domingo, 19 de setembro de 2021

Foi você que pediu uma teoria da conspiração negacionista?

por Filipe Santos Costa

A imagem de Eduardo Ferro Rodrigues acossado por uma manifestação de negacionistas, que o insultavam enquanto o presidente da Assembleia da República almoçava com a mulher num restaurante em frente ao Parlamento, marcaram um novo momento de visibilidade para os grupos mais radicais na negação dos perigos da covid e na recusa da vacinação.
A fúria com que umas dezenas de pessoas insultavam a segunda figura do Estado - chamando-lhe “assassino” e “bandido” -, e bateram no carro em que Ferro abandonou o local coincidiu com as notícias do excelente progresso da campanha de vacinação em Portugal, que esta semana se destacou como país do mundo com mais população vacinada com as duas doses.




Os estudiosos das teorias da conspiração apontam a frustração e o ressentimento como combustíveis de propagação deste pensamento. Em Portugal, as campanhas negacionistas pouco impacto tiveram na recusa vacinal, incluindo uma enorme adesão dos jovens entre os 12 e os 15 anos - o mote da pequena multidão que se manifestava era “proteger as crianças” da vacina. “Não toca nas crianças”, berrava uma das manifestantes filmadas de megafone em punho, enquanto ao seu lado alguém caluniava Ferro Rodrigues como “pedófilo”, repisando uma das mais ignóbeis teorias da conspiração lançadas em Portugal.

Para além de ter coincidido com a marca de 80% da população portuguesa completamente vacinada, o ataque a Ferro Rodrigues regista outra coincidência: aconteceu a 11 de setembro. Ora, esta data, para sempre associada aos ataques terroristas de 2001, marca o início do enorme boom de teorias da conspiração, alimentadas primeiro pela internet, e mais tarde pelas redes sociais, e que se tornaram um dos elementos incontornáveis da nossa discussão pública, da vida política e da paisagem mediática.

A grande era das teorias da conspiração começou após o 11 de setembro de 2001. Desde então, tem sido um corrupio de teorias da globais, e outras localizadas - mas mesmo essas, mimetizando as grandes construções internacionais. Não sabemos quando, nem como, esta era acabará. Sabemos que a pandemia deu um novo impulso a todo o tipo de especulação conspirativa, desde os que acreditam que o vírus não existe aos que juram que as vacinas estão ligadas ao 5G e a um plano maléfico de controlo mental da população do mundo. O céu é o limite.

Rumores e teorias da conspiração circulam desde o início dos tempos. Mas neste século, as possibilidades tecnológicas permitidas pela internet e pelas redes sociais deram-lhes um impacto nunca antes visto. E conhecemos os seus efeitos. Exemplos óbvios: um presidente dos Estados Unidos foi eleito à boleia de várias teorias da conspiração, todas demonstradamente falsas. Uma turba enfurecida atacou o Capitólio dos EUA alimentada por teorias da conspiração propagadas por esse presidente americano. Agora, por cá, outra turba, mais pequenina - mas bastante ruidosa, igualmente enfurecida, e com potencial para a violência - cercou, insultou e ameaçou a integridade física da segunda figura do Estado Português.

Não, não podemos continuar a olhar para os negacionistas e conspiracionistas como meros chalupas que propagam ideias malucas. António Nunes, presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo, está convicto de que “este movimento está para durar e agravar a forma de expressão pública sem qualquer respeito pela opinião de outros” e avisa que “o Estado, a polícia, as informações têm de se preparar para atividades ilegais mais frequentes e violentas por parte de grupos radicais que em alguns momentos tocam ou a subversão ou ‘o terrorismo de contestação por causas indiferenciadas’."

Segundo a TVI, este caso desencadeou na unidade de contraterrorismo da PJ uma investigação à lupa aos negacionistas e às suas eventuais ligações à extrema-direita; e o Expresso noticiou que as autoridades irão reforçar a segurança dos principais protagonistas políticos e dar mais atenção aos movimentos destes grupos radicais.
Também no Expresso desta semana, Cátia de Carvalho, investigadora em psicologia do terrorismo na Universidade do Porto, mostra-se menos preocupada com a eventual escalada de violência, pois este parece-lhe “ser mais um fenómeno com forte expressão na realidade virtual e não tanto na realidade física”. Para além de que a taxa de vacinação em Portugal é alta e a pandemia vai aos poucos saindo das manchetes. Porém, a mesma investigadora reconhece que “mesmo não havendo violência, estamos perante uma situação de extremismo e que revela, seguramente, vários casos de problemas e de ausência de saúde mental."


Joseph E. Uscinski, académico norte-americano que se especializou no estudo destes fenómenos, chama a atenção para o facto de que “as teorias da conspiração não são ideias marginais, cuidadosamente escondidas nos cantos escuros da sociedade. São política, económica e socialmente relevantes para todos nós. Estão interligadas com nossa vida quotidiana de inúmeras maneiras. Assim como outras ideias, têm consequências, que às vezes podem ser mortais.”

