Diante de um século globalmente distópico e em sociedades altamente complexas e de risco, como aquelas em que vivemos actualmente devido à pandemia (Covid-19), surge a necessidade de olhar para a história como sugere a pintura de Paul Klee (Angelus Novus) para melhor nos confrontarmos com a turbulência do futuro.
O facto, e o fardo, de vivermos num mundo governado por ideias e projectos políticos neoliberais tem-nos colocado quase sempre em posição de condicionamento. 46 anos depois do 25 de abril estamos mais afastados do ideal proclamado nas canções de intervenção. Uma certa tipologia de “darwinismo social” obriga-nos a agir reactivamente através da adequação dos nossos corpos e cérebros aos contextos disciplinares e biopolíticos.
Enclausurados num aquário cibernético, vivemos imersos como peixes em águas elétricas (operativas e simbólicas). Nesta esfera o poder é exercido através de máquinas que organizam directamente as nossas mentes e os nossos corpos (governação algoritmica), com o objectivo de criar um estado de alienação permanente e independente do sentido concreto da vida e da experiência histórica. Contudo, a diferença entre seres humanos e peixes é grande (ainda), os peixes limitam-se a suportar até ao limite a água suja do aquário, os humanos, contudo, podem sempre transformar a qualidade das circunstâncias em que vivem.
A sensação frustrante de vivermos em cidades formatadas quase exclusivamente pelo poder político (governantes) chega a ser revoltante, especialmente quando vemos que a geração dos nossos filhos está ainda mais bloqueada do que a nossa no que concerne ao agenciamento cívico livre e à participação emancipada na esfera pública, sem receios, em liberdade, com espírito crítico e vontade de defender e discutir as suas ideias, necessidades e aspirações.
Para obtermos uma visão pragmática deste problema vejam-se os vídeos disponíveis nas sessões públicas das Assembleias Municipais (A.M.), aí teremos um arquivo de radiografias do poder autárcico (cesarismo local) que os presidentes de câmara exibem e julgam deter.
Um exemplo concreto: em fevereiro de 2020 um jovem vai a uma reunião da A.M. e faz uma intervenção crítica a repudiar a forma como as Câmaras Municipais tratam barbaramente as árvores através de podas selvagens durante décadas a fio e sem racionalidade alguma. No fim da intervenção, o presidente da câmara, surpreso com a indignação juvenil, faz uso da retórica e do cinismo habitual, respondendo, com sobranceria, que o jovem está a criar falsos alarmismos, porque a câmara faz tudo bem, como sempre fez, diz.
Este episódio é apenas um, num continuado modus operandis resultante de uma lógica de poder anti-democrático, que não ouve, não vê, nem quer aprender com os cidadãos, muitos deles com mais estudos e conhecimentos do que próprios governantes.
No capítulo do arvoredo urbano, sabe-se, pelo menos desde 1994 (há 26 anos), que as “podas camarárias” são um acto fútil de mutilação e de arboricídio, e mais ainda quando vivemos na maior crise ecológica planetária, e sabendo-se da importância das árvores e da salvaguarda da natureza. Por que razão se mantêm então estas práticas bárbaras ainda hoje?
De acordo com o estudo, Qualidade da governação local em Portugal (2018), o grau de envolvimento e participação cívica encontra-se aquém do esperado, apenas em 10% dos municípios se pode falar de uma sociedade civil vibrante. Ou seja, somente 31 num universo de 308 municípios. É muito pouco nas mais de quatro décadas seguintes ao 25 de Abril, e um desrespeito pela exigência constitucional da democracia participativa.
No estudo conclui-se ainda que no sistema de governação local as relações interpessoais prevalecem sobre o formalismo e a racionalidade política, fazendo com que a política programática e institucionalizada seja muitas vezes preterida por uma gestão assente na informalidade e no clientelismo.
Aos olhos do cidadão comum, este exercício da política tornou-se uma actividade corrupta e oportunista. Consequentemente, os cidadãos desinteressam-se e afastam-se da participação e do debate público.
É no entanto curioso que na crítica a esse conhecido problema, as elites defensoras do satus quo venham repetidamente apontar o dedo à inércia da sociedade civil, desviando as atenções da origem do mal, este sim, legitima e cientificamente diagnosticado.
Vivemos em democracia constitucional desde 1976, o poder local democrático é uma das principais conquistas de Abril, e, tal como se encontra expresso na Constituição da República e na canção de Zeca Afonso, Grândola Vila-Morena, “O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade”. O exercício da cidadania plena e da participação nos assuntos públicos deveria ser, desde então, o motor principal da vida política local. Se assim não for, a Revolução dos Cravos serviu apenas para mudar as figuras mas mantendo um sistema de governação pouco transparente. Tudo deve mudar para que tudo fique na mesma, escreveu Tomasi di Lampedusa em “O Leopardo”.
