sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Noam Chomsky - "Traímos a juventude do mundo. Estamos a trair os nossos filhos e netos"

Teórico da linguagem, pensador polémico, acaba de publicar "Um guia essencial sobre capitalismo, política e o funcionamento do mundo". Na entrevista à TSF fala de vacinação, clivagens políticas, Afeganistão e alterações climáticas.


Professor Noam Chomsky, acredita que os países ricos estão dispostos a assumir as suas responsabilidades e ajudar a fornecer o que o mundo em desenvolvimento ainda precisa em termos de vacinação?

É um escândalo e também é suicida. Quer dizer, os países ricos praticamente monopolizaram a vacina. Tem havido alguns esforços para distribuí-la aos países que precisam dela desesperadamente. Na África, Ásia, América Latina. O que aconteceu foi que os países ricos não só monopolizaram as vacinas, mas insistem em que as taxas de lucro exorbitantes das empresas farmacêuticas sejam protegidas pelos chamados acordos de livre comércio altamente protecionistas. A Alemanha é um dos piores exemplos. Nesse caso, o que é incomum, pela primeira vez, os Estados Unidos têm um histórico um pouco melhor do que a Europa.

O que está a acontecer não é apenas profundamente imoral, mas também suicida. Até porque todos entendem que quanto mais tempo levar para o resto do mundo ser vacinado, mais tempo há para o vírus se transformar, possivelmente em variantes que serão incontroláveis, que irão, claro, voltar aos próprios países ricos, como foi com a variante Delta. Portanto, é um exemplo de como a ganância e a estupidez superam, não apenas os valores morais elementares, mas até mesmo um sentido de autopreservação.

Prevê alguma mudança fundamental provocada pelo impacto desta pandemia na forma como as sociedades ocidentais se organizam, quer nos EUA quer na UE

Bem, certamente que as sociedades ocidentais podem ser acusadas. Se olhar ao redor do mundo, verá que há países que lidaram com a pandemia de maneira bastante expedita, principalmente na Ásia e principalmente na Oceânia, Nova Zelândia e Austrália. São sociedades onde há um sentido de compromisso, de que devemos aceitar limitações na nossa liberdade a fim de servir o bem comum. Portanto, vejamos a Europa. No início de 2020, tinha o vírus razoavelmente sob controlo. Alguns países melhores do que outros, a Alemanha estava muito bem, mas não a Itália ou sequer a França. Então, os europeus decidiram que queriam ter as suas férias. Partiram para as praias, para o campo, tiveram as suas férias de um mês. E aí veio um grande pico. Nos países da Ásia e da Oceânia, houve uma restrição forte no início e, em seguida, uma subida com poucos casos. A China tem menos casos por ano do que os EUA num dia.

Agora, há um forte movimento antivacinação. Em todo o mundo, até certo ponto, mas nos EUA é localizado. De forma esmagadora, nos estados republicanos, praticamente na velha confederação e em alguns estados do noroeste, estados rurais que estão sob governo republicano, há uma oposição muito forte à vacinação. E os hospitais estão lotados com quase 100% de pacientes não vacinados. As pessoas estão a morrer e dizem "não quero uma vacina, não vou deixar o governo fazer isso comigo". Sabe, é maníaco, doentio, até alguns segmentos da esquerda são apanhados nisso. Mas se olhar para os mapas globais, os EUA estão fora do espetro das sociedades desenvolvidas. E se olhar para partes específicas do país, praticamente a velha confederação, os republicanos administram os estados rurais a noroeste, não totalmente, mas muito perto disso. Nos EUA, a maioria dos republicanos dizem que simplesmente não serão vacinados.

Isso relaciona-se com as clivagens e a polarização na política americana atual. Vê-as como uma ameaça importante para a democracia dos EUA?

Bem, a democracia dos EUA está moribunda, está de partida. Não é só a minha opinião, pode encontrá-la em círculos conservadores muito respeitáveis. Leia o Financial Times de Londres. O maior jornal de negócios do mundo. Têm colunistas importantes, pessoas como Martin Wolf, que alerta que a democracia nos EUA está em grande perigo por causa do que ele chama de um partido radical com uma agenda reacionária. O Partido Republicano. Podemos ver isso no Congresso agora que está a debater a legislação que levaria os Estados Unidos, em alguma medida, na direção de social-democracia que é normal na Europa. Cuidados de saúde universais dificilmente radicais, ensino superior gratuito, creches, isto é, as coisas normais na maior parte do mundo mas que nos Estados Unidos são consideradas radicais. Os republicanos são 100% opostos. Existem também democratas de direita, como Joe Mancini, o principal recetor de financiamento para combustíveis fósseis no Congresso, que também estão a bloquear.

