Introdução
É ponto de partida para esta reflexão a emergência, na actualidade mediática, de uma ideologia ecológica, cujos principais pressupostos e tópicos radicam num pensar ético da contemporaneidade. Se já Paul Valéry dizia que o futuro não é o que era, o sentido deste enunciado, correctamente apropriado nos dias de hoje (nomeadamente pela publicidade), orienta em grande medida o pensamento da actualidade. Não podemos pois, ao pensar a cultura contemporânea que os media expressam, deixar de reconhecer plena actualidade ao ponto de vista de Valéry, num tempo em que a racionalidade de raiz iluminista parece viver o estado terminal, ou pelo menos se encontra a braços com transformações notórias.
Será numa linha paralela com a reavaliação dos projectos e impasses da Modernidade, assim como do estatuto do humanismo na contemporaneidade, que serão pensados os princípios éticos de uma ideologia ecológica. A nossa analise partirá de uma concepção ética recente, a que Hans Jonas (1903-1993) expõe no seu Princípio da Responsabilidade,(1) onde prescreve uma ética para a idade da técnica. Nela, como veremos, os mundos animal, vegetal e mineral, a biosfera ou a estratosfera passam a fazer já parte da esfera da responsabilidade, fundamentando uma disciplina como a ecologia, para onde convergiremos especialmente esta análise.
Contudo, ponto consequente nesta reflexão é um outro aspecto que imediatamente reclama alguma pertinência: até onde se pode alargar a esfera dos direitos com que a ecologia se identifica? E quem é o sujeito desses direitos? É esta a problemática que Luc Ferry aborda principalmente n’ A Nova ordem Ecológica(2), e que, de algum modo, concentra o que consideramos ser um interessante contendor de alguma da actual discussão científica sobre esta questão.
Será numa linha paralela com a reavaliação dos projectos e impasses da Modernidade, assim como do estatuto do humanismo na contemporaneidade, que serão pensados os princípios éticos de uma ideologia ecológica. A nossa analise partirá de uma concepção ética recente, a que Hans Jonas (1903-1993) expõe no seu Princípio da Responsabilidade,(1) onde prescreve uma ética para a idade da técnica. Nela, como veremos, os mundos animal, vegetal e mineral, a biosfera ou a estratosfera passam a fazer já parte da esfera da responsabilidade, fundamentando uma disciplina como a ecologia, para onde convergiremos especialmente esta análise.
Contudo, ponto consequente nesta reflexão é um outro aspecto que imediatamente reclama alguma pertinência: até onde se pode alargar a esfera dos direitos com que a ecologia se identifica? E quem é o sujeito desses direitos? É esta a problemática que Luc Ferry aborda principalmente n’ A Nova ordem Ecológica(2), e que, de algum modo, concentra o que consideramos ser um interessante contendor de alguma da actual discussão científica sobre esta questão.
Tempos de optimismo
São pois inevitáveis como ponto de partida as reflexões éticas de Hans Jonas. Na sequência do choque causado pelas primeiras bombas nucleares, no final da II Guerra Mundial, desencadeou-se a ideia de que o abuso do nosso domínio sobre a natureza conduz à destruição daquilo que durante séculos fomos aprendendo a dominar. O sentimento do possível apocalipse gradual, decorrente do perigo crescente dos riscos do progresso técnico, levou este alemão de origem judaica a pensar quais as possibilidades de redefinir as condições de um pronunciamento ético.
A nossa era (tecnológica por excelência) assistiu a uma mudança qualitativa da natureza da acção humana. As éticas tradicionais, racionalistas e iluministas, formulavam normas para a acção humana, e por isso tinham uma base antropológica; isto é, assentavam numa prévia definição da natureza do agente humano. Antes do imperativo "tu deves" vinha sempre a premissa "tu és". A condição humana, deste modo determinada pela natureza do homem e pela natureza das coisas, era um dado intemporal e constante. E assim era a razão, que desde o Iluminismo se vinha afastando da fé, que se predispunha a estruturar a vida humana. Sobretudo com Kant, a verdadeira moral só a seria se originada na plena autonomia da vontade e do entendimento. Vivia-se então um período civilizacional e cultural de autoconfiança humana, em que o âmbito da acção do homem - e logo da sua responsabilidade - se encontrava bem definido, dentro dos limites da racionalidade do Homem.