Em fevereiro passado, o think tank Global Network on Extremism & Technology (um projeto do King’s College, de Londres) divulgou um estudo sobre a ligação entre teorias da conspiração, fenómenos de radicalização e media digitais. Pode lê-lo aqui. Nas últimas duas décadas foi publicada muita literatura sobre o assunto, mas este relatório, em apenas 48 páginas, condensa o essencial do que se sabe e do que é preciso saber sobre o assunto.

O documento analisa 6 factos que se podem considerar indisputáveis sobre as teorias da conspiração:

  • atualmente são sobretudo disseminadas através das redes sociais e plataformas de partilha de conteúdos mediáticos;
  • historicamente as teorias da conspiração têm desempenhado um papel importante em casos de radicalização, terrorismo, perseguição e genocídio;
  • a crença em teorias da conspiração está psicologicamente associada a intolerância, extremismo e vontade de infringir a lei;
  • os autores e supostos autores de muitos massacres recentes em várias partes do mundo foram motivados pela crença em teorias da conspiração;
  • estas teorias têm desempenhado um papel fundamental na violência política a que se tem assistido nos EUA, incluindo a insurreição de 6 de janeiro de 2021;
  • as atitudes tomadas pelas redes sociais e pelas plataformas de partilha de vídeos e “informação” são inadequadas para resolver os problemas associados a teorias da conspiração, em parte porque as próprias plataformas estão concebidas de uma forma que alimenta e protege o pensamento conspirativo.

Brevíssima história das teorias da conspiração

Não há História nem poder sem conspiração. O mesmo se pode dizer das teorias da conspiração, sobretudo a partir do período medieval na Europa. “As raízes do pensamento conspiracionista podem ser encontradas na época medieval, em superstições que se tornaram secularizadas após o período da Revolução Francesa. (...) Na Europa pré-moderna, os judeus eram amplamente vistos como ‘uma liga de feiticeiros usados por Satanás para a ruína espiritual e física da cristandade’, e, desde os séculos XVIII e XIX, foram reinventados como ‘um corpo conspiratório decidido a arruinar e depois dominar o resto da humanidade', com a alegação de feitiçaria substituída pela alegação superficialmente mais racional de ‘controle mental tecnológico e económico’ por meio de ‘bancos, mass media, governo, [e] educação”, conforme é resumido aqui.

A “conspiração global” dos judeus foi, em diferentes épocas e geografias, substituída pela conspiração global dos maçons, dos illuminati, dos comunistas, dos grupos de Bilderberg e de Davos. Noutra versão, mais recente, Bill Gates, sozinho, é o próprio Satã. Nas versões mais modernas, o “controlo mental” não é exercido através de feitiços, mas de chips injetados com as vacinas contra a covid, ou por sinais emitidos pelas antenas de 5G (ou ambos, em simultâneo, para garantir que a coisa não falha). E os velhos bebedores de sangue de crianças passaram a ser... pedófilos.

O que são, então, as teorias da conspiração? O primeiro a cunhar a expressão foi o filósofo Karl Popper. No final dos anos 40, ainda à sombra do Holocausto, Popper descreveu aquilo a que chamou de “teoria da conspiração da sociedade” como uma forma totalmente simplista - e, pormenor importante, não científica - de compreender as relações sociais, que surgiu como uma reação, e em oposição, ao Iluminismo, após o terramoto cultural e social que foi a Revolução Francesa.

O assunto interessou muitos académicos, sobretudo focados na II Guerra Mundial e na emergência dos autoritarismos europeus. Mas em 1964 foi publicano na Harper’s Magazine um texto seminal sobre a influência das teorias da conspiração na política. “O estilo paranóico na política americana”, de Richard Hofstadter, está aqui, para leitura livre.

Segundo Hofstadter, o conspirador olha para “a história [como] uma conspiração, posta em movimento por forças demoníacas de poder quase transcendente”. É tal a dimensão e a influência dessas forças, que o teórico da conspiração acredita que apenas uma luta apocalíptica - no fundo, uma cruzada - é capaz de travar um desfecho nefasto. O conspirador sente-se como um dos eleitos, um dos poucos que veem a verdade e o poder da conspiração que precisa de denunciar e combater. Por isso, conclui Hofstadter, para os teóricos da conspiração “o tempo está sempre a esgotar-se”.

O texto da Harper’s foi um marco, e tem as marcas do tempo em que foi escrito. O timing não foi um acaso. Os EUA ainda não tinha superado o choque do assassinato do presidente Kennedy, no ano anterior, que alimentou inúmeras teorias da conspiração - muitas delas contraditórias entre si (a coerência nunca foi um forte deste tipo de pensamento: os nazis tanto acusavam os judeus de serem capitalistas gananciosos como comunistas subversivos… os exemplos de incoerência abundam por essas bandas). E o ambiente de Guerra Fria era uma estufa que alimentava a paranoia, tão bem personificada no senador Joe McCarthy, o grande caçador de comunistas, à semelhança dos inquisidores que caçavam bruxas.