Repare, trata-se de atingir direitos que são normais em toda a parte. São coisas normais no México, que é um país pobre. Bem, esse é um problema antigo nos Estados Unidos, um país muito rico, com vantagens que nenhum outro país tem. Um alto grau de liberdade, os Estados Unidos protegem a liberdade de expressão em um grau incomum, são coisas boas. Mas está muito aquém da maior parte do mundo civilizado em benefícios sociais, bem-estar social e na dedicação ao bem comum. Bem, não que a Europa tenha muito do que se gabar. Mas é a Europa que está a assumir a liderança nas vacinas para os pobres e para os que sofrem em todo o mundo.

Pensa que um Partido Republicano orientado e controlado pelo ex-presidente Trump, pode ganhar as eleições intercalares do próximo ano e voltar ao poder na Casa Branca em 2024?

É muito provável. E se o fizerem, o mundo estará em grande perigo. Eles têm uma estratégia de vitória. Sabem que são um partido minoritário, entendem que não podem ganhar eleições livres. Portanto, têm uma estratégia que passa por reduzir os direitos de voto. Portanto, praticamente todos os estados administrados por republicanos estão a impor novas leis que tornam mais difícil o voto de eleitores que tendem a ser democratas, tornam mais difícil para que votem as minorias, os pobres, os trabalhadores, as populações urbanas e assim por diante. Dessa forma, aumentam o poder da base republicana, da direita, da supremacia branca, do nacionalista cristão, do tradicional. Então, essa é uma tática. A outra tática, a segunda parte, que acontece há alguns anos, é desviar a atenção das questões económicas e de classe, onde os republicanos estão muito à direita e a esfaquear os seus próprios eleitores pelas costas. Portanto, desviam a atenção disso para as chamadas questões culturais. Querem fazer com que as pessoas se preocupem com o que é chamado de teoria racial crítica. Não têm a menor ideia do que isso seja, mas é um símbolo de educação, que mina a supremacia branca. Então, concentram-se nisso, ou no aborto, ou em garantir que todos tenham um arsenal de fuzis na garagem, qualquer coisa menos a classe e as questões económicas. Isso acontece há 50 anos e faz sentido para um partido totalmente leal aos super-ricos e ao setor corporativo.

Pode ver isso dramaticamente com Trump, um homem com uma autoconfiança brilhante, ele poderia levantar-se, com uma mão dizer, "eu amo-te. Eu trabalho para ti"; e, com a outra mão, apunhalar-te pelas costas. Então, aqui vai uma conquista legislativa dele: uma foi um corte de impostos para os super-ricos e para o setor corporativo, colocando um fardo mais pesado sobre os trabalhadores pobres e a classe média. E escapou impune. Ok, ele é dono do Partido Republicano, tem uma massa de gente leal, pessoas que acreditam firmemente que ele trabalha para eles enquanto os apunhala pelas costas. Uma terceira parte da estratégia, que é muito aberta e explícita, é fazer com que o país sofra o máximo possível... Certificarem-se de que os democratas não podem aprovar nenhuma legislação que ajude a população. Se ler os projetos agora no Congresso: seguro-desemprego, creche, uma ajudinha de saúde para o escandaloso sistema de saúde dos Estados Unidos, tudo isso seria muito benéfico para a população. São medidas muito populares, mesmo entre os eleitores republicanos. Mas os republicanos precisam ter certeza de que não serão aprovadas. Porque se o país sofrer o suficiente e for ingovernável, eles podem culpar os democratas e voltar ao poder.

Isso é algo muito aberto, não está escondido. Bem, essas são as táticas e podem muito bem funcionar. Na verdade, algumas das coisas com as quais os republicanos se safam são quase cómicas, como a retirada do Afeganistão. A retirada do Afeganistão foi planeada por Trump. Em fevereiro de 2020, fez um acordo com os taliban, sem sequer notificar o governo afegão. O acordo era: vocês podem fazer o que quiserem, assumir aquilo. Sem condições. Nós retiramos as tropas. A única condição é não dispararem contra as tropas americanas que vão embora. Fora isso, façam o que quiserem. Foi uma traição total.

