A fome no mundo de milhões de pessoas é demasiado real para podermos encará-la sem perplexidade e tentar resolvê-la com estereótipos. Nessa medida, nem se pode subalternizar o facto de uma tecnologia poderosa, agronómica e química, ter "revolucionado" as quantidades de alimentos produzidos, nem se pode ignorar que essa multiplicação deixou milhões de pessoas na fome e legou problemas de sustentabilidade (fome futura!) que são um quebra-cabeças, desde a erosão à contaminação de solos e muitos outros. E não é apenas a "revolução verde" em termos agronómicos e químicos que está em causa, mas um complexo sistema tecnológico e civilizacional, que inclui a mecanização intensiva e consequente empobrecimento dos ecossistemas agrícolas, arrasando sebes para melhor circulação das grandes máquinas, apostando tudo nas grandes monoculturas, a opção económica e política ela expulsão dos camponeses da terra, por orientar os sistemas produtivos no "terceiro mundo" para a exportação de bens alimentares de interesse secundário deixando as populações locais mais pobres em alimentos essenciais e tornando-as até dependentes para esses bens básicos da importação da agricultura dos países ricos, por reduzir drasticamente o número de explorações agrícolas porque o "mercado" não consente que elas sejam viáveis e façam viver as famílias que ficam na terra, pela "necessidade" (leia-se: opção) de baixar drasticamente os preços alimentares para manter salários relativamente baixos e libertar rendimentos para o consumo dos bens industriais, e vários outros fatores.
Um dos aspetos mais curiosos da questão na sua real amplitude é aquilo a que chamo o paradoxo demográfico, que se pode ver em ação nos trabalhos dos historiadores do passado e dos sociólogos do presente. Isto é: o aumento populacional, ao contrário do que muitas vezes se supõe, não é algo que se resolva com maior produção alimentar PORQUE RESULTA DELA: é a maior disponibilidade de bens alimentares que permite o aumento populacional e não o contrário. Isso está comprovado em vários casos históricos e é inegável. Mas, por outro lado, como os "sociólogos da fome" também demonstraram, em especial no "terceiro mundo" (onde a colonização e a exploração ocidental imprimiu às sociedades locais inflexões de rumo específicas que não permitem que isolemos os fenómenos nelas presentes do surgimento da colonização), a fome está associada a populações excessivas, crescentes, com altas taxas de natalidade... Reduzir estes dois fenómenos contraditórios a explicações simplistas não nos ajudará muito.
Esse paradoxo está bem presente na nota do Carlos Aguiar. O primeiro fenómeno reveste esta forma que refere o Carlos: "As sacas de sulfato de amónio, de nitrato de cálcio, e outros adubos químicos, multiplicaram a população humana por quatro em 100 anos." Ou seja, o aumento de produção alimentar não se teria limitado a responder a necessidades alimentares de uma dada população, antes foi o fator do aumento populacional (sem esquecer que outros fatores existiram noutros domínios que não os da produção de alimentos).
O segundo fenómeno está de certa forma referido nesta outra frase por ele escrita: "No final do séc. XIX, William Crooks, um químico e físico inglês, alertou para o facto da população mundial estar a crescer aceleradamente e que se não fossem encontradas alternativas ao nitrato do Chile era inevitável uma fome global." Aqui as bocas seriam mais que as que poderiam ser alimentadas.
Como é próprio do paradoxo (diferentemente da simples e linear contradição, que é do domínio do pensamento), ele é um resultado da realidade e da sua complexidade e da coexistência de tensões opostas mas ambas reais.
Isso põe também o problema seguinte: será que, como afirmam tão frequentemente economistas e políticos, o aumento demográfico é não só uma boa coisa como uma coisa indispensável? Sem ele estaríamos perdidos - diz-se. A China e a Índia, as mais populosas nações do mundo, há muito que, embora com métodos diferentes, praticam o contrário disso, ou seja políticas (melhores ou piores) de limitação da natalidade. E aqui, do ponto de vista do movimento ecológico, surge a relevância do mútuo reforço de dois fatores convergentes na raiz da contínua degradação ambiental, inclusive dos solos e recursos agrícolas neles aplicados, degradação essa que é o sintoma claro da INSUSTENTABILIDADE do atual modelo agronómico: por um lado o aumento populacional, por outro lado a desmesura com que a civilização atual aplica a sua enorme potência tecnológica, a que acresce o facto de o sistema económico geral que domina se apoiar na necessidade de continuamente aumentar esses dois fatores e o respectivo consumo exponencial de toda a espécie de matérias primas, recursos vivos, etc.
Por isso, nem o atual modelo agronómico ("borlauguiano"...) poderá responder aos desafios do presente e do futuro; nem a alternativa poderá ser um outro modelo agronómico, seja ele "biológico", que apenas altere os métodos de cultivo isolando-os de todos os restantes fatores (sociais, económicos, tecnológicos, demográficos, civilizacionais).
Arne Naess, o mais notável filósofo que o movimento ecológico produziu (talvez porque antes de ser ecologista era já um filósofo notável), aponta claramente no sentido da redução gradual, voluntária e coletiva da população mundial, no que aliás converge com diversos movimentos de raiz ecológica que defendem desde os anos 1970 (por vezes de uma maneira que levanta outros problemas e algumas discordâncias importantes que eu subscreveria) a estabilização primeiro e redução depois da população mundial como indispensável para enfrentar a crise ecológica. Essas perspetivas, bastante visíveis no movimento ecoambiental mundial até 1980, sofreram depois um apagamento (como aliás o movimento na sua generalidade, até 1992 pelo menos, quando a Cimeira da Terra de certa forma começou a inverter o refluxo), e hoje são muito tímidas ou inaudíveis as vozes que põem a questão dentro do próprio movimento. Mas isso em nada afeta a importância teórica e prática dela.
Sobre a questão da população vista por Naess pode ver-se em português o texto que lhe é dedicado no livro Ganhar a Vida - Objectivo 7 Garantir a Sustentabilidade Ambiental, editado, sob coordenação de João Paulo Cotrim, pelo IPAD - Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, na sua página 68 ("Arne Naess: cinco ideias para uma mudança"), que redigi.
A excelência dos temas que voce aborda, dos textos que voce escolhe, alem de uma informação pura e simples e mesmo só assim, de extrema relevância, ainda instiga outras pesquisas, outras buscas e consequentemente amplia horizontes.
ResponderEliminarMuito agradecida, mesmo, Mestre.
Muito obrigado, Tânia!
ResponderEliminarBeijinhos