O filme, Capitães de Abril (Maria de Medeiros, 2000), explora um momento histórico ocorrido em Portugal em 25 de abril de 1974: A Revolução dos Cravos. O recorte utilizado pela diretora do filme demonstra apenas o fim do regime ditatorial instaurado por Salazar. Tal recorte aponta para três principais fatos ocorridos nesta data que vai do desejo de militares sublevados da Escola Prática de Cavalaria localizado a oitenta quilômetros a nordeste da cidade de Lisboa, comandados pelo capitão Salgueiro Maia, oficial pertencente ao MFA (Movimento da Forças Armadas), a tomada de uma estação de rádio por oficiais da FAP (Força Aérea Portuguesa), e o cerco ao quartel do Carmo por forças do MFA onde se encontravam Marcelo Caetano e os ministros de seu governo. Do ponto de vista cronológico, o filme aborda do início do motim dos militares na noite de 24 de abril, até o embarque de Marcelo Caetano para seu exílio temporário na Ilha da Madeira na noite de 25 de abril de 1974.
No início do drama, cenas de pessoas mortas, em referência às guerras coloniais, dão o indicativo de uma das principais causas da revolução. O desejo exprimido pelo MFA era o de por fim às guerras coloniais em Guiné, Angola e Moçambique, instaurar a democracia em Portugal, e resgatar o prestígio das Forças Armadas. Diante disso, a Revolução dos Cravos, em termos ideológicos, não tem início na metrópole, mas sim em suas colônias, a partir do momento em que rebeldes africanos surgem e insurgem com armas na mão. Entretanto, essas não foram as únicas causas do “esgotamento” do regime de Salazar. Diversos pontos no que diz respeito à economia, à política (interna e externa), e à sociedade contribuíram para o descontentamento de diversas classes sociais para com o governo de Marcelo Caetano.
Tais desejos estão intrinsecamente relacionados com a postura do governo de Salazar em relação às colônias. Em um primeiro momento houve uma mudança na constituição portuguesa em 1951 afim de rebatizar as colônias com o nome de “províncias”, ou seja, parte de um Estado unitário, em contra-partida ao artigo 73 da carta da ONU (Organização das Nações Unidas) que trata de territórios não autônomos. A mudança na constituição prevenia contra a aplicabilidade das obrigações que o artigo propunha (promover o desenvolvimento econômico e político desses territórios). Em segundo, tratava-se do uso da base aérea de Açores pelos Estados Unidos para reabastecer Israel durante a guerra do Yom Kippur em 1973. Isto resultou em um embargo prolongado ao fornecimento de petróleo para Portugal, mesmo ao final da crise. E em terceiro, o agravamento da situação econômica no que diz respeito aos gastos militares:
Um terço da renda nacional portuguesa, nos anos 60, provinha das colónias. O déficit da balança comercial era estrutural e permanente. O agravamento da situação económica era produzido claramente pelo aumento dos gastos militares (SECCO, 2004, p.99).
Para a sobrevivência do Império português era necessário que houvesse tais intervenções militares na África portuguesa, mas para a sustentação do regime e não das suas economias e da infra-estrutura, ou seja, Império como superestrutura jurídico-política da sociedade metropolitana.
Entre as três principais cenas (o motim na Escola Prática de Cavalaria, a tomada da estação de rádio, e o cerco ao quartel do Carmo), a diretora tenta explanar acontecimentos que determinaram a causa da revolução. Seguindo a ordem das cenas, é possível exemplificar, por meio da construção fílmica, alguns desses fatos relevantes em que a diretora elucida, de forma subjetiva em relação aos atores, a problemática das estruturas sociais.
