frio nórdico, nas chuvadas, e até nos nevões, deixam de pedalar para o trabalho e para a escola, mais que não seja porque a cidade limpa primeiro os passeios e as ciclovias, e só depois tira a neve das estradas. É tudo uma questão de prioridade, que é política, social, familiar e individual.
Mas nada disto é fruto de uma qualquer cultura centenária, a que sejamos alheios (até porque já se pedalou muito mais em Portugal). As ruas que o Manuel Roberto percorreu já foram, até aos anos 70, dominadas pelos automóveis. A diferença é que a mesma vontade de mudança que a covid-19 provoca hoje em muitas cidades, sentiram-na eles durante os choques petrolíferos, que encareceram as despesas com a mobilidade em automóvel para valores não suportáveis por muitas famílias. Lá, e em muitos países, como agora, tirou-se o pó às velhas biclas escondidas no fundo da garagem mas, na maior parte dos casos, tudo voltou ao “normal”, após a crise, porque as necessidades dos cidadãos não tiveram uma resposta à altura por parte dos decisores.
Francesco Tonucci, autor do belíssimo A Cidade das Crianças, obra de 1996 que só no ano passado teve tradução portuguesa, diria que a culpa de tudo isto é de não planearmos as cidades a pensar nelas. Uma cidade onde fosse dia da criança todos os dias seria uma cidade onde o tráfego se faria, quase todo, a 20 ou 30 km/h, com mais vias partilhadas onde o carro é mero convidado, passeios generosos, árvores e ciclovias. Seria a cidade onde andar de bicicleta, mais do que um desejo, ou uma brincadeira infantil, seria o modo usual de chegar, em segurança, à escola, poupando-as ao peso estúpido das mochilas que carregam. Seria, por tudo isto, uma cidade ambientalmente mais sustentável, onde também os velhos se sentiriam confortáveis fora de casa.
Qual é o problema, então? O problema, cá em muitos outros lugares do mundo, são os adultos. Presos a um ritmo frenético, não querem simplesmente abrandar, ou nem sequer lhes é dada a oportunidade de o desejar. Em Portugal, nos lugares onde os decisores abrem espaço para a mudança, ela vai acontecendo, mas o esforço é ainda insuficiente, neste caminho até encontrarmos A Cidade Feliz. Outro título de um livro, de Charles Montgmomery – sem tradução por cá – no qual a mudança para um urbanismo inclusivo se explica em cima de duas rodas.
t
Sem comentários:
Enviar um comentário
1) Identifique-se com o seu verdadeiro nome e sem abreviaturas.
2) Seja respeitoso e cordial, ainda que crítico.
3) São bem-vindas objecções, correcções factuais, contra-exemplos e discordâncias.