O Partido Republicano saudou isso como uma conquista histórica fantástica. E se vir a página na internet do Partido Republicano, quando a retirada que eles haviam pedido se transformou num desastre, então eles mudaram instantaneamente. Provavelmente viu as audiências no Congresso em que os senadores republicanos denunciavam o general Milley e os democratas por terem executado uma versão melhorada da política que eles, republicanos, vinham saudando como uma conquista histórica. Isso exige um objetivo real para o fazer. E conseguiram fazer isso com a cumplicidade dos média. Bem, este é o tipo de país em que vivo.

Na Economist, há algumas semanas, o senhor escreveu que os EUA permanecem incomparáveis ​​e sem rival em força militar e económica, com terríveis consequências para o mundo. E relaciona isso precisamente com o que está a acontecer no Afeganistão. Porquê?

Basta dar uma vista de olhos nas despesas militares. O orçamento militar dos EUA é de cerca de três quartos de um trilião de dólares. O próximo nível mais alto é a China, que está a cerca de um terço disso. Atrás da Índia, em quarto lugar está a Rússia, com cerca de 60 biliões. Os EUA superam todos os rivais possíveis juntos. Veja o que está a acontecer nos mares da China. E agora é o governo Biden. Os EUA alegam que a China representa uma ameaça à América. Onde está a ameaça? É na costa da Califórnia? É no Caribe? A ameaça está na fronteira da China, dizem, cercada por mísseis com armas nucleares de dezenas das 800 bases militares americanas em todo o mundo. A China tem uma no Jibuti. Há uma luta em curso, que é muito mal compreendida pela imprensa.

É uma questão de liberdade de navegação. São questões um pouco técnicas, mas relacionadas com o Direito do mar. Há uma disposição que estipula que os países têm uma zona económica exclusiva de 200 milhas, a partir da costa. Agora, a questão da liberdade de navegação com a China está nesse ponto. Os EUA não assinaram a Lei do Mar, nem a ratificaram. São o único país marítimo que não o ratificou. Mas insistem que a liberdade do direito do mar permite ações militares e de inteligência dentro da zona económica exclusiva. A China rejeita. Aceita a liberdade de navegação, mas sem nenhuma ação militar e de inteligência. Curiosamente, a Índia também rejeitou que os EUA realizassem ações navais na zona económica exclusiva da Índia. Protestou vigorosamente. Então, a China e outros países rejeitam essa ideia, os EUA insistem nisso. É aí que está o conflito que, certamente, pode ser resolvido por diplomacia e negociações, mas os Estados Unidos querem resolvê-lo enviando uma armada de navios de guerra para as zonas contestadas da China e da Índia. Enquanto isso, ao mesmo tempo, enviam uma frota de submarinos nucleares avançados para a Austrália, que a Austrália vai pagar, mas que estarão sob o comando americano. Ao fazer isso, deram um pontapé na cara à França. E a Austrália é que teve que lidar com a França. Os EUA nem sequer informaram a França que estavam a minar o acordo e a enviar submarinos nucleares avançados. A França ficou certamente muito chateada e chamou os seus embaixadores na Austrália e nos Estados Unidos. Não se preocuparam com a Inglaterra, porque reconhecem que a Inglaterra é apenas um estado vassalo dos Estados Unidos, não um país independente.

Bem, veja esses submarinos nucleares. A China tem forças submarinas muito limitadas, nada remotamente parecido com esses. Estão muito atrás do Ocidente. Esses submarinos são abertamente anunciados como capazes de afundar a frota chinesa em três dias e aparecer nos portos chineses sem aviso prévio. Isso está a acontecer nas águas da China, não nas nossas. É um gesto grave e tem de perguntar aos EUA porque o estão a fazer. Estão, essencialmente, a dizer à China, que é melhor maximizar o desenvolvimento do seu sistema militar rapidamente para que seja capaz de conter a ameaça que representaremos em quinze anos. Quero dizer, se você encontrar um termo melhor do que insanidade, por favor avise-me!

