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segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Impor o celibato a um monge ou sacerdote é absurdo


Depois de o líder da Igreja Católica ter pedido dez vezes perdão pelos abusos praticados por sacerdotes, o líder da religião budista vem agora assumir ter conhecimento de abusos por parte de alguns monges. Dalai Lama recebeu durante a sua visita à Holanda neste fim de semana seguidores budistas e vítimas de abusos e pediu-lhes que tornassem os seus testemunhos públicos, prometendo que nos próximos voltará a falar sobre o assunto. Porque é que os abusos sexuais e físicos surgem em religiões que impõem o celibato? São situações como estas que desacreditam as religiões? Que futuro poderão ter as religiões que continuam a defender "uma moral antiga?" Moisés Espírito Santo - professor catedrático jubilado da Universidade Nova de Lisboa, sociólogo, etnógrafo e etnólogo, que se destacou pela introdução e pelo desenvolvimento da Sociologia Rural e da Sociologia das Religiões no ensino superior em Portugal -, explicou tudo ao DN. E não tem dúvidas: "A moralidade e a espiritualidade do nosso tempo é outra. Se as religiões dogmatizadas não se adaptarem correrão o risco de ficar para trás", afirmou.

Após a denúncia e os pedidos de perdão por parte do Papa da Igreja Católica, a máxima autoridade viva do budismo, Dalai Lama, vem agora assumir que sabe de abusos sexuais e físicos por parte de alguns monges. O que leva ao abuso em religiões que professam o amor e condutas exemplares?
Tanto o catolicismo como o budismo impõem o celibato. E ao que sei estas questões de abuso só têm acontecido nas igrejas que ainda defendem a obrigação do celibato e o conceito de pureza. Isto, no nosso tempo, é uma anomalia. Impor a não sexualidade a um monge ou a um sacerdote é um absurdo.

Deve ser revisto este conceito ou, se quisermos, esta moral?
Claro. A sexualidade imposta aos clérigos é artificial, porque é imposta pura e simplesmente como um dever. Se formos ver bem, o próprio clero já nem considera o celibato como um ato de purificação. Portanto, a sexualidade faz parte do ser humano, se é reprimida pelo celibato, proibida, sublimada, irá ressaltar por qualquer outro lado. Desculpem-me a comparação, mas é como os sistemas hidráulicos, se se reprime a água ela irá rebentar por algum lado. A sexualidade é um pouco assim.

O fim do celibato tem sido muito discutido nas religiões, nomeadamente na católica, mas não resultou em mudanças. Está a querer dizer que se tivesse sido revisto a situação de abusos poderia ter sido evitada?
É este conceito que tem de mudar. Já devia ter sido revisto há muito e antes desta escandaleira. Por exemplo, estas situações não são vistas nas igrejas protestantes ou ortodoxas, porque aqui há uma harmonia sexual entre os clérigos que não escapa para situações de criminalidade, como é o caso da pedofilia de que agora se fala na Igreja Católica.

O abuso não tem sequer que ver com uma questão de poder sobre o outro, é mesmo só pela contrariedade da natureza humana? Mas isso não acontece com todos?
Não acontece com todos. Falamos de pessoas, do ser humano, uns mais débeis do que outros. E só tem que ver, do meu ponto de vista, com a questão da sexualidade. Se fosse por uma questão de poder poderíamos olhar para os professores que têm poder sobre os alunos, e não há queixas, pelo menos significativas. Tem que ver com a sexualidade reprimida por obrigação, por uma espécie de código, e sendo reprimida acaba por sair por canais um pouco perversos. Por isso, repito, isto é que tem de mudar, até porque a sexualidade já não é vista como uma virtude ou um pecado.

O que está em causa então é sempre o ser humano. O ser pessoa e como se é, e não o sistema...
Claro. Tudo isto tem que ver com a pessoa. Não podemos acusar todos os clérigos da Igreja Católica ou agora todos os monges budistas de serem perversos. São casos marginais, mas volto a chamar a atenção para o facto de não haver casos de pastores protestantes a abusar de crianças ou de jovens. Pode haver um caso ou outro, mas em massa, como se denuncia agora na Igreja Católica, não há conhecimento. E isso é o que nos dá a entender que é a conceção do próprio celibato que está errada.

São estas situações que levam ao descrédito das religiões?
Suponho que não. Estes pecados são sempre personalizados, atribuídos a pessoas e não ao sistema em si. É claro que o sistema tem defeitos - mais uma vez o caso do celibato que, para mim, é um anacronismo do nosso tempo -, mas as situações são atribuídas a alguém e não à própria religião. Não é pelo facto de haver um monge budista que praticou determinados atos que leva ao descrédito da religião, o mesmo digo em relação ao catolicismo. Leva a incómodos, a desconfianças, mas estou convencido de que as igrejas não perdem muito com isto. Tanto mais que elas próprias condenam tais atos. O Papa pediu perdão e o próprio Dalai Lama também já veio condenar. Isso quer dizer que a paz religiosa será instaurada rapidamente. Quando os próprios líderes pedem desculpas pelos desvios que existem na instituição, isso quer dizer que os condenam e tudo se estabiliza.

