sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Discutir o consumo: é tempo de pôr o dedo na ferida


Por Bebiana Cunha *

Se há algo que o ano 2020 nos ensinou é que nada pode ser dado como certo e que temos de mudar – mudar mesmo – a forma como nos relacionamos com o planeta e com as várias espécies que connosco partilham a Casa Comum.

Embora com vários indícios passados sobre os efeitos colaterais da subjugação dos animais selvagens à sua venda em mercados, não constava nas antecipações de 2020 que iríamos lidar com uma crise sanitária sem precedentes, decorrente de uma zoonose e que deu origem a uma profunda crise social e económica.

Durante este ano, foram várias as pessoas que perderam os seus empregos ou viram os seus negócios ruírem. Em Portugal, trabalhadores de vários sectores como a restauração, cultura ou turismo continuam à espera de melhores respostas por parte do Estado, que, por sua vez, aguarda a “bazuca europeia”.

A uma empresa como a TAP, estratégica para o país, exigiu-se que o Estado não fosse um mero espectador e interviesse com urgência. Nesta intervenção ficaram de fora as contrapartidas ambientais. Por outro lado, a recente notícia do iminente encerramento da refinaria da Galp, em Matosinhos, veio de um dia para o outro colocar em causa mais de 500 postos de trabalho. Contudo, apesar de ao longo dos anos esta refinaria ter acumulado passivos ambientais devido à contaminação de solos, não se conhece até ao momento qualquer projecto de recuperação ambiental. Dois casos que são um exemplo de que se continua a decidir politicamente ao contrário, do tecto para os alicerces. Do telhado para o chão.

Importa analisarmos as decisões políticas sem esquecer o pano de fundo da crise ambiental, sendo que TIC…TAC… Temos agora menos de 10 anos até atingirmos o ponto de não retorno climático. Um ponto a partir do qual se prevê que nada será igual para nós enquanto indivíduos, espécie que, em resultado da acção voraz vem galgando ainda mais a extinção de outras espécies, a perda de biodiversidade, o comprometimento da vida no nosso planeta, tal como a conhecemos. Hipotecamos assim também o futuro das nossas crianças!

Pensar sobre 2020 implica, por isso, reflectirmos quanto à forma como a maior parte de nós actua no processo moderado pelos agentes de mercado , através do consumo, aquilo a que comummente chamamos de Economia. É necessário que todos saibamos e estejamos conscientes em cada escolha que fazemos daquela que é a nossa responsabilidade em todo este processo. Política também.

Não podemos invocar conceitos como os de sustentabilidade e de justiça intra e intergeracional sem que realmente valorizemos o essencial. Esses conceitos têm que constar nas decisões políticas, nas propostas para regular a sociedade não podem permanecer alheias das suas próprias responsabilidades, também quando estão em causa estão questões económicas.

Chegados ao actual estado em que nos encontramos, qual o plano para mudar uma cultura de consumo e, consequentemente, a forma de produzir riqueza económica? É tempo de colocar esta questão e, sobretudo, de exigir resposta e acção. Porém, perante um modelo que há muito revela sinais de esgotamento, insiste-se ainda no erro. Como podemos consumir na medida certa? Evitando o desperdício, optando por uma mobilidade mais responsável, consumindo produtos ambientalmente menos impactantes, reduzindo substancialmente o consumo de produtos de origem animal, garantindo produtos que na suas cadeias respeitem os trabalhadores, recorrendo ao crédito de forma comprometida com o planeta, valorizando fornecedores que procedam de forma responsável, visando a construção de práticas sustentadas em princípios justos, transparentes e coerentes na demanda pelo Bem Comum.

Em face de alternativas conhecidas, até que ponto, por exemplo, o modelo de comércio justo tem sido chamado a assumir a responsabilidade de mudar a economia? Atentemo-nos o ponto de vista do consumo. Por que não interessa ao mainstream discutir um consumo consciente? Consumir é a realização final da cadeia de valor de qualquer forma de produção na economia não regulada, isto é, neo-liberal. Face à sociedade de consumo toda a actividade humana se torna agora produtiva. Deste modo, a maneira como compramos, consumimos ou mesmo como nos alimentamos são por si só um acto político e portanto o Estado tem a possibilidade de interferir por via das suas decisões, seja na forma como apoia as empresas, seja nas exigências que lhes coloca para estes apoios, nas políticas laborais ou ambientais ou éticas.

No final de um ano, altura de balanços e de projeções é tempo de dizer aquilo que ninguém quer ouvir, de pôr o dedo na ferida: falar racional e emocionalmente de consumo e decidir em consonância com aquilo que sabemos. O planeta não aguenta mais do mesmo!

*Deputada do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) – Portugal

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