Tudo o que tivesse a ver com o mundo não-humano, com o chamado reino da techne, era então eticamente neutro. O significado ético pertencia ao trato directo do homem com o homem, incluindo consigo próprio; e por isso podemos considerar tais éticas como antropocêntricas. Assim sendo, também a entidade homem era considerada constante em essência, e não objecto passível de ser remodelado pela techne. Por último, acrescente-se ainda que todas as acções eticamente julgáveis se encontravam na proximidade do sujeito, tanto física como temporalmente. O horizonte ético era composto por contemporâneos e o futuro confinava-se à duração previsível da vida do indivíduo.
Deste modo, podemos considerar as éticas tradicionais como orientadas para o aqui e agora, para o que os homens faziam nas situações recorrentes e típicas da vida do quotidiano. A conduta decente tinha regras e critérios imediatos para cada situação precisa; tudo o que fosse a longo prazo era deixado ao acaso, sem ser alvo de atenção especial. Acrescente-se que a intuição do valor intrínseco do agir não exigia necessariamente um conhecimento superior ao do senso comum. (3) Não era, para agir eticamente, necessário o conhecimento do especialista ou do sábio, mas antes um conhecimento disponível e evidente para todos.
Era essa uma ética que vinha definida desde os gregos - como ética da techne – e que se resumia à imutabilidade da ordem cósmica, pano de fundo originário da acção humana. Quedava-se no muito bem conhecido interior dos muros da polis, e pressupunha uma correspondente permanência e inalterabilidade da natureza humana. O bem ou mal de cada acção é aqui globalmente decidido no contexto em que é produzido, e a sua qualidade emana como um fulgor, visível a quantos o testemunhem. Assim, ninguém era responsável pelos efeitos posteriores involuntários de um acto bem intencionado e desempenhado. De modo que consideramos exemplar, Jonas diz dessa época como «o braço curto do poder humano não exigia um longo braço de conhecimento preditivo».(4)
A nossa era (tecnológica por excelência) assistiu a uma mudança qualitativa da natureza da acção humana. As éticas tradicionais, racionalistas e iluministas, formulavam normas para a acção humana, e por isso tinham uma base antropológica; isto é, assentavam numa prévia definição da natureza do agente humano. Antes do imperativo "tu deves" vinha sempre a premissa "tu és". A condição humana, deste modo determinada pela natureza do homem e pela natureza das coisas, era um dado intemporal e constante. E assim era a razão, que desde o Iluminismo se vinha afastando da fé, que se predispunha a estruturar a vida humana. Sobretudo com Kant, a verdadeira moral só a seria se originada na plena autonomia da vontade e do entendimento. Vivia-se então um período civilizacional e cultural de autoconfiança humana, em que o âmbito da acção do homem - e logo da sua responsabilidade - se encontrava bem definido, dentro dos limites da racionalidade do Homem.
Tudo o que tivesse a ver com o mundo não-humano, com o chamado reino da techne, era então eticamente neutro. O significado ético pertencia ao trato directo do homem com o homem, incluindo consigo próprio; e por isso podemos considerar tais éticas como antropocêntricas. Assim sendo, também a entidade homem era considerada constante em essência, e não objecto passível de ser remodelado pela techne. Por último, acrescente-se ainda que todas as acções eticamente julgáveis se encontravam na proximidade do sujeito, tanto física como temporalmente. O horizonte ético era composto por contemporâneos e o futuro confinava-se à duração previsível da vida do indivíduo.
