quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Decrescimento sustentável: o grande desafio ecológico do futuro


Nicholas Fitzpatrick chegou a Portugal para viver e estudar no dia 27 de agosto de 2020. Demorou sessenta horas de autocarro. Nick, como gosta de ser chamado, partiu de Estocolmo, na Suécia, onde trabalhava e concluiu o mestrado em Geologia, com especialização em gelo e clima. Passou pela Dinamarca, pela Alemanha, por França e por Espanha até chegar ao terminal de autocarros da gare do Oriente, em Lisboa. Estavam 26 graus.

Viajar devagar e com a menor pegada ecológica possível é o princípio de honra deste estudante de doutoramento do Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade (CENSE), na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT NOVA). Nick anda à procura de formas colaborativas de colocar em prática o decrescimento sustentável. A ideia principal dessa perspetiva transdisciplinar – que hoje se assume, também, como um movimento social – é desacelerar o impacto humano no ecossistema com práticas mais sustentáveis, mais justas socialmente e, por isso, ecológicas de forma abrangente.

“Decrescimento não é recessão”, diz Nick. “Tem a ver com equidade social e sustentabilidade ecológica”. Ele hesita numa definição do conceito, pela “natureza complexa e abrangente do termo”, relacionado com várias disciplinas, como Ecologia Política e Justiça Ambiental

Já em 2016 Nick demorara nove dias a chegar a Hong Kong a partir de Estocolmo. Foi de barco até São Petersburgo (Rússia), onde apanhou o comboio até Moscovo. Mudou de viatura para atravessar a Mongólia até Pequim (China), onde trocou de comboio rumo ao destino final. Foram 210 horas. Agora, este aspirante a economista ecológico de 25 anos anda a planear a viagem para ir ao casamento da irmã, dois anos mais nova, na Austrália, “ou 2022 ou em 2023”. Vai depender da situação pandémica. “Vou de comboio desde Lisboa até um porto em Itália. Apanho um barco que vai até ao Egito, de onde sigo até à Ilha da Reunião [oceano Índico] e dali até à Austrália.”

Nick é natural de Young, uma cidade com cerca de sete mil habitantes, conhecida pela colheita da cereja, quatrocentos quilómetros a oeste de Sydney. É lá que vive a família. O pai trabalha na indústria agrícola, a mãe é secretária. Não os vê desde 2018. Vai demorar 28 dias nessa odisseia. “De Lisboa até à Austrália de avião gastaria aproximadamente cinco toneladas de emissões de dióxido de carbono, para cada lado. De barco, ida e volta são 500kg, dez vezes menos”, assegura, referindo-se ao impacto poluidor da viagem aérea.

As elites há muito se esquivam desses detalhes, que se dizem mais sustentáveis: podem comer menos carne, mas se voarem muito não são de todo sustentáveis.”

Há pelo menos três anos que Nick, estudante no Programa Doutoral em Ambiente e Sustentabilidade da FCT NOVA, escolheu não viajar de avião. “Da perspetiva do Norte Global, de forma a alcançar os objetivos, precisamos de uma transformação pessoal e coletiva, para pressionar os decisores políticos desde o terreno. Por isso é importante refletir nas nossas próprias ações e essa é a razão pela qual eu faço o que faço.” O mais recente membro do conselho da European Society for Ecological Economics inspirou-se no cientista climático britânico Kevin Anderson, que não voa há quase duas décadas.

Nos próximos três anos, o CENSE, na Costa da Caparica, será a casa de trabalho deste doutorando, repensando formas colaborativas de decrescimento. IDEATE – Imagining DeGrowth Trajectories é o nome do projeto, com uma bolsa de doutoramento INPhINIT da Fundação “la Caixa” [ver texto no final]. E como vai chegar aos resultados? “A partir da ideação de diálogo e a interação direta entre as pessoas, projetos de sustentabilidade, académicos, decisores políticos, de forma a encontrar soluções sustentáveis e centradas nos problemas locais.”

As conversas e as interações desses encontros reservados serão o foco de análise investigativa, de maneira a compreender como se pode chegar a novas formas de colaboração. “Há três resultados em mente: por um lado, sistematizar conhecimento abrangente das várias propostas que existem [sobre decrescimento sustentável], por outro compreender o que os cidadãos e decisores políticos querem e, depois, como as políticas interagem num plano de transição, de forma a alcançar equidade social e sustentabilidade”. O foco é a co-criação, de maneira a “aumentar a participação política da sociedade e construir políticas comuns”.

O investigador trabalhou no Swedish Institute of International Affairs, no Stockholm Environment Institute, no Centre for Environment and Development Studies (CEMUS) na Universidade de Uppsala e já foi conselheiro de projeto da ONG canadiana Youth Climate Lab. E é o mais recente membro da European Society for Ecological Economics

O cientista social vai dar seguimento à tese de doutoramento sobre decrescimento e ações de sustentabilidade defendida em 2019 pela sua orientadora Inês Cosme. Os dois conheceram-se por videochamada, quando Fitzpatrick, ao saber que tinha sido contemplado com a bolsa de doutoramento, selecionou o CENSE da lista de instituições. Juntaram interesses comuns, ativaram sinergias e começou uma grande mudança. Nick transitou das Ciências Naturais, “duras”, com metodologias quantitativas, “para uma perspetiva interdisciplinar entre Ciências do Ambiente e Ciências Sociais, na linha das Ciências da Sustentabilidade”, abraçando metodologias mistas, com ênfase nas qualitativas.

“O decrescimento é uma área nesse campo que tem vindo a ganhar importância nos últimos anos, uma vez que o crescimento económico não está a fazer o que promete”, diz Inês Cosme, que se junta à conversa por videochamada. “Não está a enfrentar o crescimento da desigualdade, por exemplo, e está a colocar-nos numa enorme crise climática, além da extinção de espécies, e uma acentuada perda de biodiversidade”, acrescenta a orientadora do investigador australiano. “É um problema para humanos e não humanos e natureza”.

Fitzpatrick fala rápido, contundente, e arregala os olhos quando fala de carros. Sempre teve uma grande paixão por eles, mas não está nos planos comprar nenhum. Na cidade, anda a pé, de bicicleta, ou de transportes públicos. Quando era pequeno, queria ser “filantropo”. A professora de Matemática disse-lhe que era “maluco”, porque “precisava de muito dinheiro”. Ele discordou, garantindo-lhe que “há outras formas de fazer filantropia”. Atualmente, faz também parte de uma cooperativa alimentar em Lisboa, chamada Rizoma. Além disso, uniu-se a Inês Cosme na Rede para o Decrescimento, que junta ativistas e organizações preocupadas em pensar o decrescimento.

“Para viver o decrescimento em diferentes contextos há cinco aspectos-chave a ter em conta: repensar a sociedade, agir politicamente, criar alternativas, procurar conexões e transformação pessoal nesse sentido”

O futuro economista ecológico enfatiza que o decrescimento advoga por transformações sócio-económicas e sócio-culturais, de forma a garantir o menor impacto possível, dentro dos limites dos recursos ecológicos. Por isso, em uníssono com Inês Cosme, faz questão de desfazer equívocos a alas mais críticas. “Decrescimento não é recessão” e “não se propõe a acabar com a economia”. Em vez disso, “tem a ver com equidade social e sustentabilidade ecológica”. Ele hesita numa definição do conceito, pela “natureza complexa e abrangente do termo”, relacionado com várias disciplinas, como Ecologia Política e Justiça Ambiental. Acaba por realçar a designação mais consensual.

O decrescimento sustentável é definido como uma redução equitativa da produção e do consumo que aumenta o bem-estar humano e melhora as condições ecológicas em nível local e global, a curto e longo prazo”, diz o investigador. A premissa é que crescimento económico não é sustentável e que o progresso humano sem crescimento económico é possível.

Fitzpatrick tem uma licenciatura em Ciências do Ambiente pelas Universidades de Wollongong, na Austrália, e Uppsala, na Suécia. Desde cedo tinha o sonho de viver na Europa e mostrar aos pais que o sacrifício familiar na educação dos filhos tinha valido a pena. Por isso é tão focado aos 25 anos, levando na bagagem já uma vasta experiência. Chegou a este caminho atual ao observar o que estava a acontecer ao planeta, relacionando-o com a sua experiência em “processos de sistema da terra, investigação em governança ambiental, educação para o desenvolvimento sustentável, caminhos de descarbonização, finanças climáticas, orçamentos de carbono e economia pós-crescimento”. Trabalhou no Swedish Institute of International Affairs, no Stockholm Environment Institute, no Centre for Environment and Development Studies (CEMUS) na Universidade de Uppsala e já foi conselheiro de projeto da ONG canadiana Youth Climate Lab.

“Para viver o decrescimento em diferentes contextos há cinco aspectos-chave a ter em conta: repensar a sociedade, agir politicamente, criar alternativas, procurar conexões e transformação pessoal nesse sentido.” É um processo que tem de ser adaptado às realidades locais, mas que contribui de forma abrangente. Para que tal aconteça, defende, é necessário encontrar novas formas de pensar e agir.

É por isso que a tese de doutoramento, agora iniciada, não coloca hipóteses no desenho investigativo, mas alimenta-se da abertura ao novo. Ao utilizar o método de pesquisa ação-participação, partindo da análise das conversas que irão emergir desses encontros, procura novos conhecimentos.

Nos próximos três anos, a partir do CENSE, na Costa da Caparica, na margem sul do Tejo, Nick irá organizar encontros reservados a autores de projetos de sustentabilidade, académicos e decisores políticos, de forma a encontrar soluções sustentáveis e centradas nos problemas locais

“O decrescimento é uma transformação cultural tão profunda que é mais complexo do que um simples manual de instruções”, acautela. Aliás, é precisamente pelo facto de, desde 1972, a partir do relatório The Limits to Growth, a maioria das abordagens sobre decrescimento se ter baseado num caminho mais “teórico” e “até radical” que esta pesquisa é inovadora.

Inês e Nick estão a propor “reimaginar o futuro”. “Estamos a desenhar estes processos de diálogo, nos quais temos de garantir que as vozes são ouvidas, mais ou menos de forma igual, e que possamos ter alguns passos que guiam as pessoas em resultados construtivos”, explica Nick. “Esse é o nosso trabalho enquanto académicos e facilitadores neste processo. E depois vamos ver o que resulta destes diálogos.”

O investigador do CENSE considera que os negócios, as iniciativas sustentáveis, os decisores políticos e as políticas estão distantes e muito fechadas entre si. “O objetivo do IDEATE é construir conexões entre esses atores, uma vez que as atuais políticas reproduzem o sistema e nós procuramos uma transição”, nota. Reconhece, no entanto, que é uma transição “complexa” e “radical”. Só que é também por isso que ele quer dar os primeiros passos no sentido dessa transição para o decrescimento. “E isso já é um passo em frente.”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. Nicholas Fitzpatrick, atualmente a desenvolver trabalho no Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade da FCT da Universidade Nova de Lisboa, foi um dos 65 selecionados (11 em Portugal) – entre 1078 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2020 do programa de bolsas de doutoramento INPhINIT. O investigador recebeu 115 mil euros para desenvolver o projeto IDEATE – Imagining DEgrowth trAjecToriEs ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2021 encerram a 25 de fevereiro.


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