O que na prática aconteceu nestas ultimas décadas, dito mais precisamente, foi:
i) o poder local encontra-se aprisionada pelos aparelhos partidários e pelo calculismo eleitoralista, e não pelo bem comum (João Seixas);
ii) os munícipes têm receio de exprimir publicamente uma opinião contrária à dos executivos municipais (M. Villaverde Cabral);
iii) o recalcamento da participação dos cidadãos nos assuntos da coisa pública (Arnaldo Ribeiro);
iv) a relação dos cidadãos com o poder eleito reveste-se de submissão e aceitação da ordem estabelecida (João Pissarra Esteves);
v) os eleitos agem em função de lógicas carismático-demagógicas, clientelares e partidárias, prevalecendo assim uma forma de ação política paternalista e autoritária (Maria de Lourdes Lima dos Santos).
Perante este cenário, e em consonância com inúmeros documentos europeus — designadamente da Carta Europeia da Autonomia Local- é óbvio que, desde há muito, é necessário repensar o exercício do poder local democrático, bem como reforçar efectiva e definitivamente a democracia participativa. É por isso fundamental considerar que o direito dos cidadãos de participar na gestão dos assuntos públicos faz parte dos princípios democráticos comuns a todos os Estados membros do Conselho da Europa. O problema real é o significado e a pragmática da “participação dos cidadãos nos assuntos públicos” para além dos mecanismos formais e homogeneizados, mas muito pouco integrados no espaço público e no quotidiano da vida.
A construção de uma nova visão do desenvolvimento humano para a liberdade (Amartya Sen), requer paralelamente uma valorização da cultura popular e o incentivo ao pensamento crítico e à criatividade das populações. Neste contexto é premente motivar os agentes culturais locais para a participação na vida pública e nas decisões de política cultural, favorecendo a sua emancipação e a massa crítica ao nível local, bem como a vitalidade cultural do quotidiano das cidades, combatendo-se ao mesmo tempo todas as formas de autoritarismo no contexto político municipal.
As políticas culturais locais são um importante meio para favorecer o envolvimento da sociedade com o desenvolvimento. O (des)envolvimento humano cultural e sustentável está intimamente relacionado com as possibilidades de transformação social, sobretudo com um processo de elaboração, confronto e realização plural de projectos. Consequentemente, os governos locais, devem reconhecer que os direitos culturais são parte indissociável dos direitos humanos, assumindo que a liberdade de criação e produção cultural dos indivíduos e das comunidades é condição essencial da democracia.
Isto pressupõe assumir claramente que “o desenvolvimento sustentável” não se limita apenas a satisfazer necessidades materiais das comunidades, nem deve ser confundido com ideologia do crescimento económico que representa hoje a propaganda criminosa que ao longo das ultimas décadas, em vez da sustentabilidade tão cuidadosamente propalada, nos aniquila a todos com a destruição massiva de espécies, de ecossistemas e de outros crimes contra a humanidade.
O campo cultural, enquanto fenómeno complexo, está sujeito às tensões e aos poderes que nele actuam. A perspectivação cultural do desenvolvimento implica pois uma noção de desenvolvimento endógeno onde os actores sociais possam mudar-se a si próprios e aos contextos onde actuam através da criatividade social, em vez de continuarem presos a imposições externas, reclamando para tal o entendimento de que a cultura é intrínseca e constitutiva da sociedade, ou seja, que não há sociedade sem cultura. Mas exige ainda:
i) Uma política cultural do desenvolvimento, i.e., a cultura como “consciência” do desenvolvimento;
ii) Uma política de desenvolvimento da cultura: reforço da democracia e diversidade cultural, participação culturalmente orientada e concebida como criação colectiva de identidades abertas e plurais;
iii)De forma a assegurar a cada um a possibilidade de contribuir para a formação de ideias e participar na definição das opções que determinam o futuro (Declaração Europeia sobre os Objectivos Culturais, 1984).
iv) Se a qualidade da democracia participativa se pode aferir pela capacidade de assegurar a cada indivíduo, individualmente ou em grupo, a possibilidade de contribuir para a formação de ideias e participar na definição das opções que determinam o seu futuro (direito à cidade), podemos concluir que estamos ainda longe desta tão simples e genuína exigência de soberania popular.