Deste modo, podemos considerar as éticas tradicionais como orientadas para o aqui e agora, para o que os homens faziam nas situações recorrentes e típicas da vida do quotidiano. A conduta decente tinha regras e critérios imediatos para cada situação precisa; tudo o que fosse a longo prazo era deixado ao acaso, sem ser alvo de atenção especial. Acrescente-se que a intuição do valor intrínseco do agir não exigia necessariamente um conhecimento superior ao do senso comum. (3) Não era, para agir eticamente, necessário o conhecimento do especialista ou do sábio, mas antes um conhecimento disponível e evidente para todos.
Era essa uma ética que vinha definida desde os gregos - como ética da techne – e que se resumia à imutabilidade da ordem cósmica, pano de fundo originário da acção humana. Quedava-se no muito bem conhecido interior dos muros da polis, e pressupunha uma correspondente permanência e inalterabilidade da natureza humana. O bem ou mal de cada acção é aqui globalmente decidido no contexto em que é produzido, e a sua qualidade emana como um fulgor, visível a quantos o testemunhem. Assim, ninguém era responsável pelos efeitos posteriores involuntários de um acto bem intencionado e desempenhado. De modo que consideramos exemplar, Jonas diz dessa época como «o braço curto do poder humano não exigia um longo braço de conhecimento preditivo».(4)
O fim dos grandes discursos
Este período, contudo, a breve trecho foi sendo abalado. Com efeito, em meados do século XIX, pelo contributo (entre outros) de Marx, do darwinismo, de Nietzsche e depois Freud, assistiu-se ao começo de um certo declínio da tal discursividade de emancipação, que constituía o ponto fulcral do projecto iluminista. (5) Algumas circunstâncias históricas agudizaram o sentimento de precariedade das tradicionais hierarquias de valores; marcadas pelas transformações técnicas, novos elementos alteravam estilos de vida e concepções da realidade, anunciando o advento de uma profunda instabilidade axiológica.
Os ideais típicos, tradicionais, entre os quais surgia o progresso, a liberdade e a verdade, ideais fundados na razão optimista, foram sendo sujeitos a um desgaste progressivo, que terá atingido uma quase total erosão já no nosso século. As duas últimas guerras mundiais, mormente a segunda, com manifestações de selvático irracionalismo, contribuíram para se instalar a desilusão, geradora de um discurso de crise, incerteza e negatividade absoluta.
Também Hans Jonas considera que tudo então mudou decisivamente. A técnica moderna introduziu alterações de tão diferentes escala, objectos e consequências na nossa cultura que o quadro da ética anterior não pode já ser suficiente. Acompanhando o fim da proximidade e da contemporaneidade, as acções da era da técnica moderna, reunidas num conjunto magnânimo, são agora um conjunto novo, irreversível e cumulativo. Esbateu-se, por exemplo, a fronteira entre cidade e floresta: o homem age indiferentemente hoje numa ou noutra. A moderna intervenção tecnológica do homem alterou a biosfera, e alterou-a na sua anterior qualidade de pano de fundo seguro e perene condição de possibilidade da própria acção humana.
Em suma: o agente que agora age fá-lo em condições diversas do agente da ética anterior. E é assim que, se as antigas prescrições da ética antiga relativas ao comportamento com o semelhante em cada momento e situação são ainda válidas, o mesmo agente, agora num domínio de acção colectiva, detém já poderes desmedidos em que acção e efeito não são o que antes eram.
Por outro lado, a techne anterior aparecia como um meio instrumental ao serviço da realização dos fins humanos. Era «um tributo à necessidade»(6). Um meio como forma finita para satisfazer uma necessidade bem próxima e definida. Passamos contudo agora a uma técnica como meio ambiente que condiciona o próprio agir. «Um ímpeto infinito da espécie»,(7) sendo a técnica a verdadeira vocação do homem, num processo permanente e autotranscendente.