Após a apresentação mórbida, há uma cena no qual um casal (uma empregada doméstica e um jovem soldado) despedem-se em uma estação de trem no qual o soldado deve embarcar em um vagão que o levará ao quartel apos um final de semana de folga. No diálogo, a namorada deste exprime o desejo de fugir para a França em busca de uma vida melhor. Na construção desta cena, o desejo de emigração da maioria dos jovens em Portugal durante a década de setenta, revelava-se um aumento da escassez de mão-de-obra na metrópole. “Em 1973 houve um notável aumento do número de trabalhadores qualificados que emigraram. Nesse ano, das 120 mil pessoas que emigraram, 34% tinham alguma especialização profissional” (MAXWELL, 2006, p.45).
Outro fato importante diz respeito ao alistamento militar, em que os jovens que permaneciam em Portugal cumpriam de quatro a seis anos de serviço militar, e este tempo de serviço militar aumentou gradativamente com a eclosão das guerras coloniais obrigando o governo a manter os alistados por mais tempo.
Mas a questão que envolve essa densa emigração não se resume apenas à guerra colonial e o tempo de serviço militar. O fato do desenvolvimento desigual de diversos países sob a égide de países imperialistas, a internacionalização da produção e do capital promoveram um duplo movimento que se resume na “exportação do capital de países imperialistas para países dependentes, e a exportação da força de trabalho dos países dependentes para países imperialistas” (POULANTZAS, 1975, p.56).
Países como os Estados Unidos da América e da Europa Ocidental mantinham e sustentavam ligações económicas quase que mercantilistas com complexas redes de capital com Portugal afim de proteger seus investimentos tanto na metrópole quanto na África portuguesa. Esses interesses na África portuguesa podem ser exemplificados pelo fato de que diversos oligopólios controlavam e administravam os recursos naturais em Angola com a exploração de petróleo pela Shell, pela Tanganica Concessions, e pela Standart Oil, por via da The Angola Coaling Co.
Diante desse contexto, fica claro o objetivo da diretora do filme em elucidar em outra cena, uma reunião de gala em que há um diálogo entre um personagem que representa um presidente de uma companhia de petróleo do Texas, o ministro da defesa de Portugal, e um diretor da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). O mito do “orgulhosamente sós” já não fazia sentido ao final do regime salazarista.
Aliem das questões coloniais, era evidente o descontentamento popular em relação às liberdades públicas, com as lutas dos partidos e movimentos clandestinos de esquerda em prol da derrubada do regime salazarista. Tais organizações tinham participações nos meios estudantis e operários, e promoveram algumas ações ousadas como “a destruição da base aérea de Tancos, que contava com dezesseis helicópteros e onze aviões” (SECCO, 2004, p.99), construído no filme no momento em que um estudante é preso e interrogado por um agente da PIDE, acusado de ter ligação com o movimento MRLPT-ML (Movimento Revolucionário para a Libertação do Povo – Trotskista, Marxista, Leninista), grupo fictício para ilustrar os movimentos, e participado do atentado contra a base aérea.
É importante ressaltar que, mesmo com essas ações, não houve um movimento frontal da massa contra o regime. Tais lutas não tiveram um papel direto na derrubada da ditadura salazarista, mas bem ou mal foram o fator determinante. Nesse sentido, “convém avaliar a importância desta oposição, sobretudo pelo descontentamento característico das massas em relação ao regime” (POULANTZAS, 1975, p.63), o que acarretou o isolamento desta de modo progressivo em Portugal onde, na origem, do apoio popular, principalmente no campo, havia gozado de grande aprovação da população.
No que diz respeito às liberdades públicas, a censura intimidava os intelectuais e a sociedade, disseminando o medo sobre as possíveis consequências de qualquer ato reprovável à política oficial. Era o recurso ao “medo”, do qual falou o escritor José Régio com ironia:
"O medo é que guarda a vinha diz-se. Em grande parte, tem sido o medo que tem guardado a actual situação. Pode, ainda, ser o medo quem melhor a defenda. Não só em Portugal como em quaisquer países onde um regime conquista o poder pela força, e pela força impera, esse poderoso inimigo da alma se agigantou a ponto de tapar todo o horizonte[1].