Uma das definições mais interessantes de teoria da conspiração que encontrei foi esta, do livro “Conspiracy Theories and the People Who Believe Them”, publicado pela Universidade de Miami, e coordenado por Uscinski, que reúne cerca de 40 especialistas no assunto. “A teoria da conspiração refere-se a uma explicação de eventos ou circunstâncias passadas, em curso ou futuras, que cita como principal fator causal um pequeno grupo de pessoas poderosas - os conspiradores -, agindo em segredo para seu próprio benefício e contra o bem comum. Os conspiradores podem ser governos estrangeiros ou nacionais, atores não governamentais, cientistas, organizações religiosas, fraternais ou qualquer outro grupo considerado poderoso e pérfido. As teorias da conspiração são, no seu âmago, sobre o poder: quem o tem e o que fazem com ele quando ninguém está a ver.”

A pandemia conspirativa da pandemia

Sendo, na sua essência, uma forma de contrariar e combater o poder instituído - numa luta, precisamente, pelo poder de controlar as narrativas políticas e sociais - as teorias da conspiração minam o establishment, apresentando factos alternativos, mas também realidades alternativas e formas alternativas de chegar ao “conhecimento”. “Está na internet” costuma ser a explicação que garante fiabilidade a “factos” e narrativas que contrariam o discurso oficial do poder político, o cânone da academia ou as demonstrações da ciência.

“Investigue você mesmo” é o novo mantra. Tudo vale, menos os especialistas. “As pessoas deste país estão fartas de experts”, proclamou Michael Gove, então ministro do governo conservador britânico, e um dos porta-estandartes da campanha pelo Brexit, como forma de desqualificar os especialistas remainers, que insistiam em desmontar com factos as “realidades alternativas” prometidas pelos partidários da saída do Reino Unido da UE.

O que valeu para o Brexit (com a vitória dos factos alternativos contra os factos dos especialistas) vale para tudo, como se viu na campanha de Trump e se tem visto há mais de um ano com a pandemia de covid-19. No último ano e meio a ciência tem sido um dos alvos dos teóricos da conspiração, aqui em versão negacionista: negam a existência do vírus, ou a sua perigosidade, negam a existência da pandemia, ou a sua dimensão, negam a necessidade das vacinas, ou a sua eficácia, ou o seu propósito. Ou, mais uma vez, tudo junto.

A variedade, a amplitude imaginativa e o impacto das teorias da conspiração sobre a covid é um caso de estudo. Os especialistas asseguram que momentos ou acontecimentos traumáticos costumam ser um catalisador de teorias da conspiração - foi assim na Alemanha pós-I Guerra Mundial e pós-crise financeira; foi assim na América após o assassinato de Kennedy e na ressaca dos 11 de setembro (lá iremos); foi assim em Portugal por muitos anos após a morte de Francisco Sá Carneiro e Amaro da Costa em Camarate, para dar apenas três exemplos óbvios. Assim tem sido também com a pandemia que parou o mundo.

O think tank Aliança para a Ciência, ligado à Universidade de Cornell (e financiada, entre outros… por Bill Gates... portanto… continue a leitura por sua conta e risco), fez aqui um levantamento do Top 10 das teorias da conspiração sobre o SARS-Cov2. Ei-las:

1. A culpa é do 5G: o vírus teria sido disseminado à boleia das antenas de 5G. A “prova”? A pandemia alastrou pelo mundo ao mesmo tempo que os vários países iam adotando a tecnologia 5G… coincidência?... A teoria é confusa e vaga, como convém, mas parte da ideia de que as comunicações de radiofrequência 5G têm um impacto prejudicial sobre saúde. A partir daqui há três versões: a) a covid-19 não existe e as pessoas estão a adoecer por causa dos efeitos do 5G; b) a covid existe, mas é a radiação que está a deprimir o sistema imunitário das pessoas, tornando-as mais propensas a sofrer com o vírus; c) a covid existe e é transmitida pelo espetro eletromagnético do 5G (embora num caso estejamos a falar de ondas, e noutro, de proteínas e ácidos nucleicos… - e não, os vírus não podem ser transmitidos pelas redes móveis).

2. A culpa é do Bill Gates: depois de criticar a administração Trump pela gestão da pandemia e por cortar o financiamento à OMS, Gates foi visado por setores negacionistas e de extrema-direita como o mastermind da pandemia, numa série de teorias da conspiração. O New York Times conta aqui boa parte dessa história. A “prova” era um vídeo de 2015 em que o milionário e filantropo alertava que podia vir aí uma nova pandemia, depois de alguns surtos de ébola que causaram alarme. E qual o objetivo de Gates? Forçar uma gigantesca campanha de “vacinação” através da qual a humanidade seria injetada com um microchip capaz de rastrear e controlar as pessoas…

3. O vírus escapou de um laboratório chinês: existe um instituto de virologia na cidade de Wuhan, onde há muito tempo é feita investigação sobre coronavírus, nomeadamente associados a morcegos. A teoria da falha de segurança tornou-se popular na direita americana, e Donald Trump sempre lhe deu gás. A OMS tem investigado essa hipótese e Joe Biden tentou tirá-la a limpo. Até agora, não existe qualquer prova que a valide, e a sequenciação genética do novo coronavírus não coincide com nenhuma das amostras existentes nesse laboratório. Mas esta é, de todas as teorias de conspiração sobre a pandemia, a mais plausível - o que lhe dá uma enorme vantagem sobre todas as restantes. Segundo um estudo do Pew Research, um terço dos americanos acredita que o vírus foi criado em laboratório - de forma intencional ou não.

4. A covid-19 é uma arma biológica: na indecisão sobre se o vírus existe ou não existe, uma parte dos conspiracionistas acredita que o SARS-Cov2 existe e foi intencionalmente criado como arma biológica pela China. Tom Cotton, senador do Partido Republicano, amplificou esta tese. Mais uma vez: a sequenciação genética aponta para um vírus de origem natural, oriundo dos morcegos, sem manipulação humana.

5. Foram os EUA que criaram o vírus e o levaram para a China: é a resposta chinesa à teoria anterior. O vírus teria sido introduzido na China por pessoal militar norte-americano que participou na edição de 2019 dos Jogos Militares Mundiais (sim, isso existe), que se realizaram… em Wuhan.

6. A culpa é dos OGM: há anos que o cultivo de organismos geneticamente modificados (OGM) está envolto em inúmeras teorias da conspiração. Naturalmente, essas acabaram por se cruzar com a pandemia. Os contornos são pouco claros, e oscilam entre a ideia de “contaminação genética” por parte dos OGM e a de experiências genéticas que correram mal. Em todo o caso, fica por explicar de que forma vírus de origem animal que migram para os humanos podem ter origem na agricultura.

7. A covid não existe: a conspiração das conspirações foi lançada por Alex Jones, um dos maiores propagadores de fake news nos Estados Unidos. O SARS-Cov2 não existe (quanto muito, será uma constipação) e não passa de uma ficção lançada por gente poderosa que nos quer tirar as liberdades.

8. A pandemia é manipulada pelo Deep State: a crença de que existe um Estado oculto que controla o Estado tornou-se muito popular nos EUA sobretudo após o 11 de setembro. Há uma elite puxa os cordelinhos do país e que se terá tornado ainda mais ativa com Donald Trump, para sabotar o seu trabalho. Anthony Fauci, o homem que mais fez frente à desinformação lançada por Trump, seria, claro, membro desse “Estado profundo”. Trump chegou a referir essa teoria numa das suas conferências de imprensa, causando uma reação de Fauci que ficou para a posteridade.



9. É uma conspiração das farmacêuticas: seja real (numas versões), ou ficcional (noutras), a covid é uma forma da Big Farma ganhar milhões com vacinas “feitas à pressa” (sim, foi em tempo recorde, mas com base numa tecnologia que estava a ser desenvolvida há 20 anos).

10. Os dados estão manipulados: segundo esta teoria, um conjunto de organizações do Estado - por todo o mundo - e mais umas quantas organizações internacionais e universidades e ONG estariam mancomunadas para empolar os dados de casos, internamentos e mortes - tudo para justificar um clima de medo e a restrição de liberdades. Há sempre alguém que conhece o primo do cunhado de alguém que sabe que… Esta teoria choca de frente com outra, segundo a qual os verdadeiros números de casos e de mortos seriam muito mais altos e os governos estariam a esconder a dimensão da tragédia para não se ver sua incompetência. Também neste caso o vizinho da sogra conhece alguém num hospital que jura que… Em Itália, circulou um vídeo em que duas mulheres “demonstravam” que o serviço de urgência de um hospital de Milão que alegadamente estaria a rebentar pelas costuras com pacientes covid estava, afinal, tranquilo, e sem ambulâncias à porta. Os políticos, os médicos e os jornalistas estariam a mentir sobre o caos nos hospitais. “São terroristas”, diziam elas. O vídeo, claro, era falso - não foi filmado no serviço de urgência do hospital, mas noutra ala.

Com mais ou menos alterações, estas são no essencial as grandes teorias da conspiração que alastraram pelo mundo fora sobre a pandemia. No verão passado, em França, estas eram as teorias de conspiração mais populares sobre a covid-19 entre aqueles que disseminavam mensagens anti-máscara:

Ligação ao 5G (81%)
Microchip de Bill Gates (8%)
A pandemia não existe (4%)
O vírus foi criado em laboratório (2%)
A segunda vaga não existiu (2%)
O alho cura a covid (2%)
A vitamina C cura a covid (2%)

Uma velha luta contra a ciência
Não é nova a luta dos negacionistas contra a evidência científica. Pelo contrário, a contestação ao saber científico é um dos traços mais persistentes na sua luta contra as narrativas do poder.

A contestação à ciência começa, desde logo, com aqueles que contestam a teoria da evolução - tendem a ser os setores mais ultra-religiosos, que lêem a Bíblia e a descrição do Génesis literalmente. A crença na Terra plana vai pelo mesmo caminho.

Mas não faltam outros exemplos de contestação à ciência. O surgimento do HIV deu rédea solta a teorias da conspiração. Em muitas sociedades africanas, o medo da ciência e dos medicamentos era superior ao medo da SIDA. Um antigo ministro da saúde sul-africano, Manto Tshabalala-Msimang, dizia que e epidemia de SIDA no país tinha sido causada por “uma conspiração global com o objetivo de reduzir a população do continente”. O seu governo recomendava massagens e vitaminas para curar a doença, pois alegava que os medicamentos disponibilizados contra o HIV faziam parte da conspiração do Ocidente. Calcula-se que 300 mil pessoas terão morrido em consequência destas teorias.