Vimos deste modo como ao longo deste século (que se apontava capacitado para realizar os apelos da Modernidade) se assistiu todavia à desorientação vital, fruto da ausência de um horizonte axiológico estável. Neste contexto, em que se tende a destruir o que resta da crença iluminista num progresso moral da Humanidade, verificamos como, também em acordo com o italiano Vattimo, o projecto iluminista está (apenas, considera este) ofendido pelas novas condições de vida forjadas pela civilização industrial e pelas megaestruturas da técnica, que acentuam as marcas de irracionalidade, massificação e acritismo evidentes na vida quotidiana contemporânea. (8)
Deste modo, o que importa é apontado noutro momento por Karl-Otto Apel: é «assumir uma responsabilidade moral face às consequências directas e indirectas da prática humana na época da planetarização da técnica industrial»(9). E, segundo Jonas, deste nosso agir com efeitos (desconhecidos, muitas vezes) a longo prazo advém então a urgência de uma «nova espécie de humildade», causa «do excesso do nosso poder de agir face ao nosso poder de prever e ao nosso poder de avaliar e ajuizar». Jonas conclui cautelosamente: «a ignorância das implicações últimas torna-se ela própria numa razão para que se faça uso de comedimento responsável – à falta da própria sabedoria».(10)
Os ideais típicos, tradicionais, entre os quais surgia o progresso, a liberdade e a verdade, ideais fundados na razão optimista, foram sendo sujeitos a um desgaste progressivo, que terá atingido uma quase total erosão já no nosso século. As duas últimas guerras mundiais, mormente a segunda, com manifestações de selvático irracionalismo, contribuíram para se instalar a desilusão, geradora de um discurso de crise, incerteza e negatividade absoluta.
Também Hans Jonas considera que tudo então mudou decisivamente. A técnica moderna introduziu alterações de tão diferentes escala, objectos e consequências na nossa cultura que o quadro da ética anterior não pode já ser suficiente. Acompanhando o fim da proximidade e da contemporaneidade, as acções da era da técnica moderna, reunidas num conjunto magnânimo, são agora um conjunto novo, irreversível e cumulativo. Esbateu-se, por exemplo, a fronteira entre cidade e floresta: o homem age indiferentemente hoje numa ou noutra. A moderna intervenção tecnológica do homem alterou a biosfera, e alterou-a na sua anterior qualidade de pano de fundo seguro e perene condição de possibilidade da própria acção humana.
Em suma: o agente que agora age fá-lo em condições diversas do agente da ética anterior. E é assim que, se as antigas prescrições da ética antiga relativas ao comportamento com o semelhante em cada momento e situação são ainda válidas, o mesmo agente, agora num domínio de acção colectiva, detém já poderes desmedidos em que acção e efeito não são o que antes eram.
Por outro lado, a techne anterior aparecia como um meio instrumental ao serviço da realização dos fins humanos. Era «um tributo à necessidade»(6). Um meio como forma finita para satisfazer uma necessidade bem próxima e definida. Passamos contudo agora a uma técnica como meio ambiente que condiciona o próprio agir. «Um ímpeto infinito da espécie»,(7) sendo a técnica a verdadeira vocação do homem, num processo permanente e autotranscendente.
