Aula de Alain Badiou sobre Democracia, Política e Filosofia na European Graduate School. Continua, depois, nas partes 2, 3, 4 e 5
Texto completo em Carta Maior
Tal qual nos é apresentada, a crise planetária das finanças parece-se com um desses maus filmes produzidos pela fábrica de sucessos pré-fabricados que chamamos hoje de cinema. Nada falta, incluindo as aparições que aterrorizam: é impossível impedir a sexta-feira 13, tudo desmorona, tudo vai desmoronar... Deixemos ao filme-crise, assim revisto, a sua força didática. Podemos ainda ousar, face à vida das pessoas que o assistem, nos vangloriar de um sistema que remete a organização da vida colectiva às pulsões mais baixas, à cobiça, à rivalidade, ao egoísmo? Fazer o elogio de uma "democracia" onde os dirigentes são tão impunemente os empregados da apropriação financeira privada que espantaria o próprio Marx, que já qualificava esses governantes, há 160 anos, como funcionários do poder do capital? Afirmar que é impossível tapar o buraco da segurança social, mas que devemos tapar, com biliões, o buraco dos bancos?
A única coisa que podemos desejar nesta questão é que descubramos o poder didático nas lições que podem ser tiradas para os povos, e não para os banqueiros, para os governos que os servem e para os jornais que servem aos governantes, em toda essa cena sombria. Eu vejo dois níveis articulados deste retorno do real. O primeiro é claramente político. Como o filme tem mostrado, o fetiche "democrático" não passa de um serviço solícito aos bancos. O seu verdadeiro nome, o seu nome técnico, como proponho há muito tempo, é: capital-parlamentarismo. Convém, pois, como múltiplas experiências começaram a fazer nos últimos vinte anos, organizar uma política de natureza diferente. Ela é e estará - por muito tempo ainda, sem dúvida - distante do poder do Estado, mas pouco importa. Ela começa, na base do real, pela aliança prática das pessoas mais imediatamente disponíveis para inventá-la: os novos trabalhadores vindos da África ou de outros lugares, e os intelectuais herdeiros das batalhas políticas das últimas décadas.
Ela vai ampliar-se em função do que houver a fazer, ponto por ponto. Não manterá nenhuma espécie de relação orgânica com os partidos existentes e o sistema, eleitoral e institucional, que os mantém vivos. Ela inventará a nova disciplina daqueles que não têm nada, a sua capacidade política, a nova ideia do que seria sua vitória.
O segundo nível é ideológico. É preciso inverter o velho veredicto segundo o qual estaríamos vivendo "o fim das ideologias". Vemos hoje, muito claramente, que essa pretensão não tem outra realidade do que a expressa pela palavra de ordem "salvemos os bancos". Nada é mais importante que reencontrar a paixão das ideias e pôr ao mundo tal qual é uma hipótese geral, a certeza antecipada de um outro curso de acontecimentos totalmente distinto. Ao espectáculo maléfico do capitalismo, nós opomos o real dos povos, da existência de todos no movimento próprio das ideias. A motivação de uma emancipação da humanidade não perdeu em nada a sua força. A palavra comunismo, que durante muito tempo nomeou essa força, foi certamente aviltada e prostituída.
Mas, hoje, a sua desaparição só serve aos mantenedores da ordem, aos actores febris do filme-catástrofe. Nós iremos ressuscitá-la, na sua nova clareza. Que é também a sua antiga virtude, expressa quando Marx dizia, a propósito de comunismo, que ele rompia da forma mais radical com as ideias tradicionais e que fazia surgir uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos. Ruptura total com o capital-parlamentarismo, política inventada a partir do real popular, soberania da ideia: tudo está aí para nos tirar do filme da crise e remeter-nos à fusão do pensamento vivo e da acção organizada.
Alain Badiou é filósofo, escritor e editor. Artigo publicado no jornal Le Monde (17/10/2008)
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