A contestação às alterações climáticas é outro caso clássico da mentalidade conspirativa vs ciência. Há umas décadas, as teorias da conspiração alegavam que as alterações climáticas eram um “embuste” de alguns cientistas que tinham evidências escassas. Trinta anos depois, as evidências apenas se fortaleceram e cerca de 97% dos cientistas que estudam o clima concordam que este está a mudar devido à atividade humana. Os teóricos da conspiração das alterações climáticas, que no início alegavam que não havia acordo científico sobre o assunto, agora - perante o enorme consenso científico -, garantem que esse consenso está empolado. E, perante os estudos que demonstram a mão humana nas alterações climáticas, a resposta é que os estudos são manipulados. Mais uma vez, encontramos Donald Trump como um dos propagadores do pensamento conspirativo, rotulando as alterações climáticas como “embuste”.

E há, claro, a velha luta dos negacionistas e teóricos da conspiração contra as vacinas. A contestação às vacinas tem uma história tão longa como as vacinas. Vem do século XVIII, portanto. Mais de dois séculos a acumular medos e a apontar gente poderosa com intuitos sinistros. Até na gripe espanhola - para a qual a ciência não conseguiu criar uma vacina - houve debates inflamados contra a vacina, com visões conspirativas. Este artigo publicado em março pela Fast Company conta essa história, de um ponto de vista americano, sendo certo que os EUA foram sempre um dos epicentros da hesitação vacinal e das teorias da conspiração sobre o assunto.


O momento-chave da contestação moderna contra as vacinas foi a publicação de um artigo, em 1998, na prestigiada publicação científica Lancet, segundo o qual a vacina contra sarampo, papeira e rubéola estaria ligada ao aumento de crianças diagnosticadas com autismo. o gastroenterologista Andrew Wakefield foi o principal responsável pelo estudo, que lançou uma enorme polémica, e seria desmentido, pelos anos seguintes, em inúmeros estudos de outros investigadores, divulgados em publicações igualmente de referência, como The New England Journal of Medicine e a própria Lancet. Por fim, dez dos investigadores da equipa de Wakefield acabaram por se retratar, e a Lancet admitiu que não devia ter divulgado o estudo original. Em 2010, o UK General Medical Council concluiu que Wakefield agiu de forma “desonesta e irresponsável” e a Lancet reconheceu que alguns dos dados essenciais da pesquisa original haviam sido manipulados, para confirmar a conclusão.

Mas nada disto travou a propagação da crença de que a vacina contra o sarampo aumentava os riscos de autismo. Estrelas como a modelo Jenny McCarthy, o ator Jim Carrey ou a cantora Toni Braxton deram grande visibilidade a essa teoria na televisão americana, naquele que foi o maior impulso de sempre às teses dos anti-vaxers. Os inúmeros desmentidos da comunidade científica, e a retratação final da Lancet, foram apenas olhados como mais uma prova de uma “conspiração” de poderosos para impedir que se saiba “a verdade”.

Consequência: surtos de doenças antes consideradas erradicadas ressurgiram recentemente. Nos Estados Unidos, no Reino Unido e em outros locais, o sarampo voltou - e as mortes também. A vacina contra o HPV, ou papiloma vírus humano tem sido igualmente visada por teorias de conspiração infundadas. Até a vacina contra o vírus zika, que ainda não existe, faz parte de uma conspiração negra, para encher os bolsos da big pharma, ou fazer experiências em humanos, ou envenenar o público...

O século das teorias da conspiração
As teorias da conspiração não são uma novidade do século XXI, mas são “um marco do início do século XXI”, escreve Joseph E. Uscinski. “As teorias da conspiração dominaram o discurso das elites em muitas partes do mundo e tornaram-se o grito de guerra dos principais movimentos políticos. (…) Os desenvolvimentos mais alarmantes na política mundial estão intimamente ligados às teorias da conspiração. Demonstrações recentes de populismo, nacionalismo, xenofobia e racismo são todas acompanhadas por narrativas de conspiração. Muitos líderes mundiais justificaram o autoritarismo e a consolidação do poder com bodes expiatórios e acusações de conspiração. A internet, que foi apontada como um instrumento de democracia, tem sido usada para manipular as massas - por lucro ou poder - com notícias falsas que consistem principalmente em teorias da conspiração construídas sem qualquer ligação com a realidade.”

Quando falamos do século XXI, estamos mesmo a falar do início do século XXI. Houve um prelúdio destes novos tempos com a traumática disputa eleitoral entre George W. Bush e Al Gore, com o democrata a perder a Casa Branca por causa de poucos milhares de votos. A derrota dos democratas, ditada pelo Supremo Tribunal no meio de uma enorme controvérsia, convenceu-os de que a eleição fora fraudulenta. Segundo as sondagens de opinião, metade dos democratas pensava que o processo havia sido viciado contra Al Gore. George W. Bush entrou com o pé esquerdo, cercado por teorias da conspiração lançadas pela esquerda americana. O que se agravaria logo no ano seguinte com o acontecimento que marca o grande boom moderno das teorias da conspiração: o 11 de setembro.

“O resultado foi uma lesão psíquica duradoura, tão prejudicial quanto os próprios ataques. O fumo mal havia se dissipado quando uma nova nuvem se formou, trazendo com ela uma desconfiança em relação às respostas oficiais e uma vontade de acreditar em conspirações muito mais bizarras do que a que a Al Qaeda havia levado a cabo. Tal como aconteceu com o assassinato de John F. Kennedy, ao 11 de setembro seguiu-se uma onda de incredulidade, pois milhões simplesmente recusaram-se a acreditar na história oficial e, em vez disso, procuraram conforto na história alternativa”, lia-se há poucos dias no Wall Street Journal, num texto sobre os 20 anos desse acontecimento.

A tese principal desse artigo, em linha com o pensamento de muitos estudiosos, é que o 11 de setembro abriu “uma nova era de teorias da conspiração”, com a internet a “deitar gasolina na fogueira”.

Parece haver uma regra, segundo a qual as teorias da conspiração surgem à proporção da cobertura mediática que um evento recebe. A ser assim, não admira o impacto do 11 de setembro nos recantos obscuros do conspiracionismo. A BBC elencou aqui as principais teorias que, duas décadas depois, continuam a circular sobre esse dia trágico - não falta o “Governo mundial”, a “conspiração judaica”, e a “cumplicidade dos media”.

É hoje claro que a Administração Bush deu um forte empurrão à desconfiança e às teorias de conspiração quando - após uma primeira resposta militar contra a Al Qaeda e o Afeganistão - aproveitou o embalo para atacar o Iraque com base em alegações totalmente falsas sobre a existência de armas de destruição massiva. Esse é o argumento de David Corn neste texto do Mother Jones.

As teorias da conspiração não esperaram por esse desvio para o Iraque; começaram logo após os atentados. Mas uma das peças centrais das construções fantasistas em torno do ataque às Torres Gémeas, ao Pentágono e ao avião que caiu na Pensilvânia foi este filme, "Loose Change", lançado em 2005. É um dos primeiros casos de vídeos virais com teorias da conspiração na era da internet (e ainda sem redes sociais]. Passados tantos anos, o New York Times escreveu que este filme amador foi a peça que “deu força ao movimento truether [que exigia ‘saber a verdade’ sobre os atentados] e deu o template para a atual era de desinformação”.



“O seu DNA está por toda a internet - de vídeos do TikTok sobre tráfico sexual infantil a tópicos no Facebook sobre curas milagrosas da Covid-19 - e muitas das suas falsas alegações ainda conseguem uma quantidade surpreendente de tempo de antena”, escreve o jornalista do NYT que reviu agora esse filme. O trabalho teve a colaboração de Alex Jones, o guru da desinformação de extrema-direita no site Infowars.

“A mensagem do filme de que as pessoas poderiam descobrir a verdade sobre os ataques por si mesmas também se tornou uma tática central para grupos como o QAnon e a multidão anti vacinas, que exortam os seus seguidores a ignorar os especialistas e ‘fazer sua própria pesquisa’ online.” Para além do artigo que cito acima, recomendo a escuta deste episódio do podcast do NYT The Daily, sobre como este documentário amador acabou, de certa forma, por dominar o mundo - está ali o guia para a desinformação e as teorias da conspiração que se tornaram o nosso dia a dia.

Se “Loose Change” começou por ser partilhado por email, o surgimento das redes sociais e plataformas de partilha de conteúdos abriu a autoestrada que faltava para o acesso livre a todo o tipo de teoria de conspiração. As redes sociais e plataformas de partilha como YouTube, Facebook, Twitter e Instagram tornaram-se propagadores de crenças conspiratórias e todo o tipo de desinformação. E existem outras plataformas online quase só dedicadas à circulação dessas teorias, dos grupos de Whattsapp às seções de comentários dos grandes jornais mainstream. E muitos dos principais influenciadores online acabam por dar palco a essas teorias.

Este ensaio é um bom resumo sobre como as teorias da conspiração se espalham online. Tem a ver com os algoritmos, mas não só, argumentam os autores. Este processo está bem identificado por abundante literatura, mas tem sido difícil quebrá-lo.

Para início de conversa, há um modelo de negócio destas redes e plataformas que alimenta um loop infinito de exposição a determinado tipo de conteúdos. “Os principais sites de redes sociais e partilha de media foram projetados para alcançar um resultado que é quase o inverso exato [do que deveria acontecer]: o Facebook traz pessoas com interesses semelhantes; YouTube recomenda vídeos que são considerados semelhantes aos que o visualizador já respondeu positivamente; e o Twitter e o Instagram recomendam seguir utilizadores com narrativas semelhantes às que já estão a ser seguidas. Essa funcionalidade carrega um risco inerente, devido ao seu potencial óbvio para levar indivíduos suscetíveis a visões cada vez mais extremas”, conforme se lê aqui.

Ora, segundo os estudiosos da ligação entre teorias da conspiração, radicalização e redes sociais, o que deve acontecer é exatamente o contrário: deixar de alimentar a mentalidade conspirativa com mais teorias da conspiração. Viver numa bolha em que toda a interação acontece apenas com gente que pensa da mesma forma só aumenta as convicções conspirativas e extremistas.