Vimos deste modo como ao longo deste século (que se apontava capacitado para realizar os apelos da Modernidade) se assistiu todavia à desorientação vital, fruto da ausência de um horizonte axiológico estável. Neste contexto, em que se tende a destruir o que resta da crença iluminista num progresso moral da Humanidade, verificamos como, também em acordo com o italiano Vattimo, o projecto iluminista está (apenas, considera este) ofendido pelas novas condições de vida forjadas pela civilização industrial e pelas megaestruturas da técnica, que acentuam as marcas de irracionalidade, massificação e acritismo evidentes na vida quotidiana contemporânea. (8)
Deste modo, o que importa é apontado noutro momento por Karl-Otto Apel: é «assumir uma responsabilidade moral face às consequências directas e indirectas da prática humana na época da planetarização da técnica industrial»(9). E, segundo Jonas, deste nosso agir com efeitos (desconhecidos, muitas vezes) a longo prazo advém então a urgência de uma «nova espécie de humildade», causa «do excesso do nosso poder de agir face ao nosso poder de prever e ao nosso poder de avaliar e ajuizar». Jonas conclui cautelosamente: «a ignorância das implicações últimas torna-se ela própria numa razão para que se faça uso de comedimento responsável – à falta da própria sabedoria».(10)
Fundamentos para uma ecologia
Na linha de pensamento que temos vindo a seguir e a propósito das alterações que a técnica moderna introduziu na acção humana, Hans Jonas propõe os fundamentos da chamada ideologia ecológica. Face à extrema vulnerabilidade da natureza à intervenção tecnológica do homem – insuspeitada antes de ter começado a revelar-se nos danos entretanto causados e ao choque que tal descoberta provocou, Jonas trouxe pois ao debate o conceito e a base da ciência que é a ecologia. E, o próprio facto de tal considerarmos, altera desde logo a própria concepção que temos de nós próprios como interventores causais na complexidade da vida. Vem mostrar que efectivamente a acção humana mudou, acrescentando ainda um objecto completamente diferente ao universo por que somos responsáveis - em virtude do nosso poder -: a biosfera do planeta.
Segundo Jonas, «varridas» a proximidade e a contemporaneidade com a respectiva contenção e sequências causa-efeito, surge agora um processo desconhecido em termos causais, e irreversível, que nos impõe novos deveres. E é assim que Jonas não receia, n’ O Princípio de Responsabilidade, advogar contra a tirania «utópica» da tecnociência com um não menos ditatorial conselho de sábios, o qual vigiaria em permanência todos cientistas que se arrogam conhecimento suficiente para decidir acerca do destino. Em nome da responsabilidade, coextensiva ao poder que temos sobre o que fica sob o nosso alcance (biosfera incluída), é requerida agora uma nova humildade – na falta do conhecimento sábio, que se faça então uso do comedimento.
Pretende-se com esta posição ser fiel a uma racionalidade vigilante, esforçadamente atenta às consequências das suas próprias convicções e logo empenhada num permanente sentido de responsabilidade crítica – uma posição, como vimos, presente também em Max Weber, e que na actualidade se revela pois, entre outros, em movimentos de orientação ecologista. A questão é de superior e ameaçadora pertinência, alerta Jonas: «em primeiro lugar, a Natureza foi neutralizada em termos de valor, em seguida é o próprio homem(11)». Como consequência, cabe agora à ética arrogar-se como tutela do crescimento técnico e do desenvolvimento científico, estabelecendo os seus inabaláveis limites. Deve a ética actual reflectir as aspirações do ser humano contemporâneo, mas opondo algumas resistências às transformações que consentem a degradação da sua liberdade. É esta a base do novo imperativo que Jonas propõe: deves agir «de tal maneira que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a preservação da vida humana autêntica»:(12)
De algum modo no mesmo sentido, afirma também Gianni Vattimo que «a técnica aparece como a causa de um processo generalizado de desumanização, que implica também o obscurecimento dos ideais humanistas da cultura, em proveito de uma formação do homem centralizada nas ciências e nas aptidões produtivas racionalmente dirigidas(13)». Partindo desta convicção, considera ainda a necessidade de um pensar forte e enérgico, e não um «pensiero debole», um pensar fraco. Urge uma intervenção ética apta a criticar dogmas dominantes, que construa o lugar de uma nova «poiesis existencial», isto é, de uma construção de novas formas de convivência humana mediante um «esforço de lucidez, que separe, sem equívoco, a liberdade da alienação»,(14) nas palavras de Georges Bastide. E nisto consistirá, em síntese, esta vocação ética proposta para a contemporaneidade.