Dalai Lama assumiu que sabia de algumas situações há várias décadas, o que significa que houve anos de silêncio. Aconteceu o mesmo na Igreja Católica. Como se explica esta atitude de líderes de religiões que professam uma espiritualidade exemplar?
O silêncio tem que ver com o facto de os casos serem marginais, podem ser casos de perversão. O Papa ou o Dalai Lama não são obrigados a estar a apregoar no Vaticano ou no Tibete os casos de que têm conhecimento. Isso tem que ver com o direito de reserva e também de conceção de que são, de facto, casos marginais. Não compete aos líderes denunciar casos, compete-lhes corrigir as situações ou levá-las a julgamento. Nada os obriga a denunciar publicamente os seus companheiros de religião ou os seus súbditos.

Alguns seguidores budistas disseram em entrevistas que já antes Dalai Lama se tinha referido a um dos monges suspeitos de abusos, Sogyal Lakar, como "meu grande amigo que caiu em desgraça", e que isto era como se o tivesse excomungado. Foi a forma de resolver a situação?
Claro. Se o Papa também o tivesse feito em relação aos bispos ou cardeais envolvidos no escândalo da pedofilia o assunto para a Igreja Católica também poderia ficar resolvido. O serem excomungados era a forma de castigar esses clérigos. Nada foi feito neste sentido para corrigir a situação, mas, repito, não são situações destas que põem em causa o bom nome das religiões.

Então o que está a acontecer para que esteja a aumentar a indiferença religiosa nas populações? Há teólogos que defendem que esta indiferença é o grande combate do futuro para as religiões, já não é o ateísmo...

Isso resulta da mudança nas atitudes religiosas. Atualmente as religiões já não são consideradas ou olhadas como instituições tradicionais que regulamentavam todos os comportamentos humanos, que definiam o céu e o inferno. O conceito de religião está a mudar, e muito. As pessoas podem não ser religiosas, mas podem acreditar num ente sobrenatural e achar absurdo os comportamentos teológicos e as doutrinas das igrejas. Podem achar que tudo isto está fora do tempo.

Há então um novo conceito de religião?

Há um novo conceito individualista da religião. As pessoas consideram que cada um tem o seu próprioespírito religioso, que não tem de estar associado a grupos exclusivistas. O caso da Igreja Católica, que diz que quem está fora desta não tem salvação... para muitos isto hoje é incompreensível, daí o crescimento de um tipo de religião individualizada, de crenças individualizadas, que vão buscar conceitos a uma e a outra religião mas que acabam por responder às necessidades dos indivíduos de hoje. Podemos dizer que o que está a desaparecer é o sentido de igreja como salvação. As pessoas já não precisam de uma igreja para sentirem que terão uma vida no além. As igrejas hoje já não têm esse monopólio.


O que têm então de fazer estas religiões para não desaparecerem?
Têm de se adaptar às mudanças. E, no fundo, até são mudanças benignas. Enquanto no passado as igrejas poderiam ser as únicas instituições de solidariedade, de defesa dos pobres e de bem-estar dos indivíduos, etc., agora a própria sociedade desempenha esse papel e reclama-se detentora desses valores. A sociedade já não precisa de uma instituição universal para impor valores de segurança, de solidariedade e de amor, ela própria tem esses valores devido à evolução da mentalidade social e universal. Se as igrejas não percebem isto, se não se adaptarem aos novos valores da sociedade, valores de solidariedade social, em que há os pobres, o amor, o bem-estar dos indivíduos, correm o risco de ficar para trás. Se elas se fixarem nestes valores poderão conseguir mais adeptos, se se fixarem na moral antiga e nos dogmatismos antigos irão perder as suas audiências.

Isso significa que a sociedade de hoje construiu seres que não necessitam tanto de espiritualidade?
Construiu seres que já não precisam que alguém lhes imponha uma espiritualidade. Com o conhecimento de hoje e a capacidade de reflexão, as pessoas já procuram por elas próprias o que devem fazer na vida em relação ao sobrenatural. Antes, eram as igrejas que tinham esse papel tradicional de instituir a coesão social e a imposição de valores. Isto era aceite e era importante no sentido de salvaguarda da ordem moral, mas ao deixar que a sociedade evoluísse, que passasse para um estado superior de valores, as igrejas tradicionais perderam e estão a perder valores. Portanto, têm de se adaptar às mentalidades civilizacionais da modernidade.

Isso acontecerá num futuro próximo?
Quando uma religião está dogmatizada é difícil. Por exemplo, as religiões que se têm desenvolvido no nosso tempo são as evangélicas, há algumas fundamentalistas, mas não é dessas de que falo. De um modo geral, tudo o que é cristão e não se chama católico, dizemos que é protestante ou evangélico. É destas de que falo. E são estas igrejas que se estão a impor cada vez mais no mundo, porque propõem uma espiritualidade baseada na espiritualidade de Jesus Cristo e não numa moral imposta por uma instituição humana ou de poder. No fundo é o que acontece com a Igreja Católica, que é uma instituição de poder, de um poder sobre o lado social, enquanto as igrejas evangélicas são de espiritualidade. É este conceito de religião que a meu ver irá predominar no nosso tempo. Não quer dizer com isto que o cristianismo esteja em decadência. Pelo contrário, ele está a expandir-se, mas fora da Igreja Católica, sem os valores de subserviência aos clérigos, aos moralismos bacocos, como o celibato, que é um anacronismo do nosso tempo.

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