É uma forma de intimidar o mundo, mostrando que estamos no topo. Fazemos tudo o que queremos. Damos-lhe um pontapé na cara nos apetecer, fazemos ameaças sérias de guerra se quisermos, mas é melhor obedecer-nos porque nós governamos o mundo. É o que significa. Os australianos sabem disso. O ex-primeiro-ministro Paul Keating, um primeiro-ministro conservador, condenou amargamente essa visão como uma submissão da Austrália ao controlo de um país estrangeiro. O principal correspondente militar deles fez uma análise detalhada do caráter grotesco do negócio e como põe a Austrália em perigo. Bem, isso não chega à imprensa ocidental. Aqui falamos sobre como é um acordo maravilhoso.

Esse acordo fez-nos entender melhor que a proliferação nuclear ainda é um problema real e crescente?

Ainda é um problema, não tanto a proliferação nuclear, mas a expansão da ameaça de guerra nuclear. Os estados nucleares estão a expandir as suas capacidades de destruição com os EUA na liderança. É uma ameaça enorme.

O governo Trump, entre os outros desastres, quase desmantelou o regime de controlo de armas que foi estabelecido laboriosamente durante 60 anos. Em agosto de 2019, o governo Trump advogou acabar com o Tratado de armas nucleares de médio alcance (INF), que Reagan e Gorbachev assinaram em 1987, que limita os mísseis nucleares de curto alcance na Europa, aumentando muito a probabilidade de paz. Muito importante. Trump deitou tudo fora. O segundo Bush já eliminou o tratado ABM, o tratado dos mísseis antibalísticos. As duas administrações republicanas, neste século, praticamente destruíram o regime de controlo de armas. Trump deixou o cargo para que Biden pudesse salvar o último tratado remanescente, o Novo Tratado START, que expiraria em 5 de fevereiro. Biden foi capaz de aceitar ofertas russas de longa data para estendê-lo. Então, por isso ainda está de pé. Mas, além disso, os EUA, seguidos por outras potências nucleares, têm expandido o arsenal nuclear, desenvolvendo armas muito mais perigosas e ameaçadoras que vão para o espaço. E aqui são os EUA a realizar ações altamente provocativas, como as que descrevi, que aumentam significativamente a ameaça de guerra.

É por isso que o relógio do juízo final foi estabelecido pelo Bulletin of Atomic Scientists. A cada ano, os cientistas acertam os ponteiros de um relógio a uma certa distância da meia-noite, que significa o final. Sete, seis minutos para a meia-noite, foi oscilando ao longo dos anos. A cada ano em que Trump estava no cargo, o ponteiro dos minutos aproximava-se da meia-noite. No ano passado, o último ano da administração Trump, eles abandonaram os minutos, passaram para os segundos. Agora, 100 segundos para meia-noite. Em janeiro próximo, provavelmente vamos aproximar-nos dos problemas, com a incapacidade de lidar com a terrível ameaça de destruição ambiental e a crescente ameaça de guerra nuclear, que é extremamente séria.

Mas existem outras coisas, outras ameaças, como o Oriente Médio. Na doutrina dos EUA, há uma alegada ameaça de programas nucleares iranianos. Não creio que mais ninguém no mundo acredite. Mas digamos que seja verdade. Existe uma maneira de lidar com isso? Muito simples: estabeleça uma zona livre de armas nucleares no Médio Oriente. Sem qualquer problema com os Estados árabes, que são fortemente a favor, o Irão também a favor, a Europa não levanta objeções. Sempre que a ideia surge num fórum internacional, os Estados Unidos vetam.

O último foi Obama em 2015. Não dizem o porquê, mas todos sabem: porque eles não querem que as armas nucleares de Israel sejam inspecionadas e estejam sob controlo internacional. O New York Times, há alguns meses, publicou um editorial no qual, pela primeira vez, reconhecia que a maneira de lidar com a suposta ameaça iraniana é criar uma zona livre de armas nucleares. Bom para eles, finalmente reconheceram isso. Mas depois leia o editorial que diz que as armas nucleares de Israel não são negociáveis. Portanto, o único estado com armas nucleares na região deve ter as suas armas nucleares preservadas, mas ninguém mais.

