domingo, 13 de dezembro de 2020

Breve viagem à lógica do horror

Por Helena Araújo

Com o intuito de facilitar a leitura, transcrevo para aqui um thread bastante longo de Francisco Feijó Delgado no Twitter. Espero que ele não me leve a mal. 

Diz, portanto, Francisco Feijó Delgado ( @sheeko ):
 
 O @cvazmarques  foi acusado de tirar a afirmação de JRS fora de contexto. Vendo a entrevista toda e lendo a clarificação adicional, há pouca dúvida: é JRS que tira do contexto e produz afirmações de uma ligeireza enorme. Vejamos.


Quem vê a entrevista e lê a justificação sai com a seguinte ideia transmitida por JRS: que os nazis, nas suas cabeças, justificaram o extermínio dos judeus – um mal necessário – com razões humanitárias para com os judeus. 

Deixo claro que não estou a acusar o JRS de revisionismo ou sequer de dizer que acha que as acções dos nazis foram humanas. Claro que não. O que contesto é que haja qualquer consideração humanitária para com os judeus como razão para o holocausto. 

Os nazis podiam invocar considerações “humanitárias”, só que não há, no processo, qualquer desejo de minimizar o sofrimento das vítimas, mas sim de distanciar progressivamente os carrascos das suas vítimas.

A historiografia do processo que culminou com o extermínio em massa dos Judeus é complexa, em parte pq se desenvolveu sob o conceito de “trabalhar para o líder”, em que os diversos agentes procuravam interpretar e executar aquilo que consideravam ser os desígnios do Führer. 

É por isso que não existe uma ordem ou directriz de Hitler a mandar exterminar os judeus.

JRS invoca a preocupação pelos judeus, citando uma carta de um oficial nazi, Höppner, a Eichmann em que propõe um método de morte rápida para lidar com os judeus de Łodz: uma “solução mais humana”. Mas é JRS que tira tudo isto do contexto e faz uma afirmação pouco cuidadosa. 

É JRS que tira Höppner do contexto, tira a palavra “humanidade” do contexto, e tira o gasear dos judeus do contexto.

A palavra humanidade significa compaixão, benevolência. Ser-se humano preocupar-se, minorar o sofrimento de outros e dar-lhes dignidade. Ignorando casos individuais, é possível dizer que houve compaixão pelos judeus no criar do processo que iria levar ao seu extermínio?

A própria frase é um paradoxo, a não ser que se deixe de tratar os judeus como humanos, mas como sub-humanos. Então aí sim, podemos matar indivíduos de forma humana, como matamos animais. Foi isso que aconteceu? Já lá iremos.

JRS cita Höppner para atribuir um lado compassivo ao processo dos nazis. “Estão a morrer de fome, não podemos alimentá-los. Se é para morrer, mais vale morrer de uma forma mais humana.”

Antes de mais, não questiona sequer onde está a humanidade no porquê de estarem a morrer de fome, ou no porquê de não os poderem alimentar? Como é que uma pessoa pode ser “humana” na morte doutrem, sendo que em tudo desumaniza a sua vida?

Vale a pena contextualizar: Höppner era o chefe do Gabinete Central de Reinstalação (UWZ), especialista em deportações. Na altura os judeus estavam a ser deportados em cada vez maior número com a ideia de os colocar no Governo Geral, e se no início eram os das províncias ocupadas, em breve viriam a ser também os da Alemanha. A ghettização facilitaria o controlo e a deportação. Mas trazia problemas logísticos que se agravaram com a demora nas deportações e pouca orientação de Berlim, deixando líderes locais a ter de decidir por si. 

Uns advogavam o declínio e a morte dos judeus, usando a fome deliberadamente, e outros o uso dos judeus como trabalhadores forçados. É neste contexto que Höppner escreve o memorando, numa altura em que a existência do ghetto, pensada como temporária, se eternizava: os judeus incapazes para o trabalho iriam morrer de fome, porque inicialmente a ideia era vender-lhes comida, extorquindo-lhes os bens, mas os bens acabaram. 

O superior interesse do povo alemão era incompatível com subsidiar publicamente a alimentação dos judeus inaptos. 

