sexta-feira, 7 de maio de 2021

Modi, de vilão nos EUA a pai da “Nova Índia” em menos de uma década



No ano em que comemora o seu sétimo aniversário na liderança do Governo indiano, Narendra Modi recebeu, em Março passado, uma notícia que veio pôr em causa décadas de promoção do gigantesco país como a maior democracia do mundo. No ranking do instituto sueco V-Dem, a Índia deixava a companhia das democracias liberais e deslizava para o grupo das autocracias eleitorais – em grande parte, segundo a organização sueca, graças ao culto da personalidade à volta de Modi e à centralização do poder na sua figura em menos de uma década.
E o diagnóstico preocupante da V-Dem para a democracia indiana não foi o único a ser conhecido desde o início do ano. Nos EUA, a organização sem fins lucrativos Freedom House tirou a Índia da coluna das “democracias livres” e passou-a para a das “democracias parcialmente livres”, com um total agregado de 67 pontos em termos de direitos políticos e liberdades civis – o que deixou o país numa posição entre o Equador e a Albânia e muito atrás de Portugal, que ocupa a 14.º lugar em todo o mundo com 96 pontos.
“O movimento nacionalista hindu que lidera o país encorajou a perseguição de muçulmanos, que foram acusados de espalharem o vírus e foram atacados por multidões de vigilantes. Em vez de actuar como defensor e promotor das práticas democráticas, e como um contrapeso à influência autoritária de países como a China, Modi e o seu partido estão a empurrar a Índia de forma trágica para o autoritarismo”, diz a Freedom House no seu relatório.
A sueca V-Dem é ainda mais cáustica na avaliação que faz dos sete anos de governação Modi: “Antes da eleição de Narendra Modi, em 2014, o Governo indiano raramente recorria à censura. Em 2020, os actos de censura tornaram-se rotineiros e já não se limitam a assuntos sensíveis do Governo. Neste aspecto, a Índia é agora tão autocrática como o Paquistão e mais autocrática do que o Bangladesh e o Nepal.”
A resposta do Governo indiano, pela voz do ministro dos Negócios Estrangeiros, S. Jaishankar, pôs em causa a independência e o rigor de institutos ocidentais como a Freedom House e o V-Dem, acusadas de fazerem uma leitura superficial das realidades no terreno e de serem menos duras com governos mais à esquerda.
“Vocês usam a dicotomia entre democracia e autocracia. Mas eu chamo a isso hipocrisia”, disse S. Jaishankar, a 15 de Março, ao jornal Indian Express. “Os vossos auto-intitulados guardiões do mundo não aceitam que alguém na Índia não ande à procura da aprovação deles, e que não esteja disposto a jogar o jogo deles.”
Os relatórios das organizações internacionais são corroborados por inúmeros artigos de opinião e notícias publicadas em vários países, por jornalistas e por académicos.
Em Março, o jornalista e escritor indiano Kapil Komireddi questionou, num texto publicado no The Washington Post e no PÚBLICO, “se haverá algum culto da personalidade no mundo democrático que rivalize com o de Narendra Modi”.
Komireddi deu alguns exemplos de como se vai materializando esse culto na Índia, como a mudança de nome de um estádio de críquete, em Fevereiro, de Estádio Sardar Patel (o primeiro vice-primeiro-ministro da Índia e um dos pais da independência) para Estádio Narendra Modi.
Num texto em que recorda o culto da personalidade e os escândalos de corrupção à volta da família Nehru-Ghandi (sem ligação a Mohandas Gandhi), o jornalista sublinha que Modi suplantou, em poucos anos, a marca deixada pelos seus antecessores ao longo de décadas.
“Uma vez acomodado no cargo, Modi empenhou-se em canonizar-se como pai daquilo a que os seus admiradores chamam de ‘Nova Índia’”, diz Kapil Komireddi. Uma Índia onde já nem resiste a tradição democrática no acesso ao poder no Partido Bharatiya Janata – “onde havia nepotismo, mas, teoricamente, qualquer pessoa que aderisse à ideologia pró-hindu poderia aspirar a liderá-lo”.
Apresentando-se como o líder que ia salvar a Índia da burocracia e de um Estado que sufocava a iniciativa privada e o desenvolvimento económico, Narendra Modi preparou a sua eleição para a chefia do Governo, em 2014, com uma década de governação no estado de Gujarat, no noroeste do país junto à fronteira com o Paquistão.
Logo no seu primeiro ano como ministro-chefe de Gujarat, Modi ficaria marcado pela forma como reagiu aos violentos motins de 2002, que fizeram mais de mil mortos em três dias (ou mais de 2000, segundo fontes não oficiais), a esmagadora maioria muçulmanos.
Apesar de nunca ter sido responsabilizado nos tribunais, a contribuição de Modi para os dias de ódio sectário é hoje vista com algum consenso na comunidade académica. Principalmente a acusação de que Modi agiu de forma lenta para controlar a situação e de não ter condenado os ataques de forma clara.
Segundo o historiador indiano Gyanendra Pandey – um especialista em pós-colonialismo no projecto Subaltern Studies –, os acontecimentos de 2002 não foram motins, mas sim “massacres politicamente organizados” – e outros investigadores, como o norte-americano Paul Brass, falam mesmo na existência de uma “campanha de limpeza étnica anti-muçulmanos, executada com excepcional coordenação e brutalidade”.
Entre os motins de 2002 e os anos que antecederam a sua primeira eleição como primeiro-ministro, em 2014, Modi foi alvo de condenação internacional, sendo proibido de entrar no território dos EUA, no Reino Unido e na União Europeia. Até hoje, foi a primeira e única personalidade a quem foi negado um visto de entrada nos EUA com base nas recomendações da Comissão de Liberdades Religiosas Internacionais.
O cerco internacional seria quebrado entre 2012 e 2013, quando se formou a convicção de que a sua vitória nas eleições era inevitável.

Sem comentários: