segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Stiglitz: uma tentativa de golpe até no FMI?

Até mea culpa do FMI durante a pandemia pode ser liquidado. Elites financeiras voltam-se contra a diretora da entidade, que ousou questionar discurso de austeridade. Banco Mundial conduz investigação para derrubá-la



Por Joseph Stiglitz, no Project Syndicate, com tradução na Carta Maior

Existem atualmente iniciativas visando substituir, ou pelo menos enfraquecer, Kristalina Georgieva, diretora geral do Fundo Monetário Internacional desde 2019. Trata-se da mesma Georgieva cuja magnífica resposta à pandemia proporcionou rapidamente fundos para que países não naufragassem e para que fosse enfrentada a crise de saúde. Ela defendeu com sucesso a emissão de US$ 650 bilhões em “dinheiro” do FMI (direitos especiais de saque, ou DES) essenciais para que países de média e baixa renda se recuperassem. Além disso, ela posicionou o FMI para assumir uma liderança global na resposta à crise existencial da mudança climática.

Por todas essas iniciativas, Georgieva deveria receber aplausos. Então, qual é o problema? E quem está por trás dos esforços para desacreditá-la e removê-la?

O problema é uma investigação que o Banco Mundial contratou com o escritório de advocacia WilmerHale referente a um relatório anual do banco, Doing Business, que classifica os países de acordo com a facilidade em se abrir e operar firmas comerciais. A investigação alegou – ou, para ser mais preciso, sugeriu – que houve impropriedade envolvendo China, Arábia Saudita e Azerbaijão nos relatórios de 2018 e 2020.

Georgieva tem sido atacada em relação ao relatório de 2018, que coloca a China em 78º lugar, a mesma posição do ano anterior. Mas existe a insinuação de que ela devia ser mais baixa e teria sido mantida como parte de um acordo para garantir um aumento de capital que o Banco buscava. Georgieva era a executiva-chefe do Banco Mundial na época.

Um resultado positivo do imbróglio pode ser o fim do relatório. Há 25 anos, quando eu era economista-chefe do Banco Mundial e o Doing Business era publicado por uma divisão em separado, a Corporação Internacional de Finanças, eu achava que ele era um péssimo produto. Países recebiam bom posicionamento por aplicarem baixos impostos sobre empresas e fracas regulações trabalhistas. Os números eram sempre apertados, com pequenas mudanças nos dados tendo grandes efeitos na posição. Países ficavam invariavelmente irritados quando viam que decisões arbitrárias faziam com que eles desabassem na classificação.

Tendo lido o resultado da investigação do WilmerHale, tendo conversado diretamente com pessoas envolvidas e tendo conhecimento de todo o processo, a investigação para mim parece ser um ataque orquestrado. Em todo o episódio, Georgieva agiu de forma totalmente profissional, fazendo exatamente o que eu teria feito (e em ocasiões fiz como economista-chefe): exigir daqueles que trabalhavam comigo que tivessem certeza de que os números estavam corretos, ou tão precisos quando possível dada a inerente limitação de dados.

Shanta Devarajan, chefe da divisão supervisionando o Doing Business que respondia diretamente a Georgieva em 2018, garante que nunca foi pressionado a mudar dados ou resultados. O pessoal do Banco fez exatamente o que Georgieva orientou que fizessem e checaram mais de uma vez os números, promovendo mudanças minúsculas que resultaram em uma leve revisão para cima.

A investigação da WilmerHale é de várias formas curiosa. Ela deixa a impressão de que houve um quid pro quo: o Banco tentava um aumento de capital e ofereceu uma melhoria na classificação para ajudar a consegui-lo. Só que a China era a maior entusiasta no aumento de capital; foram os Estados Unidos de Donald Trump que criavam empecilho. Se o objetivo era garantir o aumento de capital, a melhor maneira de fazê-lo seria rebaixando a posição da China.

A investigação também não explica porque não incluiu todo o depoimento de uma pessoa – Devarajan – com conhecimento de primeira mão sobre o que disse Georgieva. “Passei horas contando meu lado da história para os advogados do Banco Mundial, que incluíram apenas metade do que falei para eles”, afirmou Devarajan. Na verdade, a investigação foi no geral levada com base em insinuações.

O verdadeiro escândalo é o resultado da investigação da WilmerHale, incluindo como David Malpass, o presidente do Banco Mundial, escapou incólume. A investigação destaca outro episódio – uma tentativa de elevar a classificação da Arábia Saudita no relatório Doing Business de 2020 – mas conclui que a liderança do Banco nada teve a ver com o que ocorreu. Malpass foi à Arábia Saudita alardeando suas reformas com base no Doing Business apenas um ano depois que agentes de segurança sauditas mataram e desmembraram o jornalista Jamal Khashoggi.

Ao que parece, quem paga a orquestra escolhe a música. Felizmente, jornalismo investigativo descobriu comportamentos muito piores, como a descarada tentativa de Malpass de mudar a metodologia do Doing Business a fim de rebaixar a classificação da China.

Se a investigação da WilmerHale é entendida como um trabalho encomendado, qual seria o motivo? Existem aqueles, não é surpresa, que estão insatisfeitos com os rumos que o FMI tomou sob a liderança de Georgieva. Alguns pensam que o Fundo deveria manter seu foco e não se preocupar com mudança climática. Outros estão desgostosos com a reviravolta progressista, com menos ênfase em austeridade, mais em pobreza e desenvolvimento, e maior consciência sobre os limites do mercado.

Muitos players do mercado financeiro reclamam que o FMI não estaria agindo com firmeza como coletor de crédito – uma parte central da minha crítica ao fundo em meu livro Globalization and Its Discontents. Na reestruturação da dívida Argentina que começou em 2020, o FMI mostrou claramente os limites até onde um país pode pagar, ou seja, quando débito é sustentável. Já que muitos credores privados querem que o país pague mais do que é sustentável, aquele simples ato mudou o escopo de barganha.

E existem também antigas rivalidades institucionais entre o FMI e o Banco Mundial, sublinhadas agora pelo debate sobre quem deveria administrar um proposto novo fundo para “reciclar” a recém-emissão de DES de economias avançadas para países pobres.

Poderia ser acrescida uma mistura do viés isolacionista da política estadunidense – incorporado por Malpass, indicado por Trump – combinado com um desejo de criar mais um problema para o presidente Joe Biden, que já enfrenta muitos outros desafios. E então existem os usuais conflitos de personalidade.

Mas intriga política e rivalidades burocráticas são as últimas coisas que o mundo precisa no momento em que a pandemia e suas consequências econômicas deixaram muitos países enfrentando crise da dívida. Hoje, mais do que nunca, o mundo precisa da mão firme de Georgieva no FMI.

Joseph E. Stiglitz, Nobel de Economia e professor da Universidade de Columbia, é ex-economista-chefe do Banco Mundial (1997-2000), presidente do Conselho de Assessores Econômicos do Presidente dos EUA, e co-presidente da Comissão de Preço de Carbono. Membro da Comissão Independente para a Reforma do Imposto Internacional Corporativo, ele foi destacado autor do relatório do Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas de 1995


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