Havia portanto *um problema* a resolver. Não era a primeira vez que Höppner advogava, embora não tão explicitamente, a liquidação de indivíduos que causavam problemas burocráticos. Já em 1940:



E ainda em 1940, um ano antes do tal memorando, em polaco, mas com rápida tradução em inglês:



Nessas alturas, Höppner não teve qualquer pejo em propor a liquidação de pessoas para resolver os *problemas* com que se deparava. Em nenhuma dessas vezes achou por bem justificar as acções com razões humanitárias. 

Vale a pena voltar ao memorando, q não acaba com «Seria melhor do que deixá-los morrer à fome», mas «Auf jeden Fall wäre dies angenehmer, als sie verhungern zu lassen.», i.e, “em qualquer dos casos, seria mais agradável do que deixá-los morrer à fome”. Agradável para quem?

No parágrafo seguinte, num outro "exemplo de compaixão": propõe a esterilização das mulheres para acabar com o problema judaico naquela geração. Ficam as perguntas: - Houve alguma compaixão em Höppner? - Houve alguma preocupação em minorar o sofrimento dos judeus? 

O uso da palavra “humanidade” está presente no discurso de muitos outros oficiais nazis, começando pelo próprio Hitler.



Wilhelm Kube recusou-se a mandar liquidar judeus por fuzilamento enquanto não houvesse uma forma mais discreta e “humana”, tendo o seu superior, Heydrich, desautorizado-o.


Kube, que no massacre do Ghetto de Minsk atirou rebuçados para crianças que estavam num fosso de areia para morrer, foi mais tarde assassinado.

Himmler, que não apreciara a sua relutância relativamente às acções contra os judeus alemães, considerou o seu assassinato uma benção, que de qualquer maneira, o homem já tinha lugar marcado num campo de concentração.

O facto é que há inúmeros exemplos de que as tais “razões humanitárias” eram humanitárias para os carrascos, não para as vítimas. O extermínio já tinha começado, mas matar pessoas com esquadrões de fuzilamento em grande quantidade é difícil: 




A evolução foi tudo menos “humana” e, mais uma vez, com o objectivo de tornar o extermínio mais exequível. Até morte por explosivos foi testada, mas ir apanhar restos de corpos nas árvores não era agradável:





O facto é que Hitler e os nazis criaram um ambiente que, como afirma Kershaw, não fez do genocídio um acidente, sem qualquer ponta de compaixão ou consideração pelos judeus.


E Goebbels rejubilava com a vingança sobre a praga judia: «a única maneira de lidar com eles é com a brutalidade necessária»:



As palavras têm de ser postas no contexto, interpretadas e calibradas. Alguém insuspeito que entrasse em Auschwitz até poderia pensar que o trabalho liberta. 

Eichmann, no seu julgamento disse «nunca matei ninguém, nunca dei ordem para matar». E no entanto, foi um dos operacionais do extermínio dos judeus. Assassino não é só quem aperta o gatilho, e humano não é só quem se apressa a matar.

Da mesma maneira que os nazis invocaram “razões humanitárias”, também Eichmann invocou que o trabalho dele não era matar ninguém. 

A “humanidade”, era, no seu aspecto sistémico, uma qualidade interesseira, em que a compaixão era dirigida aos carrascos. Era uma maneira de eles se próprios se libertarem:

De facto, a deturpação do conceito de “humanidade” tornou tudo ainda mais perigoso.


JRS diz que eram pessoas normais nos campos, e pergunta o que levou essas pessoas a participar em acções de extermínio. Mas as pessoas normais já se tinham envolvido nas matanças. O que esta forma “humana” fez, foi facilitar ainda mais isso.





Mas quem assiste à entrevista e lê o que escreve, vê JRS afirmar que os nazis eles próprios estavam convencidos de que estavam a fazer um mal necessário e que ainda tinham em conta o sofrimento dos judeus, tentando minorá-lo.

A tal “humanidade” não era uma razão para o extermínio, como JRS diz, mas sim o instrumento fundamental para pôr uma indústria daquela escala a funcionar. Em Auschwitz, finalmente, poucos alemães teriam que directa e pessoalmente matar alguém.

Eram meros operadores, técnicos especializados, que “só” tinham que deixar cair o conteúdo de uma lata por um tubo. Muito mais “humano” do que metralhar mais uma fila de judeus deitados sobre a fila que tinham metralhado há instantes.

Sem comentários: