"Essa ideia de a Amazon de entregar comida com drones vai acabar com todos os pequenos negócios. É um desastre!" É o que pensa o jornalista italiano Carlo Petrini, fundador do Slow Food, um movimento que luta para impedir o desaparecimento das tradições e das culturas alimentares locais. Ele conversou com a NEGÓCIOS durante o "FRUTO - Diálogos do Alimento", evento realizado em São Paulo pelos chefs Alex Atala e Felipe Ribenboim, com a chancela do Instituto ATÁ.
O movimento nasceu após uma manifestação contra a construção de um McDonald’s na praça Piazza di Spagna, no coração de Roma. Para Petrini, a nova estratégia da Amazon é uma grande ameaça aos produtores, comércios e turismo das pequenas cidades. "Se não existirem mais os pequenos negócios, essas cidades vão se transformar em dormitórios. Não terão mais nenhum atrativo, nada típico. Será um desastre."
O que levou o senhor a criar o Slow Food?
O Slow Food nasceu em 1989 como reação contra o fast-food, em defesa da biodiversidade e da cozinha. Essa é a filosofia: um movimento pela cultura da alimentação e também pelos direitos dos pequenos camponeses e pescadores. Com o passar dos anos, o movimento se concentrou particularmente na biodiversidade e se espalhou por 160 países. Essa rede trabalha por uma comida boa, limpa e justa. Boa pela qualidade e o prazer da alimentação. Limpa porque o meio ambiente é muito importante. E justa porque os direitos do trabalhador no campo também são importantes.
Qual o papel desse movimento nos dias de hoje?
O mais importante, neste momento, é a criação de alianças, porque o poder do setor de alimentação se concentra em poucas mãos. Há multinacionais que têm propriedade de sementes, médicos e fertilizantes. Essa concentração [de poder] é uma loucura, um desastre. Todas essas organizações trabalham apenas pelo seu próprio objetivo. O momento é de construir alianças verdadeiras. Não somos uma ONG. Não somos uma agência. Não somos uma indústria. Precisamos criar alianças com o chef, com a indústria, com toda a gente e movimentos que lutam contra esse tipo de alimentação.
O senhor se envolveu em uma batalha contra o McDonald's quando a rede queria instalar uma lanchonete no centro histórico de Roma. Como é enfrentar essas grandes empresas?
Isso foi no início. Neste momento, o McDonald's não é o grande problema. Mas sim a Amazon, que é uma empresa que não produz nada, funciona apenas como uma máquina que move capital. Precisamos reconstruir uma relação direta entre os cidadãos e os produtores. O cidadão não é passivo, ele quer ser coprodutor e precisa de informação. Precisamos saber a proveniência da matéria-prima, como são produzidos e como se transformam. Comer é um ato agrícola. Se eu como alimentos feitos com produção de sementes geneticamente modificadas, vou favorecer esse tipo de agricultura. Se eu como alimentos de uma agricultura local, que respeita o meio ambiente, ajudo esse tipo de agricultura.
Cada vez mais vemos pessoas buscando alimentos orgânicos. Isso é uma tendência mundial?
A prática orgânica é uma boa prática. Mas antes de orgânica, tem de ser local. Tem muita gente que compra alimentos orgânicos de outros continentes. Isso não é sustentável. Prefira o local, depois o orgânico. Aqui em São Paulo há uma região com agricultura muito próxima, muito ética. Precisamos incentivar isso — ajudar esses camponeses.
Quando o senhor cita produção local, refere-se apenas aos pequenos agricultores ou acredita também que as pessoas deveriam produzir seus próprios alimentos em casa?
Isso é outra coisa. É uma prática muito positiva. Eu creio que muitos restaurantes precisarão ter sua própria horta. Se um restaurante não puder ter uma horta sozinho, diferentes restaurantes vão ter uma horta juntos. A produção direta é uma forma de resiliência. É contra o sistema. Os cidadãos também podem fazer isso. Produzir uma horta é um ato revolucionário. Você come o que você produz, tem um contato direto com a mãe terra e com a natureza. Isso é importante também para quem vive em uma metrópole. Há prédios com hortas orgânicas fantásticas. É preciso reconstruir o contato direto com a horta.