“Para evitar que crenças conspiratórias se instalem, será necessário envolver os indivíduos com argumentos racionais antes de serem expostos às teorias da conspiração, e numa fase em que suas conexões sociais ainda não chegaram a ser dominadas por crentes em conspiração. Isso não é compatível com a facilitação da disseminação de teorias da conspiração e a formação de grupos dedicados ao pensamento conspirativo. Abordar verdadeiramente o problema pode, portanto, exigir uma abordagem fundamental de redesenho das plataformas”, defende o Global Network on Extremism and Technology.

Mesmo que não existissem redes sociais, as teorias da conspiração continuariam a fazer o seu caminho, argumentam os autores deste texto do site The Conversation. Que detetam uma deliciosa ironia: “as acusações dirigidas às redes sociais tendem a assumir a mesma forma narrativa de muitas teorias da conspiração. Pode ser o relato de um pequeno episódio, talvez o testemunho de uma fonte credível, como um médico alegando que as empresas de media sociais ‘têm mesmo sangue nas mãos’. Ou pode ser o retrato do público como a vítima inocente nas mãos de exploradores maliciosos da Internet - tudo projetado para atrair pessoas já dispostas a desconfiar de corporações e empresas de tecnologia. O problema com essas acusações é que as evidências mostram um quadro mais matizado.”

Nos media tradicionais, as teorias da conspiração, que eram tratadas como algo esotérico e de nicho, passaram a ocupar cada vez mais espaço. Em novembro de 2017, o New York Times publicou um artigo com a expressão “teorias da conspiração” quase todos os dias. Em comparação, o Times publicou zero desses artigos no mesmo mês, quarenta anos antes. Nada de espantar se tivermos em conta que em 2016 os EUA elegeram como presidente o propagador in chief de teorias da conspiração.

O fator Trump
Donald Trump era um promotor imobiliário de Nova Iorque, rico, bon vivant, frequentador das revistas de social e dono da marca Miss USA, até começar a dar nas vistas como media personality, enquanto apresentador do reality show The Apprentice, em 2004. A sua invenção como influenciador político acontece em 2008, com a eleição de Barak Obama.

Num recanto da internet nasce a teoria de que Obama é um presidente ilegítimo, porque não seria cidadão americano - teria nascido no Quénia, e não no estado americano do Havai. Apesar de Obama ter disponibilizado o seu certificado de nascimento, os birthers (como ficaram conhecidos os que exigiam “a verdade” sobre o local de nascimento do presidente) alegavam que se tratava de uma falsificação. Trump descatou-se como um dos grandes divulgadores dessa conspiração - e tornou-se um dos porta-estandartes de uma certa direita radical.

Daí em diante, foi uma cavalgada de conspirações, antes, durante e após as eleições que o levaram à Casa Branca. Ao longo de todo o processo, desde as primárias estaduais até ao dia das eleições gerais, Trump afirmou que o processo estava viciado e seria fraudulento. Mesmo meses após sua improvável vitória, Trump continuou a afirmar que, apesar de ter vencido, o resultado fora manipulado - sem qualquer prova, insistiu que três milhões de votos em Hillary Clinton eram de eleitores ilegais. Todas as investigações demonstraram o contrário, mas nunca os factos travaram uma boa teoria da conspiração.

Entre as teorias da conspiração mais notórias de Donald Trump conta-se sua acusação de que o pai do senador Ted Cruz (seu adversário nas primárias) participou do assassinato de Kennedy. Em circunstâncias normais, uma acusação tão descabelada seria suficiente para desqualificar um candidato, mas não com Trump. O seu apoio às teorias da conspiração nunca o prejudicou. Garantiu que os refugiados sírios eram agentes do ISIS, que o México enviava “bad hombres”, assassinos e violadores, para atacar americanos inocentes e até que Obama (o “queniano”) era muçulmano e simpatizava com terroristas. Esta sopa da pedra tinha sempre o mesmo sabor: as elites políticas não são de confiança, e venderam os interesses dos americanos a obscuras entidades - e era preciso “drenar o pântano” de Washington.

Trump e os seus apoiantes alimentaram todas as teorias sobre a sua principal adversária, Hillary Clinton, incluindo a mais absurda de todas, que ficou conhecida por “Pizzagate”.


A coisa é tão louca, que o New York Times fez esta infografia, como ilustração deste artigo, a tentar ligar as várias peças. Note nas palavras Hillary, Obama, democrata, Wikileaks, canibalismo, pedofilia, satanismo… Resumindo: Hillary, Obama e boa parte do establishment do Partido Democrata estariam ligados a uma rede de pedofilia, pornografia infantil, canibalismo, tráfico humano e satanismo, incluindo túneis secretos em Washington. O centro dessa trama alucinada seria a popular pizzaria Comet Ping Pong, na capital americana. É como se séculos de teorias da conspiração tivessem sido metidos numa Bimby e saísse uma pasta de aspeto repugnante.