Segundo Jonas, «varridas» a proximidade e a contemporaneidade com a respectiva contenção e sequências causa-efeito, surge agora um processo desconhecido em termos causais, e irreversível, que nos impõe novos deveres. E é assim que Jonas não receia, n’ O Princípio de Responsabilidade, advogar contra a tirania «utópica» da tecnociência com um não menos ditatorial conselho de sábios, o qual vigiaria em permanência todos cientistas que se arrogam conhecimento suficiente para decidir acerca do destino. Em nome da responsabilidade, coextensiva ao poder que temos sobre o que fica sob o nosso alcance (biosfera incluída), é requerida agora uma nova humildade – na falta do conhecimento sábio, que se faça então uso do comedimento.
Pretende-se com esta posição ser fiel a uma racionalidade vigilante, esforçadamente atenta às consequências das suas próprias convicções e logo empenhada num permanente sentido de responsabilidade crítica – uma posição, como vimos, presente também em Max Weber, e que na actualidade se revela pois, entre outros, em movimentos de orientação ecologista. A questão é de superior e ameaçadora pertinência, alerta Jonas: «em primeiro lugar, a Natureza foi neutralizada em termos de valor, em seguida é o próprio homem(11)». Como consequência, cabe agora à ética arrogar-se como tutela do crescimento técnico e do desenvolvimento científico, estabelecendo os seus inabaláveis limites. Deve a ética actual reflectir as aspirações do ser humano contemporâneo, mas opondo algumas resistências às transformações que consentem a degradação da sua liberdade. É esta a base do novo imperativo que Jonas propõe: deves agir «de tal maneira que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a preservação da vida humana autêntica»:(12)
De algum modo no mesmo sentido, afirma também Gianni Vattimo que «a técnica aparece como a causa de um processo generalizado de desumanização, que implica também o obscurecimento dos ideais humanistas da cultura, em proveito de uma formação do homem centralizada nas ciências e nas aptidões produtivas racionalmente dirigidas(13)». Partindo desta convicção, considera ainda a necessidade de um pensar forte e enérgico, e não um «pensiero debole», um pensar fraco. Urge uma intervenção ética apta a criticar dogmas dominantes, que construa o lugar de uma nova «poiesis existencial», isto é, de uma construção de novas formas de convivência humana mediante um «esforço de lucidez, que separe, sem equívoco, a liberdade da alienação»,(14) nas palavras de Georges Bastide. E nisto consistirá, em síntese, esta vocação ética proposta para a contemporaneidade.
A "deep ecology" e o abismo ecológico
Foi nesta linha que o francês Luc Ferry, atento pensador dos projectos e impasses da modernidade e também do estatuto do humanismo na contemporaneidade, definiu a nova ordem ecológica. Na obra com este mesmo nome atrás citada, Ferry expõe num primeiro momento os tópicos de uma certa ideologia ecológica para discutir depois, de forma cerrada, os seus principais pressupostos.
O questionamento que Ferry coloca é o seguinte: surgiu recentemente, segundo uma designação consagrada, um conceito de ecologia «profunda» que defende a plena integração dos mundos animal, vegetal e mineral na esfera do direito. Esta concepção encontrou na Europa partidários de destaque - o já referido Hans Jonas entre eles – e surge com especial fulgor sobretudo com Michel Serres e com o seu Le Contrat Naturel (1990), com o que havia recebido o prémio Medicis. Ora a questão que condensa a problemática que Ferry expôs na obra antes referida é a seguinte: «até onde» se pode alargar a esfera dos direitos com que a ecologia se identifica? E «quem é» o sujeito desses direitos?
