segunda-feira, 1 de novembro de 2021

COP 26: Esta eco-ansiedade não é (só) para novos

A meados de setembro o meu telefone tocou, com uma chamada da Ti Maria. Queria falar urgentemente comigo sobre Alterações Climáticas porque, para além de saber que eu estudava o assunto, eramos praticamente vizinhas. Separavam-nos umas décadas de idade, mas eramos ambas nascidas e criadas na ria de Aveiro, com o oceano Atlântico aos pés.



Pegou no título do Expresso, e leu-me: “Alterações climáticas em Portugal: em breve teremos de começar a retirar pessoas da orla costeira do Norte”. Depois mudou de tom, e disse: “só quero que me digas se tens a certeza. Diz aqui que Aveiro é uma mancha vermelha assustadora e que, segundo o estudo, nos vão tirar das nossas casas. Se for verdade, pegamos nas trouxas, e vendemos tudo.”

A Ti Maria esperou resposta do outro lado, mas a minha boca não se abriu. De marés e truques do tempo não havia quem batesse aquela senhora pescadora. Mas fogos na Califórnia, degelo no Ártico e inundações na China não lhe diziam nada.

“Dizem isto da nossa terra, e depois constroem casas de ricos ao lado"

Agora estava com medo, à espera que eu falasse. Acrescentou: “Dizem isto da nossa terra, e depois constroem casas de ricos ao lado. Tenho de comprar um carro elétrico, e depois querem aeroportos! Parece que vivemos como criminosos o tempo todo, no nosso próprio sítio... Sinto-me burra. Olha eu, refugiada na minha terra. Dá lá vontade de votar”. E acabou: “Tens a certeza, ou não?”

Eu tinha duas hipóteses. A minha hesitação já soava a incompetência e desrespeito à Ti Maria, que achava que se eu estudo é para saber estas coisas. E aos meus colegas da emergência climática (palavra do ano de 2019) também, cuja resposta seria um sim garrafal justificado - sem espaço para dúvidas.

Respirei, e soltei a deixa, à espera da retaliação: “Não, não tenho a certeza” – respondi à Ti Maria. E antes que ela conseguisse acabar o suspiro de alívio, acabei a frase - “porque ninguém tem a certeza de nada”.

A Ti Maria chamou-me um nome feio (menos mau do que aquele que eu merecia). Disse que não percebia que raio andava eu a fazer na universidade, se nem um simples sim ou não conseguia dar (também a compreendo). Que ia era deixar de ver notícias (eu falo sobre isto depois). E desligou o telefone... (um dia ainda a apanho no talho e falamos, se ela voltar a olhar para mim).

No artigo do Expresso sublinhava-se a importância de “termos de ser capazes de explicar às pessoas, e fazer com que as pessoas acreditem, que é inevitável que as incursões [do mar] vão ser cada vez mais violentas e mais frequentes".

Assim, cada vez mais autores apoiam o uso persuasivo de histórias na comunicação da ciência climática para solucionar as “falhas de ação”, entre aquilo que as evidências científicas “mostram que deve ser feito” e “aquilo que é feito”, para mitigar os impactos das alterações climáticas. A comunicação da ciência do clima é assim feita através de diferentes narrativas em função do público-alvo para criar uma “adesão democrática para stakeholders e unificar abordagens, filosofias e atitudes”.

Os níveis de medo e angústia advindos da “eco-ansiedade” são brutais

São exemplos os atores e narrativas que colocaram, em 2018 e 2019, o tema das alterações climáticas na ordem do dia (“interrompidos” pela pandemia). Os Extinction Rebellion utilizam narrativas catastróficas como “o colapso é iminente” ou “12 anos para salvar o mundo”, que também é referido no Relatório Especial do 1.5ºC do IPCC. Greta Thumberg e as greves estudantis utilizam narrativas de justiça e igualdade que clamam que “estão a destruir o nosso futuro”. E a principal narrativa, na qual se baseia a atual Cimeira do Clima em Glasgow - a económica – que defende que a solução é “reconciliar a economia com o nosso planeta”, através da descarbonização da economia e eletrificação global da rede.

Contudo, os níveis de medo e angústia advindos da “eco-ansiedade” são brutais, bem como os seus efeitos negativos no dia-a-dia. Um estudo na Nature dá conta do fenómeno entre os jovens (16-25 anos), cuja maior preocupação é que os governos não estejam a fazer nada para evitar uma catástrofe ambiental. E a Ti Maria mostra que a eco-ansiedade não é só para novos, e importa-lhe a morada fiscal (que levou a vida para pagar ao banco), o serviço de porcelana da Vista Alegre (herdado da avó) e, o mais importante, evitar o desespero de que um dia um filho lhe venha a cobrar o facto de ter tomado a decisão errada.

A Ti Maria deixou de se sentir em casa, e os caminhos mais prováveis, quando isso acontece a alguém, são o da radicalização – que nos leva a embarcar em projetos prejudiciais a nós próprios ou aos outros - ou da alienação – em que procuramos mais entretenimento e perdemos a vontade de lutar seja pelo que for. Bertrand Russell descreveu-o, em Insustentabilidade da Sociedade Científica (1949), logo depois do fim da Segunda Guerra.

Assim sendo, e porque a personagem da Ti Maria é baseada em factos reais, gostava de lhe ter explicado que a natureza da ciência implica níveis de probabilidade e incerteza (Fortner, 2000).

Que, em termos práticos, e deixando a epistemologia para depois (ciência que estuda o conhecimento), as “projeções avançadas pela Climate Central para 2030”, citadas na notícia, não são uma profecia. São sim o resultado de “cenários” (valores estimados para o futuro forçamento radiativo no planeta) submetidos a “modelos” (simulações da forma como o sistema climático funciona), cujas conclusões são debatidas, e utilizadas como informação de apoio a tomadas de decisão. E que a ciência como dogma é tão eficaz quanto perigosa. Não querendo ser spoiler, já dizia Frank Herber, em DUNE: “Eu não devo temer. O medo é o assassino da mente. Medo é a pequena morte que traz a obliteração total.”

É problemático exigir respostas de “sim e não” à ciência

Os últimos dois anos de pandemia ofereceram, e continuam a oferecer, bastantes exemplos de como é problemático exigir respostas de “sim e não” à ciência para legitimar decisões em estados democráticos.

Podemos correr o risco de alimentar uma crise de verdade, onde as fake-news e os movimentos negacionistas utilizam a narrativa da incerteza como factor de descredibilização do conhecimento científico. Quando, em verdade, o ceticismo (que é o ato de questionar, e não o ato de negar) é a base da ciência. Os discursos negacionistas de Donald Trump e Jahir Bolsonaro são um exemplo do uso desta narrativa nas Alterações Climáticas.

Também gostava de dizer à Ti Maria que, apesar da minha resposta, todos precisamos de certezas para conseguir viver nesta sociedade. Que a construção social da realidade de cada um é construída através de rotinas de espaço e tempo definidos (aqui e agora), onde o indivíduo não formula problemas a si próprio sobre o que é a “realidade” ou sobre o que "sabe".

Cada pessoa é especializada num papel, e espera a mesma contribuição dos outros na sociedade, pelo que reconhece a realidade como um fenómeno que lhe é independente. Quando a rotina é interrompida por um problema, procura integrá-lo dentro do que ainda não é problemático, ou seja, está institucionalizado.

O problema que afeta a Ti Maria, e a sociedade atual em geral, é que a “modernidade” já não existe. Os indivíduos aceitavam determinados graus de autoritarismo, fossem através do estado, do emprego, da própria família ou de outras instituições da sociedade, em troca da segurança e estabilidade de vida prometida pelas organizações.

Só que como os riscos sociais políticos, ecológicos e individuais escapam cada vez mais ao controlo das instituições típicas da sociedade industrial a crise aparece (Beck,1992).

A mudança é a única coisa permanente e a incerteza é a única certeza

Na pós-modernidade, o cidadão leigo é confrontado diariamente com conceitos que alertam para a propensão ou predisposição para ser adversamente afetado por algo que não conseguem sensorialmente concluir (IPCC, 2013), e não por problemas momentâneos e visíveis, com um grau de consenso da comunidade científica e um conhecimento comprovado por causas rígidas.

Os órgãos de governo e agentes económicos, para legitimar as sua decisões, exigem, por vezes, à comunidade científica que forneça informações precisas e previsões proféticas, mas os sistemas complexos apresentam limites difusos, enquadramentos de diferentes grupos e indivíduos, soluções pouco claras e incerteza científica substancial, difícil de quantificar.

A mudança é a única coisa permanente e a incerteza é a única certeza. A sociedade líquida (que abandona a industrial e começa com a revolução digital) traz liberdade individual, mas destrói também a segurança projetada em torno de uma vida estável.

“Pior que uma mentira é uma convicção”

Afinal, quanto mais sabemos sobre determinado assunto, mais fatores descobrimos que antes não contabilizávamos ou mesmo reconhecíamos. E quanto “mais conhecimento, menos certeza” (Trenberth, 2010). Como o meu filósofo preferido, Nietzsche, diz: “todos os cientistas são céticos” e, “pior que uma mentira é uma convicção”.

Porque também eu, como a Ti Maria, questionei, com 14 anos, quando é que ia ficar sem casa, perante as imagens de Verdade Inconveninente, e aquelas capitais mundiais a serem inundadas. E agora escrevo este artigo, em 2021, na mesma casa que (ainda) não foi ao fundo. Enquanto se decide como “salvar o planeta” na “last call”, em Glasgow, e se constroem prédios como nunca se construíram, na ria e nas praias da minha terra.

(A Ti Maria viu-me na rua no outro dia, e cumprimentou-me de fugida. Eu sei que assim não faço muitos amigos.)

Fonte: aqui

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