Temos exemplos de startups que estão trazendo hortas para as grandes cidades. Qual a importância dessas empresas que pensam no lucro, mas também tem um propósito como esse?
A tendência é positiva. Mas é preciso saber quem é o dono dessas empresas. É uma cooperativa? São cidadãos juntos? Depende também do que o dono dessa empresa pensa.
Mas é possível pensar tanto no lucro quanto no benefício das pessoas?
Eu creio que sim. Um equilíbrio lucrativo e ético pode existir. Só lucrativo ou só ético, não. É preciso ter um equilíbrio. Isso se trata de alianças e respeito. Se há uma empresa que quer produzir com respeito à natureza e com contato direto com o cidadão, isso é possível.
Existem muitas iniciativas desse tipo sendo realizadas na Itália?
Não só na Itália, mas no mundo. O Slow Food vai fazer 10 mil hortas na África. Isso é fantástico, pois cada horta vai proporcionar comida para 1,2 mil estudantes ou pequenos vilarejos. A África é o continente mais violentado por empresas estrangeiras. Construir uma horta para 1,2 mil estudantes ou pequenos vilarejos lá é muito positivo.
Desde que o senhor fundou o movimento em 1989, o que mudou? Estamos falando mais sobre alimentação?
Mudou totalmente a situação por três razões que em 1989 não existiam. A política é um desastre em todo o mundo. O poder em poucas mãos é uma realidade, como no caso da Monsanto, Cargill, Nestlé, Syngenta. O terceiro, é essa ideia da Amazon de entregar comida com drones. Isso vai acabar com todas as pequenas lojas. É um desastre! Em 1989, o perigo era o McDonald's. Agora é a Amazon. Por isso, precisamos de alianças. Separados não podemos ganhar.
O senhor acha que, com esse cenário, os pequenos negócios vão desaparecer?
Acho que sim. As pessoas precisam de amizade, de relacionamento social. Quando o Slow Food nasceu, muita gente dizia que não seria possível defender a diversidade, agora isso se realizou. Penso que é mais importante o fenômeno de resiliência. Se não existirem mais os pequenos negócios nas pequenas cidades, essas cidades vão ser apenas lugares para dormir. Não terão mais nenhum atrativo, nada típico. Isso será um desastre.
O que você acha de leis que proíbem usar o nome de um produto fora da região em que é produzido. Isso é benéfico?
É benéfico, porque valoriza o território. O queijo tem seu nome por sua qualidade e por seu território. Estamos em um país onde a qualidade dos pequenos produtores artesanais de queijo não é respeitada. Se um produtor de Minas Gerais vai vender fora do seu estado, não é permitido. É considerado clandestino. Há alguns meses, uma importante cozinheira que se chama Roberta Sudbrack teve queijos e linguiças apreendidos e destruídos [durante o Rock In Rio]. Ela pediu para não destruir, pois poderia doar aqueles alimentos. Mas não permitiram e jogaram fora toda a comida. Isso não é só violência, é crime. Um crime permitido pela lei. Nenhum político tem sabedoria sobre alimentação, nenhum!
Os restaurantes por aqui também enfrentam dificuldades para doar a comida que sobra ao fim do dia, por questões de leis relacionadas à segurança alimentar. O que o senhor acha disso?
Mas a Nestlé vai vender no Amazonas com barco para os pobres. Para a Nestlé, tudo é permitido. Para os chefs brasileiros, não. É sanitário. A Nestlé vende comida, muita comida que gera obesidade. Essa é a realidade. Precisamos defender os humildes, os pequenos produtores, os chefs que trabalham bem, a aliança entre o grande chef e os pequenos produtores. Essa é a nova revolução de verdade.
O prefeito de São Paulo tentou implementar um programa que iria distribuir em escolas um granulado alimentar feito com produtos próximos ao vencimento. O que o senhor pensa sobre isso?
Por favor. Eu pergunto a você: o prefeito come a farinata?
Acredito que não.
E por que os pobres tem de comer a farinata? Os pobres tem o mesmo direito do prefeito. Um pobre não precisa de farinata por ser pobre. Todas as pessoas têm direito a uma boa alimentação. Não é justo: ao mesmo tempo em que temos a farinata, temos uma tonelada de comida boa destruída no Rio de Janeiro. Essa é a realidade.
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