(imagem retirada do artigo Symbiogenesis:
The Hidden Face of Constantin Merezhkowsky, por Jan Sapp, Francisco Carrapiço & Mikhail Zolotonosov, a ler aqui)
Escrito por Francisco Carrapiço*
Revista Autor, 02-Mar-2009
2009 é uma data muito importante para a Biologia, já que é neste ano que se comemoram vários marcos importantes na história desta ciência ou de diversos dos seus protagonistas. A primeira é, sem dúvida, a data da edição do livro de Charles Darwin (1809-1882) “Origem das Espécies”, publicado em Londres no dia 24 de Novembro de 1859.
Comemoram-se, este ano, 150 anos da sua publicação. Obra fundamental para entendermos a estruturação e evolução dos sistemas biológicos e de algum modo a própria vida, corta de forma radical com as concepções do passado, abrindo novos caminhos e abordagens para o entendimento científico da vida e da sua evolução. De igual modo, 2009 é o ano comemorativo dos 200 anos do nascimento do autor da “Origem das Espécies”, que ocorreu em 12 de Fevereiro de 1809. Mas o ano de 2009 encerra também outras efemérides relacionadas com a Biologia e a Evolução, comemorando-se os 200 anos da edição da obra de Lamarck: “Filosofia Zoológica”. Neste livro, em dois volumes, o autor apresenta as primeiras ideias científicas modernas sobre evolução, visualizando este processo numa perspectiva progressiva, do menos para o mais complexo. Este ano encerra, igualmente, a comemoração do início dum célebre debate entre Louis Pasteur e Félix Pouchet sobre a questão da geração espontânea e que se revestiu duma importância vital para a evolução da ciência e da Biologia em particular.
Por fim, faremos referência à comemoração da publicação da obra de Constantin Merezhkowsky (1855-1921) “A Teoria dos Dois Plasmas como Fundação da Simbiogénese, Nova Doutrina Sobre a Origem dos Organismos”, editada em 1909. Este biólogo russo, na altura professor da Universidade de Kazan, introduz o conceito de simbiogénese definindo-o como “a origem de organismos pela combinação ou associação de dois ou mais seres que entram em simbiose”. Neste trabalho, Merezhkowsky não introduz apenas novos conceitos no domínio da simbiogénese, mas desenvolve também importantes ideias sobre a origem da vida, relacionadas nomeadamente com o papel dos organismos extremófilos neste cenário. O conceito de simbiogénese reveste-se duma grande importância em Biologia, já que o mesmo ultrapassa os pressupostos e bases científicas do neodarwinismo clássico, projectando-se no âmbito do que actualmente se designa pós-neodarwinismo.
Tradicionalmente consideramos a evolução como o resultado de mutações e recombinações genéticas associadas com a selecção natural, embora quase todas as formas de vida apresentem associações simbióticas com microorganismos, sendo por isso natural que a simbiogénese desempenhe um papel muito importante na evolução biológica, facto que tem sido negligenciado pela abordagem neodarwinista da evolução. Esta abordagem, ao ignorar o papel dos microorganismos na evolução, criou a ideia errada de que a evolução biológica teria ocorrido sem a participação destes. Remeteu o seu âmbito de acção para as plantas e os animais, deixando de fora 80% do tempo evolutivo do nosso planeta. No entanto, para muitos investigadores, a simbiose continua a ser considerada como uma excepção à regra da estrutura e organização do mundo biológico e não a regra que existe na natureza. Aliás, a abordagem por parte dos autores evolucionistas tradicionais em relação ao fenómeno simbiótico é que o mesmo não passa dum aspecto residual do problema evolutivo. Ora, os dados mais recentes apontam exactamente no sentido contrário, revelando que a simbiose é factor de mudança evolutiva e que não pode ser enquadrada e compreendida de forma integral no âmbito da teoria neodarwinista.
O conceito de simbiose foi introduzido pelo botânico alemão Heinrich Anton de Bary (1831-1888) em 1878, como a vida conjunta de organismos diferentes e é actualmente considerada um meio pelo qual a aquisição de novos genomas e novas valências metabólicas e organismais ocorrem, permitindo a construção evolutiva dos organismos biológicos. O rápido aparecimento destas novas características ou valências evolutivas adquiridas a partir dos organismos associados contraria, do nosso ponto de vista, a perspectiva gradualista da teoria neodarwinista. Neste sentido, as modificações evolutivas podem igualmente ser explicadas por uma integração sinergística entre organismos, a qual constitui a principal regra no mundo natural e não a sua excepção.
Todos estes trabalhos estiveram na base do desenvolvimento da abordagem simbiogénica da evolução, de que talvez as faces mais conhecidas sejam actualmente as de Lynn Margulis e de Jan Sapp. A primeira autora conhecida mundialmente através da teoria endossimbiótica sequencial, defende que a passagem do nível procariótico para o nível eucariótico da organização dos organismos biológicos foi feita através de processos simbióticos, sendo a célula eucariótica vista como o resultado da evolução de simbioses primitivas. Por outro lado, Jan Sapp tem dado ênfase aos aspectos da construção do pensamento simbiogénico, nomeadamente no âmbito da História da Biologia, e do confronto desta vertente científica com as ideias neodarwinistas no âmbito evolutivo. No entanto, outros autores ao longo dos anos foram construindo esta nova velha abordagem da ciência, salientando-se entre eles, Andreas Schimper (1856-1901), Shosaburo Watasé (1862-1929), Andrey Famintsyn (1835-1918), Félix d’ Hérelle (1873-1949), Paul Portier (1890-1962), Boris Kozo-Polyansky (1890-1957) e Ivan Wallin (1883-1969). Em súmula, a simbiogénese deve ser entendida como um mecanismo evolutivo e a simbiose o veículo através do qual esse mecanismo ocorre. Neste âmbito, a selecção natural deve actuar em organismos com diferentes adaptações simbióticas e não apenas em organismos que apresentam mutações.
O ano de 2009 não é apenas um palco para comemorar uma série notável de efemérides em Biologia, mas uma excelente oportunidade e um virar de página na forma como o Homem lida, estuda e compreende a Natureza e os organismos que a povoam. Que a abordagem e praxis científicas da evolução saiam mais uma vez enriquecidas deste trajecto e que as comunidades científica e educativa estejam à altura do desafio.
Referências bibliográficas
Carrapiço, F. e Rita, O. (2009). Simbiogénese e Evolução in Evolução. Conceitos e Debates, Levy, A., Carrapiço, F., Abreu, H. & Pina, M. (eds). Lisboa: Esfera do Caos (no prelo).
Margulis, L. & Sagan, D. (2002). Acquiring Genomes. A Theory of the Origin of Species .New York: Basic Books.
Sapp, J. (2003). Genesis. The Evolution of Biology. Oxford, New York: Oxford University Press.
* Francisco Carrapiço (ver currículo): Professor Universitário, FCUL, Departamento de Biologia Vegetal, Centro de Biologia Ambiental, Lisboa
Mais info:
Wikipedia
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