Por Daniel Oliveira
O primeiro-ministro holandês deu mais um ar da sua graça, fazendo o papel de polícia mau que garantirá que o ponto de equilíbrio dos apoios europeus ficará entre a tragédia e o inferno para os países que veem todos os seus indicadores económicos caírem a pique desde o nascimento do euro: “Quando alguém quer ajuda, tem de fazer reformas abrangentes para que da próxima vez seja capaz de cuidar de si próprio.” Como todos os populistas, Mark Rutte usa o senso comum para se proteger. Mas não esconde o paternalismo xenófobo: se os madraços do sul se soubessem governar como quem lhes paga as contas estariam como nós.
O facto da Holanda partilhar uma moeda com economias mais frágeis oferece-lhe excedentes que nunca teve fora do euro.
Se o debate fosse sério, exigia-se que a Holanda e a Alemanha não estivessem, há uma década, em constante violação da legislação comunitária. Ela impõe limites aos excedentes comerciais por uma razão: se a Holanda não estivesse no euro, os seus excedentes comerciais, superiores aos da China, teriam um efeito cambial devastador. A moeda valorizaria até fazer cair as exportações. Por isso Alemanha e Holanda nunca tiveram estes excedentes fora do euro.
O facto de partilharem uma moeda com economias mais frágeis oferece-lhes um milagre nunca visto. Os excedentes comerciais de holandeses e alemães são compensados pelos défices comerciais das economias que não se adequam a uma moeda que, no nosso caso, corresponde a uma sobrevalorização monetária que era, em 2016, de 18,5%. Perante este desequilíbrio, os países do norte transformam o resultado dos excedente em crédito aos do sul, que precisam dele para compensar o défice.
E assim se estabelece uma relação de dependência sem fim. Se querem perceber os efeitos monetários dos excedentes comerciais, basta recordar como, nos anos 60, as exportações de gás da Holanda tiveram como efeito colateral uma enorme valorização do florim que tornou as suas restantes exportações pouco competitivas. Ao efeito danoso que a exportação de um recurso natural tem na indústria transformadora os economistas deram o nome de “doença holandesa”.
Qual a cura milagrosa para o impacto dos excedentes na moeda? O euro. E o efeito é semelhante: o perfil exportador da Holanda e da Alemanha arrasa as economias com que partilham a moeda. E é por isso que os arquitetos do euro impuseram, de forma excessivamente soft, esta limitação. Sem ela, a eurozona é um lugar onde ou se mata ou se morre. Não há “reforma alargada” que salve os outros, obrigando-os a viver num condomínio de luxo com salário de porteiro.
Isto era o que eu escreveria se tivesse a vergonha que falta a alguns dos nossos economistas, que repetem a demagogia moralista holandesa. Se preferir atalhar, fico-me por uma boa reforma alargada para a Holanda: deixarem de ser o paraíso fiscal da Europa, que fica com os impostos dos outros. Uma opção que resulta da lógica de competição interna e não, como era suposto, de cooperação.
E também tenho um conselho altivo para lhes dar: se as “reformas alargadas” não incluírem mais um pouco de destruição do nosso SNS, podemos explicar-lhes como é que, com menos meios e recursos, fizemos um trabalho bem mais decente do que o senhor Rutte no combate à pandemia.
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