Mas vejamos, é pois pelo confronto com a perspectiva de Michel Serres que surge a controvérsia entre Ferry e tal concepção, por Serres designada como «ecologia profunda». É que em acordo com esta nova temática ecológica, acusa Ferry que se pretende que o contracto social, a base da democracia ocidental, ceda «lugar a um "contracto natural", em cujo âmbito o universo inteiro se tornaria sujeito de direito: já não é o homem, considerado como centro do mundo, que se deve, prioritariamente, proteger de si próprio, mas sim o cosmos enquanto tal que deve ser defendido contra os homens».(15)
O que Ferry procura sobretudo mostrar é que, com uma ordem ecológica regulada pelas ambições de uma «deep ecology» se desenvolvem outros pressupostos que convém destacar (urgentemente!): é que há nela uma crítica radical e violenta em relação a toda a tradição ocidental, num anti-humanismo imposto pelo valor da natureza, tudo em eficaz combinação com uma cega hostilidade à técnica. Ou seja, Ferry dá conta de como a atenção às consequências directas e indirectas da técnica pode ceder espaço a um fundamentalismo romântico contra a mesma técnica.
Com Serres e a «deep ecology», afirma Ferry, desenhara-se um novo ideal que na sua composição misturara elementos de ordem utópica com outros procedentes da mais cândida nostalgia por uma certa forma de ser «antimoderno», em permanente atrito com a contemporaneidade. Por outras palavras, «o ideal da ecologia profunda seria um mundo onde as épocas perdidas e os horizontes longínquos teriam precedência sobre o presente. Não é pois por acaso que ela hesita entre os motivos românticos da revolução conservadora e os "progressistas" da revolução anticapitalista.» (16)
Para a presente reflexão, o trabalho de Ferry tem como aspecto de especial interesse algumas das interrogações de fundo que coloca. E nomeadamente a primeira: saber como é que a natureza pode ser um sujeito de direito uma vez que, manifestamente, ela não é um agente capaz da reciprocidade que sempre exige a ordem jurídica. O fundamentalismo ecológico passa ao lado do (incontornável) facto de que «é sempre para os homens que o direito existe, é para eles que a árvore ou a baleia se podem tornar objectos de uma forma de respeito, reconhecida pelas legislações, não o inverso».(17)
Ferry acusa ainda o recurso no debate actual a algum vitalismo exagerado e generalizado, que torna depois possível ou plausível afirmações como a de que «a biosfera dá vida tanto ao vírus da sida como ao bebé foca, à peste e à cólera como à floresta e ao ribeiro. Mas a questão que de imediato ocorre também é igualmente clara e evidente: «poderá, com seriedade, dizer-se que o HIV é sujeito de direito ao mesmo título que o homem?» (18)
O questionamento que Ferry coloca é o seguinte: surgiu recentemente, segundo uma designação consagrada, um conceito de ecologia «profunda» que defende a plena integração dos mundos animal, vegetal e mineral na esfera do direito. Esta concepção encontrou na Europa partidários de destaque - o já referido Hans Jonas entre eles – e surge com especial fulgor sobretudo com Michel Serres e com o seu Le Contrat Naturel (1990), com o que havia recebido o prémio Medicis. Ora a questão que condensa a problemática que Ferry expôs na obra antes referida é a seguinte: «até onde» se pode alargar a esfera dos direitos com que a ecologia se identifica? E «quem é» o sujeito desses direitos?
Mas vejamos, é pois pelo confronto com a perspectiva de Michel Serres que surge a controvérsia entre Ferry e tal concepção, por Serres designada como «ecologia profunda». É que em acordo com esta nova temática ecológica, acusa Ferry que se pretende que o contracto social, a base da democracia ocidental, ceda «lugar a um "contracto natural", em cujo âmbito o universo inteiro se tornaria sujeito de direito: já não é o homem, considerado como centro do mundo, que se deve, prioritariamente, proteger de si próprio, mas sim o cosmos enquanto tal que deve ser defendido contra os homens».(15)
O que Ferry procura sobretudo mostrar é que, com uma ordem ecológica regulada pelas ambições de uma «deep ecology» se desenvolvem outros pressupostos que convém destacar (urgentemente!): é que há nela uma crítica radical e violenta em relação a toda a tradição ocidental, num anti-humanismo imposto pelo valor da natureza, tudo em eficaz combinação com uma cega hostilidade à técnica. Ou seja, Ferry dá conta de como a atenção às consequências directas e indirectas da técnica pode ceder espaço a um fundamentalismo romântico contra a mesma técnica.