Talvez seja então necessário, em primeiro lugar, desfazer as estratégias e as ideologias dominantes difundidas na sociedade e suscitar uma redistribuição do poder. Isto implica uma transformação no pensamento político, reabrir as instituições publicas e reivindicar um horizonte de novas exigências democráticas, isto é, exigir um novo municipalismo (cultural). É que, no século 21, qualquer mudança política tem que ser “cultural” para ser efectiva. Qualquer mudança política que não se incorpore nos sentimentos e nas percepções das pessoas (modos de sentir, identidades, formas de representação,…) está provavelmente destinada a não durar muito. Por outro lado, como se sabe, o populismo e a produção de ignorância massificada têm conseguido exactamente esse desígnio, mobilizando os afectos mais rasteiros do inconsciente colectivo: racismo, xenofobia, machismo ou a crença em lideres carismáticos com soluções ignóbeis.
A “abertura” das instituições passa por uma deslocação do protagonismo cultural do Estado local (administração pública) para a criação de condições favoráveis à emancipação e ao agenciamento da sociedade civil e da construção de um espaço público comum e apropriado pela cidadania. Esta transição exige das instituições um reposicionamento (re-instituição) em prol do aprofundamento da democracia e da cidadania cultural, e, por conseguinte, de uma nova missão que extravasa o entendimento do tecido cultural focado apenas nos sectores profissionais e nas artes legitimadas.
Afinal, a cultura é criada por todos, independentemente da sua condição profissional ou inclusão numa determinada classe social. Incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais: a) Incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio; b) Apoiar as iniciativas que estimulem a criação individual e colectiva, nas suas múltiplas formas e expressões, e uma maior circulação das obras e dos bens culturais de qualidade (Artigo 78.º -Fruição e criação cultural).
Isto significa que o debate não deve estar centrado exclusivamente no direito à criação dos artistas profissionais. A dimensão simbólica (cultural) é transversal a toda a actividade humana e é o elã vital das cidades, não há cidades vivas sem dinamismo cultural endógeno. Não é por isso suficiente exigir ao governo central que aumente os orçamentos para a cultura e os apoios às artes sem exigir que os municípios e as cidades cumpram o seu papel no desenvolvimento cultural local através de um planeamento estratégico participado adequado a cada território e determinado pelos valores da democracia cultural, defendidos e promovidos, por exemplo, pela Agenda 21 da Cultura.
Por um lado, uma política cultural autárquica não se pode resumir à reprodução da política à escala nacional, porquanto é ao nível dos territórios concretos que as “condições de cultura” têm de ser criadas, tendo em vista que a fruição e as práticas culturais se destinam a todos. E, por outro, a qualidade da vitalidade cultural dos municípios não se resume obviamente à existência de serviços públicos tutelados pelas autarquias, antes pelo contrário, requer:
- A criação de condições de produção cultural e artística aberta a todos os cidadãos de forma democrática e transparente (Cultura 3.0);
- Condições para a valorização da produção plural dos conhecimentos e das subjectividades;
- Condições de acessibilidade universal aos serviços e bens culturais, e do entendimento político da cultura como bem comum (redução das barreiras e ampliação do acesso);
- Facilitar a apropriação de espaços públicos para as “artes de rua”, de modo a contribuir para a vitalidade cívica e cultural do espaço público;
- Recuperação e uso dos espaços devolutos, espaços de criação (ateliers, oficinas, espaços de ensaio, etc.);
- Condições de fruição das artes e dos equipamentos culturais em diferentes modalidades e intensidades;
- Condições de participação activa dos cidadãos no desenho das políticas públicas como imperativo cívico categórico;
- Criação de estratégias de alargamento da base social dos públicos, desenvolvimento e a formação constante de novos públicos;
- A diversificação nos modos de recepção e de apropriação da arte e da cultura;
- A dessacralização das formas de cultura cultivada (erudita), aproximando-a das populações e dos seus quotidianos;
- A eliminação da subserviência ao poder político e o reforço da autonomia e independência dos agentes culturais;
- A abertura e inclusão de novas práticas culturais e artísticas;
- Criação de um Fundo Mecenático Municipal para a cultura;
- Descentralização das actividades culturais em bairros mais afastados dos centros históricos;
- O alargamento do universo dos criadores culturais e a dessacralização dos critérios de hierarquização da produção intelectual e artística.
Aquilo que já não é sustentável, nem concebível, é estarmos em 2020, dominados planetariamente por um neurocapitalismo (neuropoder) cuja matéria-prima é o cérebro e a produção são os corpos e as subjectividades dóceis, vivendo simultaneamente em cidades ainda dominadas por uma espécie de neo-feudalismo regional. É por essa razão que não se pode, nunca, pensar as políticas municipais de cultura sem as respectivas articulações de poder. Falar de cultura, sem falar de contra-cultura, de emancipação, de cidade ou de poder, é como falar do sexo dos anjos, puro devaneio.
Fonte: Rui Ibañez Matoso
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