“O medo é que guarda a vinha”, escreve José Régio, evidenciando sobre a produção artística em relação à censura, uma vez que o regime salazarista recorria às medidas repressivas, como a prisão de intelectuais, jornalistas e professores universitários. Soma-se essa repressão, contra a produção intelectual, com a fragilidade cultural no intuito de controlar, por meio da força, a dominação do regime.
A censura provavelmente limitava o intercâmbio científico, especialmente para aqueles que desejassem produzir um conhecimento crítico do país. Em 1965, 19,5% dos livros editados em Portugal eram traduzidos (oriundos do exterior). O gênero predominante era a literatura (81%), fato que colocava Portugal à frente de todos os outros países. Em contrapartida, apenas 4% dos livros traduzidos eram das áreas de ciências sociais. Portugal também via filmes estrangeiros. Norte-americanos, melhor dizendo. Viu 132 no ano de 1966. Contra 62 italianos e 49 franceses. Nesse mesmo ano, os portugueses só produziram cinco filmes de longa metragem. Seu cinema não era nacional e nem formava ou difundia uma auto-imagem do país (SECCO, 2004, p.96).
O exemplo nítido e de grande importância na construção fílmica desta referência à repressão da produção cultural, se constitui no momento em que uma música, no qual foi censurada, torna-se a senha entre os militares sublevados para o início da revolução. Grândola, Vila Morena de autoria de Zeca Afonso foi composta como homenagem à “Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense”, e banida pelo regime salazarista sendo-lhe acusada de uma música associada ao comunismo. Aos 25 minutos do dia 25 de abril de 1974, Grândola, Vila Morena foi reproduzida pela Rádio Renascença. Era o início da revolução.
O objetivo do MFA, no início da operação, era de tomar posse dos meios de comunicação e abrandar qualquer ação ou reação do povo em relação à revolução. Após os assaltos às fontes de informação audiovisual, seguiram-se vários comunicados pedindo a população que permanecesse em casa para evitar um possível confronto entre forças legalistas e o MFA, e o “derramamento” de sangue inocente. E foi o que se sucedeu. A revolução se seguiu de forma também inocente e fez com que o povo fosse somente um espectador da História. Apenas no momento em que a situação estava “supostamente” controlada, com o cerco no quartel do Carmo, é que se afloraram os desejos “reais” da população, uma vez que o MFA propunha um programa vago para suscitar todas as expectativas possíveis, embora tenha sido nitidamente democrático e antifascista. A massa encontrou no exército, o verdadeiro apoio e mesmo um aliado na luta que se moveu contra o regime ditatorial. Mas na construção fílmica proposta, os embates políticos mostram apenas o dia da revolução, e não há sinal das contradições políticas-sociais que sucederiam o governo do General Spínola.
Mesmo colocando em cena cerca de 1,5 mil militares e mais de 7,5 mil figurantes civis, Maria de Medeiros conseguiu realizar sua proposta de demonstrar um acontecimento extraordinário em que o símbolo da massa não revelava-se apenas um agente da história sendo manipulada, mas cruciais para uma narrativa em que a sutileza dos personagens demonstravam as contradições e os problemas sofridos pelo povo português durante o final do regime de Salazar.
Bibliografia:
MAXWELL, Kenneth. O império derrotado. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
POULANTZS, Nicos. A crise das ditaduras. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
ROANI, GL. Sob o vermelho dos cravos de abril – Literatura e revolução no Portugal contemporâneo. Revista Letras, Curitiba, n. 64, p. 15-32. set./dez. 2004. Editora UFPR
SECCO, Lincoln. A Revolução dos Cravos e a Crise do Império Colonial Português. Economias, espaços e tomadas de consciência. São Paulo: Alameda Casa Editorial / Fapesp / Cátedra Jaime Cortesão, 2004.
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