Bem, esse é o país que governa o mundo. Um importante jornal liberal, o jornal mais importante do mundo, defendeu sanções contra o Irão, mas depois foi revelando que os EUA se retiraram do acordo conjunto, em violação das ordens do Conselho de Segurança, Os EUA impuseram sanções muito duras para punir o Irão, pelo fato de eles próprios terem saído do acordo. A Europa opõe-se às sanções. Durante muito tempo tentou encontrar formas de evitá-las, depois desistiu porque quando os EUA impõem sanções, são também contra terceiros, têm que obedecê-las, gostem ou não. Se não o fizerem, serão expulsos do sistema financeiro internacional, que é administrado por Nova Iorque. Isso é poder. Portanto, a Europa não gosta mas têm que servir ao mestre. Ora bem, a UE não tem que fazer isso, pode tornar-se uma força independente nos assuntos mundiais. Mas isso exige dedicação, empenho e coragem que a Europa não tem de certeza revelado.

No caso do Afeganistão, o senhor é dos que pensa que invadir foi uma opção má, e que a retirada foi provavelmente ainda pior. E agora? Acha que este novo governo taliban, pode ser melhor para o povo afegão do que o que houve entre 1996 e 2001?

Bem, a traição de Trump ao povo afegão e ao governo afegão foi severa. O acordo que ele fez com os taliban, de lhes entregar o país, foi uma decisão de maio de 2021, o início da temporada de combates. Foi o pior momento possível, não havia oportunidade para acomodações ou qualquer outro arranjo. Bem, Biden tentou torná-lo um pouco melhor, acrescentou algumas condições que Trump não havia adicionado. Era óbvio que o governo afegão estava afundando, não era apenas um atoleiro de corrupção, mas sim um colapso completo. Era bastante óbvio que o exército afegão entraria em colapso.

Eles não têm nada para lutar, os soldados estão lá, mas não são pagos. Por que deveriam lutar pelo poder estrangeiro? Então, o colapso era óbvio. As únicas pessoas que não entenderam isso foram as agências de serviços secretos. Se vir bem, no terreno, os oficiais de inteligência, os serviços secretos e de informações, sabem exatamente o que está a acontecer e fornecem relatórios precisos. Mas, à medida que esses filtros sobem na cadeia de comando, são modificados de acordo com o que as pessoas no topo desejam ouvir. Quando chega ao poder executivo, eles não têm nenhuma relação com o que está a acontecer. Há um longo historial disso. Portanto, os serviços secretos no terreno são muito eficientes. Mas o sistema leva a uma grande confusão no topo. Mas era bastante óbvio que o exército afegão não resistiria; que o chamado governo afegão, com uma corrupção massiva no seu interior, entraria em colapso imediatamente, e foi o que aconteceu. Os EUA tiveram que se retirar, não puderam ficar mais.

Vinte anos foi uma história de horror para os afegãos. É evidente que tudo poderia ter sido feito de uma forma que possivelmente levaria a acomodações locais, a algum tipo de arranjo, que teria oferecido uma voz ao povo afegão. Eles não têm voz alguma, são as principais vítimas e deveriam estar no comando. Poderia ter sido feito de forma diferente. No entanto, o desastre aconteceu. Isso era bastante óbvio desde o primeiro dia da invasão. Na verdade, pode voltar a acontecer. Por que os EUA invadiram o Afeganistão em outubro de 2001? Havia alguma justificação para isso? Absolutamente nenhuma.

Na verdade Bin Laden estava no Paquistão...

Logo passadas algumas semanas, os taliban ofereceram a rendição, o que significaria que a Al-Qaeda e Bin Laden estavam nas mãos dos EUA. O Secretário de Defesa Donald Rumsfeld respondeu dizendo, "não negociamos rendições". George Bush, o presidente, fez eco disso: "nenhuma rendição. Não estamos interessados". Em que estavam eles então interessados? Não vai ler isso na imprensa.

Deu-nos o contexto da invasão e do que basicamente aconteceu nos últimos 20 anos e recentemente com a retirada, mas e quanto às suas perspetivas agora para o que podemos esperar dos taliban 2.0?