Com Serres e a «deep ecology», afirma Ferry, desenhara-se um novo ideal que na sua composição misturara elementos de ordem utópica com outros procedentes da mais cândida nostalgia por uma certa forma de ser «antimoderno», em permanente atrito com a contemporaneidade. Por outras palavras, «o ideal da ecologia profunda seria um mundo onde as épocas perdidas e os horizontes longínquos teriam precedência sobre o presente. Não é pois por acaso que ela hesita entre os motivos românticos da revolução conservadora e os "progressistas" da revolução anticapitalista.» (16)
Para a presente reflexão, o trabalho de Ferry tem como aspecto de especial interesse algumas das interrogações de fundo que coloca. E nomeadamente a primeira: saber como é que a natureza pode ser um sujeito de direito uma vez que, manifestamente, ela não é um agente capaz da reciprocidade que sempre exige a ordem jurídica. O fundamentalismo ecológico passa ao lado do (incontornável) facto de que «é sempre para os homens que o direito existe, é para eles que a árvore ou a baleia se podem tornar objectos de uma forma de respeito, reconhecida pelas legislações, não o inverso».(17)
Ferry acusa ainda o recurso no debate actual a algum vitalismo exagerado e generalizado, que torna depois possível ou plausível afirmações como a de que «a biosfera dá vida tanto ao vírus da sida como ao bebé foca, à peste e à cólera como à floresta e ao ribeiro. Mas a questão que de imediato ocorre também é igualmente clara e evidente: «poderá, com seriedade, dizer-se que o HIV é sujeito de direito ao mesmo título que o homem?» (18)
Conclusão
Uma ideia ocorre como óbvia, desde já: com A Nova Ordem Ecológica questionamos alguns dos principais tópicos e pressupostos da ideologia ecológica. O balanço de tal questionamento será sempre, decerto, positivo: cremos que pela colocação destas questões convergiremos para uma permanente avaliação crítica, a única que poderá proteger e defender a humanidade de novos abismos que, pelas mãos de ortodoxias insólitas, se poderão encontrar cada vez mais próximos.
Verificamos, sem dúvida, que a contemporaneidade significa um desafio à ética. Não só porque damos conta da extinção de alguns ideais morais da Modernidade, mas também porque se levanta agora a questão de saber (com o natural cepticismo) qual a situação e o valor da ética em dias de inegável perfil tecno-científico. Tudo se resume à seguinte questão: o que pode a ética num mundo onde o avanço implacável do niilismo se opõe à legitimação dos ideais morais dos «grands récits» de legitimação ? Se a formulação do problema é complexa, tentativas de solução não se afiguram fáceis. O desafio tende a persistir: se, por um lado, assumir a incerteza é uma desesperada mas lúcida atitude, por outro lado há que atentar nos movimentos de cariz contra-cultura, conservadores e de formas cada vez mais totalitárias, ostentadores de uma hostilidade cega à técnica misturada com intensificado e neurótico medo.
Bibliografia:
Apel, Karl-Otto, L’Étique à l’Âge de la Sciense, Presses Universitaires de Lille, Lille, 1987.
Bastide, Georges, Traité de l’Action Morale, PUF, Paris, 1961, vol. I.
Ferry, Luc, A Nova Ordem Ecológica, ASA, Lisboa, 1993.
Jonas, Hans, The Imperative of Responsability. In search of an ethics for the techological age, The University of Chicago Press, Chicago, s/d.
Lyotard, Jean-François, La Condition Postmoderne, Minuit, Paris, 1979.
Vattimo, Gianni, La Fin de la Modernité, Seuil, Paris, 1987.
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