Houve muito quem acreditasse. Em dezembro de 2016, Edgar Maddison Welch disparou uma arma para dentro da pizzaria de Washington, para castigar os envolvidos no “Pizzagate”. Os relatos deste caso dão conta de que Welsh, que se assumiu culpado de acusações de porte de arma e tentativa de homicídio, ficou surpreendido ao perceber que não existem evidências que sustentassem sua teoria.

O “Pizzagate” ainda hoje alimenta o imaginário de legiões de alucinados da extrema-direita americana. Tanto que está na base do que viria a ser uma peça essencial da propagação de desinformação nos anos da presidência Trump: o movimento QAnon, lançado de forma anónima nas redes sociais, que denunciava uma conspiração global (claro, com o deep state, pedófilos, canibais e bebedores de sangue) contra a qual Donald Trump era a única esperança da humanidade. O tal cavaleiro branco liderando a cruzada contra o mal.

É possível argumentar, como faz Uscinski, que a verdadeira base que apoiou Trump foi uma coligação de conspirações. “Trump construiu uma coligação apelando mais para a teoria da conspiração do que para o partidarismo; portanto, os seus partidários estão naturalmente usando teorias da conspiração para lutar contra o que vêem como uma conspiração contra eles. Cada nova teoria da conspiração gera outras espontaneamente. O número crescente de teorias de conspiração opostas acumulou-se e obscureceu a verdade. (...) Como se estivessem num loop de feedback, os acusados ​​de conspiração voltam-se para as teorias da conspiração como mecanismo de defesa. Isso torna difícil julgar a veracidade de qualquer afirmação.”

Democracias sob pressão
Este texto já vai (muito) longo, mas deixo uma última nota para a evidente pressão que este ambiente coloca sobre a democracia e as instituições democráticas. Vimo-lo no cerco a Ferro Rodrigues, a segunda figura do Estado. Vimo-lo na invasão do Capitólio, acicatada por um discurso em que Trump insistiu na conspiração de uma fraude eleitoral que lhe teria roubado a vitória - tese que inundou as redes sociais com “provas” e o submundo da internet com apelos à sublevação.


Há uns meses, o L’Obs publicou um grande dossiê sobre teorias da conspiração. Reuniu um painel de cidadãos comuns, com os quais testou várias teorias que circulam por aí - nomeadamente, sobre covid, máscaras e vacinas. A maioria do painel acreditava em teorias da conspiração, mas todos rejeitavam fazer parte desse grupo e recusavam o rótulo de negacionistas. Nas últimas eleições autárquicas em França, surgiram inúmeros candidatos com a oposição ao 5G como grande bandeira - vários tiveram resultados bem acima do que seria expectável. Uma das teorias da conspiração que ganhou alguma popularidade em França tem a ver com o massacre do Charlie Hebdo: há quem acredite que é o governo que está por detrás da matança...

É um fenómeno global. Na Alemanha há uma teoria oposta: em vez de estar por detrás de ataques terroristas, o Governo alegadamente esconde ataques perpetrados por refugiados muçulmanos sobre alemães inocentes, de forma a proteger a política de concessão de asilo assumida por Angela Merkel.

A imigração e a integração de refugiados muçulmanos tem sido pasto para teorias conspirativas no centro e no norte da Europa. Viktor Orban defende a pureza do povo húngaro contra uma invasão muçulmana que nunca aconteceu nem nunca esteve perto de acontecer. O mesmo na Polónia. Os novos líderes autoritários não dispensam uma boa conspiração com inimigos internos e externos, seja Putin na Rússia, Erdogan na Turquia, Maduro na Venezuela, ou Duterte nas Filipinas.

O Brexit foi insuflado por teorias conspirativas de que a UE daria livre passagem a milhões de refugiados árabes para que chegassem às Ilhas Britânicas. Também houve a teoria de que essa votação seria viciada, de que a UE estaria a esconder planos para uma maior integração, ou que estaria secretamente em preparação um exército europeu. Os defensores da saída afirmavam que as contas dos peritos sobre o impacto económico eram manipuladas.

Timothy Snyder, historiador e autor do ótimo livro “The road to unfreedom”, tem escrito muito sobre o poder da desinformação e das teorias da conspiração, e a forma como esses fenómenos estão a pressionar a democracia e a permitir novas formas de autoritarismo. Após a invasão do Capitólio assinou este magnífico ensaio sobre as “grandes mentiras” que enformam a realidade alternativa em que muitos vivem. Destaco este parágrafo:

“Pós-verdade é pré-fascismo, e Trump tem sido o nosso presidente pós-verdade. Quando desistimos da verdade, concedemos poder para criar um espetáculo no seu lugar àqueles que têm o dinheiro e o carisma. Sem um acordo sobre alguns fatos básicos, os cidadãos não podem formar a sociedade civil que lhes permitiria defenderem-se. Se perdermos as instituições que produzem os factos que são pertinentes para nós, tendemos a chafurdar em abstrações e ficções atraentes. A verdade defende-se particularmente mal quando não há muita por aí, e a era de Trump - como a era de Vladimir Putin na Rússia - é uma época do declínio dos noticiários. Os media sociais não são substitutos: sobrecarregam os hábitos mentais pelos quais procuramos estímulo e conforto emocional, o que significa perder a distinção entre o que parece verdadeiro e o que realmente é verdadeiro.”

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