Sim. Bem, há uma divisão entre os poderes que podem lidar com isso. Existem as potências regionais, China, Rússia, os estados da Ásia Central que querem tentar trabalhar com os taliban para tentar melhorar a situação e ver se podem mover o governo taliban numa direção mais moderada. Isso teve a oposição de dois países, os EUA e a Índia. Nas reuniões da Organização do Conselho de Cooperação de Xangai, a Índia esteve sozinha e opôs-se aos esforços dos demais países para caminhar nessa direção. O Tesouro dos EUA detém os recursos financeiros do governo afegão. Os EUA congelam esses recursos e pressionam o FMI e o Banco Mundial para reter os financiamentos. O povo afegão está a sofrer muito: enfrentam fome massiva e destruição do país. E é aí que estamos.

A China liderou os esforços das potências regionais, são os que estão a seguir a política que eu acho que deveríamos seguir. Os taliban estão no comando, é um facto, são o governo em funções. Há muitas coisas que são muito más neles mas também há coisas muito más vindas de outros governos. O povo afegão deve ser a nossa preocupação. E a forma de ajudá-los é exatamente o que a China, a Rússia e os países vizinhos estão a propor. Trabalhar com os taliban, tentar induzi-los a tornarem-se mais inclusivos, menos repressivos. Tentar fazer com que mudem a economia baseada na produção de ópio, para o desenvolvimento dos seus próprios ricos recursos minerais, tentar estabelecer projetos de desenvolvimento, para ver se gradualmente podem ser incorporados no sistema regional, o que provavelmente significará incorporarem-se na Organização de Cooperação de Xangai. Bem, os EUA estão ocupados a tentar intimidar todos e mostrar a sua força. A China está a mover-se discretamente para integrar a Ásia Central, partes da África, até mesmo a orientar-se para a América Latina e integrá-los numa espécie de sistema económico com base na China.

Não são pessoas simpáticas que o estejam a fazer por motivos de caridade. Estão a fazer isso por razões de poder. Mas é uma abordagem diferente e muito marcante na América Latina, que carece disso. A China é agora o principal parceiro comercial de muitos dos países da América Latina. Os EUA não gostam nada. Estão a tentar bloquear, ao estilo "este é o nosso território há 150 anos, ninguém se intromete". Como? Bem, quando a China oferece vacinas, de que a América Latina precisa desesperadamente, os EUA tentam impedir que os países latino-americanos as tomem. A China oferece empréstimos para o desenvolvimento. Os EUA insistem que os países contraiam empréstimos muito mais duros junto do FMI, que impõe todos os tipos de condicionalidades que os empréstimos chineses não impõem e assim, com o FMI, prejudicam as suas próprias populações. Está a acontecer agora no Equador, Colômbia, Honduras, mas essa ideia não vai vender muito bem no longo prazo. Mas são características marcantes do mundo que enfrentamos.

Estamos a menos de um mês da Conferência do Clima COP 26 em Glasgow, e o Secretário-Geral da ONU disse recentemente que o mundo deve acordar, estamos à beira do abismo e a mover-nos na direção errada. O senhor escreveu um livro com Robert Poland, em que afirma que devemos ter um Novo Acordo Verde Global, Global Green New Deal. Como é que deve ser esse acordo?

Temos ideias detalhadas explícitas sobre o que um Global Green New Deal deve ser no livro no qual sou coautor, com o economista Robert Poland, que expõe propostas muito explícitas. Outro economista Jeffrey Sachs, na Columbia, usa um modelo um pouco diferente, mas apresentou essencialmente as mesmas propostas. A Associação Internacional de Energia apresentou propostas muito semelhantes. São propostas viáveis ​​para reduzir o uso de combustíveis fósseis de petróleo todos os anos, até atingirmos as emissões zero por volta de meados do século, essencialmente encerrando a era dos combustíveis fósseis, empregando outros meios para produzir energia melhor, sustentável e mais barata e uma economia melhor; no fundo, uma vida e economia muito melhores para as pessoas.

Tudo dentro de balizas de cerca de 2 a 3% do PIB, facilmente administrável. As ideias estão no papel. Há um amplo consenso de que sabemos como mudar para um Novo Acordo Verde Global. Agora vamos voltar para o mundo real. Veja o Financial Times desta manhã, principal jornal de negócios do mundo. Têm vários artigos sobre o problema que os governos enfrentam com os preços do petróleo muito altos e que temos que aumentar a produção de petróleo para que os preços caiam. De seguida, citam o chefe da indústria de fracking dos EUA, que transformou a América no maior produtor de petróleo. Ele diz: não podemos fazer isso. Não queremos aumentar a produção de petróleo porque estamos mais interessados ​​em aumentar os dividendos para os acionistas. Cabe à OPEP aumentar mais o trabalho de produção de petróleo. Então, recorrem ao governo Biden para apelar à OPEP para aumentar a produção e baixar os preços porque estão muito altos. Os países europeus dizem o mesmo. Em seguida, compare isso com o que disse o secretário-geral da ONU: aqui estamos!

Os líderes do mundo querem levar-nos ao limite o mais rápido possível, para conseguirem os seus próprios objetivos. Se ler os jornais do setor do petróleo, eles andam eufóricos ao discutir todas as novas perspetivas para novos campos de petróleo enquanto descobrem como podem aumentar a produção de combustíveis fósseis, um futuro maravilhoso pela frente, país após país. Se houvesse um observador do espaço sideral a observar-nos, pensaria que somos clinicamente insanos.

Agora, se olhar para o petróleo, as grandes empresas de petróleo, Exxon Mobil, Chevron, e as outras, eles sabem que há um forte apoio popular para avançar em direção à sustentabilidade ambiental. Portanto, precisam mudar a sua propaganda de relações públicas. E é interessante a maneira como eles fazem isso. Durante muito tempo, disseram: "ah, não há crise nenhuma, não se preocupem". Eles agora já não dizem isso. Dizem que "sim, nós concordamos, há uma crise". E nós, ExxonMobil, vamos resolver a crise, basta confiarem em nós. Como? Vamos resolver a crise continuando a produção de combustíveis fósseis e investindo nalguma tecnologia futurística, - que não existe, já agora -, que será capaz de remover os venenos da atmosfera, depois de despejá-los numa lavagem verde. Essa é a política das empresas de petróleo. Olhe para o Partido Republicano nos Estados Unidos. 100% negacionistas; para eles, simplesmente não está a acontecer. Ou os chamados democratas moderados, como Joe Mancini, aquele que impede os esforços de fazer algo pelo meio ambiente no orçamento. A sua posição é clara e explícita. Ele diz: só inovação; sem eliminação. Por outras palavras: continuem a produzir combustíveis fósseis sem limites, mas encontrem uma maneira de superar as críticas. Ele é a pessoa que mais recebe financiamento das empresas de combustíveis fósseis no Congresso, o que é muito significativo porque as empresas financiam e compram abundantemente membros do Congresso. Joe Mancini é o campeão nisso. É interessante que os seus próprios constituintes, os mineiros de carvão na Virgínia Ocidental, estão a mover-se no sentido de um esforço de transição para se aproximar da energia sustentável. Entendem que a mineração de carvão não pode continuar, mas o seu representante no Congresso está comprado pelas petrolíferas, que querem continuar a correr para o precipício. É como a história da COVID, mas muito mais séria.

Há motivos para esperar que os jovens ainda possam fazer uma mudança e salvar o mundo para as gerações futuras?

Bem, eles estão na liderança. Na sexta-feira da semana passada, houve uma greve climática global de jovens, centenas de milhares deles nas ruas da Europa, protestando, exigindo que as nossas gerações, a sua e a minha, façam algo para acabar com a crise que está a destruir as vidas deles, mas isso quase não foi relatado nos EUA. Não sei como foram as reportagens em Portugal. Mas são os jovens que nos imploram. Agora, voltemo-nos para a cimeira de Davos no ano passado em janeiro, a conferência dos ricos e poderosa num resort suíço, onde vão para se divertirem e gratificarem mutuamente todos os anos. Uma das palestras foi de Greta Thunberg, uma adolescente, que lhes deu uma conversa sóbria e cuidadosa sobre os factos da situação atual. O Secretário-Geral da ONU teria concordado com cada palavra. Ela terminou voltando-se para o público e disse: vocês traíram-nos. Essas palavras devem ser gravadas na consciência de todos. Na minha geração e na sua. Traímos a juventude do mundo. Estamos a trai-los agora. Lemos artigos na imprensa de negócios desta manhã sobre como devemos aumentar a produção de petróleo. E não fazemos nada sobre isso. Estamos a dizer "sim, quero que os preços do gás sejam mais baixos". E estamos a trair os nossos filhos e netos.

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