terça-feira, 5 de julho de 2022

Das pedras, agrofloresta!

Em Busca da Fertilidade Perdida


Para a compreensão dos desafios associados aos sistemas de cultivo ‘tradicionais’, importa assumir a dinâmica estabelecida entre a fertilidade e a restituição de nutrientes no solo ao longo do tempo histórico.

Na análise da paisagem rural portuguesa - num arco temporal que nos leva de final de século XIX até meados do século XX - fica claro que Portugal passará de um país com metade do seu território ainda inculto, para um país em plena expansão agrícola, onde a área cultivada atingiu um recorde histórico, nunca antes alcançado e nunca mais repetido (do Carmo, 2018). Num país pressionado pelo aumento da população e pela necessidade crescente de alimentos, esta expansão será assegurada pelo progressivo abandono de um modelo agro-silvo-pastoril, para um modelo assente na expansão exclusiva das culturas de cereal, daí resultando o agravamento dos processos erosivos e o esgotamento dos solos.

Contudo, muito antes do arco temporal descrito, esta realidade era já manifesta, como nos dá conta o excerto da exposição do magistrado territorial Gervásio de Almeida Pais à rainha D. Maria II (em 1789) sobre o estado da agricultura em Mértola:

" (...) o fundamento mais sólido para a geral felicidade consiste na agricultura, e esta no meu distrito se acha em total decadência (...). Persuadido este povo de que a agricultura só consiste na lavoura das terras e na criação dos gados, tem posto em total desprezo a dos arvoredos, sem advertir que estes ramos se ajudam um aos outros, conservando entre si uma mútua e recíproca dependência; de forma que desprezando um deles, será coisa impraticável conseguir o aumento e perfeição dos outros. Essa verdade vejo eu aqui verificada com prejuízo de todo este Povo, na grande mortandade dos seus gados, em cuja criação mais se interessa, ocasionada umas vezes por falta de pastagens, porque os campos despidos de arvoredos e expostos aos ardores do Sol se tornam mais áridos e secos, e na falta de humidade e frescura da terra não podem conservar-se as ervagens e fenos necessários para o sustento dos mesmos gados; os quais, outras vezes, morrem repassados já dos frios, e já dos calores, na falta de arvoredos em que possam abrigar-se. Mas, apesar de tão sensíveis e frequentes exemplos, tem continuado o mal sem se examinar a sua origem e causas de que procede (...)"(Sousa et al., 2016).

Daqui resulta que o frágil equilíbrio da transferência de nutrientes é secular, estando intimamente relacionada com a gestão de biomassa no sistema. Dito de outro modo,

“a floresta sempre ocultou “no lenho ou no solo algo que a agricultura sempre necessitou: nutrientes”(Aguiar & Azevedo, 2011). 

Podemos assim assumir que se a agricultura foi o principal motor da desarborização do território, foi também a causa fundamental da perda de fertilidade do mesmo.

A partir de meados do século XX, esta agricultura ‘tradicional’, assente num equilíbrio instável ao longo de séculos, verá ainda a sua sustentabilidade agravada pela alteração radical na gestão do uso do solo, na substituição do fornecimento de azoto orgânico pelo uso de fertilizantes químicos, e do trabalho humano e animal pela mecanização agrícola. 

Se o novo modelo permitiu uma ‘libertação de espaço’ pela progressiva concentração e intensificação da produção, contribuiu também para a desarticulação dos territórios com os modos de gestão orgânica de base local e regional, agravando a degradação dos solos, e pondo em causa a sua fertilidade permanente. 

No abandono de um metabolismo agroecológico ancestral, passar-se-á a um modelo químico-mecânico assente no consumo crescente de energia fóssil (Santos, 2013), com presença dominante até aos nossos dias.

É por isso fundamental promover uma agricultura capaz de coexistir com a regeneração do ecossistema em que se integra. Uma agricultura que seja diversa e perene, que promova a construção do solo em vez da sua exploração, que contribua para o incremento da biodiversidade, da regulação dos ciclos de água, da manutenção da massa florestal e da gestão do fogo.

Uma agricultura que construa comunidade, na promoção de um consumo sazonal e de proximidade, na celebração de vínculos entre produtores e consumidores, e que valorize a comida enquanto bem essencial.

Uma agroecologia, onde o Homem volte a ser chamado a participar na promoção dos ciclos de vida no planeta. 

Referências bibliográficas:

Aguiar, C., & Azevedo, J. (2011). A floresta e a restituição da fertilidade do solo nos sistemas de agricultura orgânicos tradicionais do NE de Portugal no inicio do século XX. In J. P. Tereso (Ed.), Florestas do Norte de Portugal: História, Ecologia e Desafios de Gestão. Porto: InBio.

do Carmo, M. C. (2018). Solo e agricultura no século XX Português: um problema ambiental, histórico e epistemológico. Universidade de Lisboa, Lisboa.

Santos, J. L. (2013). Agricultura e Ambiente: o papel da tecnologia e das políticas públicas. In J. L. Santos (Ed.), O Futuro da Alimentação: Ambiente, Saúde e Economia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Sousa, F. d., Cosme, J., Almeida, F. d., Lopes, J. d. C., Nazareth, M., & Rocha, R. (2016). Alentejo: população e economia em finais de Setecentos. CEPESE - Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade, 148-150. 

Fotografia de Artur Pastor . Série "Portugal Rural" . Alentejo, década de 1940

Fonte: Centro de Agroecologia de Mértola

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