terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Antero de Quental, a missão revolucionária da poesia


COIMBRA - 2 NOV 1865 - Antero do Quental, com 23 anos, dirige a António Feliciano de Castilho, com 65, uma carta sobre o Bom Senso e Bom Gosto.

POETA E PENSADOR DO SÉCULO XIX, ANTERO DO QUENTAL FOI UMA LENDA EM COIMBRA. MESTRE DO SONETO, DEFENSOR DA MODERNIDADE, O ESCRITOR FEZ PARTE DE UMA DAS MAIS RICAS GERAÇÕES DE INTELECTUAIS PORTUGUESES. CONHEÇAMOS A VOZ INSULAR DO ACADÉMICO REVOLUCIONÁRIO.

Ex.mo Sr.
Acabo de ler um escripto[1] de v. ex.ª onde, a proposito de faltas de bom-senso e de bom-gosto, se falla com aspera censura da chamada eschola litteraria de Coimbra, e entre dois nomes illustres[2] se cita o meu, quasi desconhecido e sobre tudo desambicioso.
Esta minha obscuridade faz com que a parte de censura que me cabe seja sobre maneira diminuta: em quanto que, por outro lado, a minha despreoccupação de fama litteraria, os meus habitos de espirito e o meu modo de vida, me tornam essa mesma pequena parte que me resta tão indifferente, que é como que se a nada a reduzissemos.
Estas circumstancias pareceriam sufficiente para me imporem um silencio, ou modesto ou desdenhoso. Não o são, todavia. Eu tenho para fallar dois fortes motivos. Um é a liberdade absoluta que a minha posição independentissima de homem sem pretenções litterarias me dá para julgar desassombradamente, com justiça, com frieza, com boa-fé. Como não pretendo logar algum, mesmo infimo, na brilhante phalange das reputações contemporaneas, é por isso que, estando de fóra, posso como ninguem avaliar a figura, a destreza e o garbo ainda dos mais luzidos chefes do glorioso esquadrão. Posso tambem fallar livremente. E não é esta uma pequena superioridade neste tempo de conveniencias, de precauções, de reticencias—ou, digamos a cousa pelo seu nome, de hypocrisia e falsidade. Livre das vaidades, das ambições, das miserias d'uma posição, que não pretendo, posso fallar nas miserias, nas ambições, nas vaidades d'esse mundo tão extranho para mim, atravessando por meio d'ellas e sahindo puro, limpo e innocente.
[...]
Paro aqui, ex.mo sr. Muito tinha eu ainda que dizer: mas temo, no ardor do discurso, faltar ao respeito a v. ex.ª, aos seus cabellos brancos. Cuido mesmo que já me escapou uma ou outra phrase não tão reverente e tão lisongeira como eu desejára. Mas é que realmente não sei como hei de dizer, sem parecer ensinar, certas cousas elementares a um homem de sessenta annos; dizel-as eu com os meus vinte e cinco! V. ex.ª aturou-me em tempo no seu collegio do Portico, tinha eu ainda dez annos, e confesso que devo á sua muita paciencia o pouco francez que ainda hoje sei. Lembra-se, pois, da minha docilidade e adivinha quanto eu desejaria agora podel-o seguir humildemente nos seus preceitos e nos seus exemplos, em poesia e philosophia como outr'ora em grammatica franceza, na comprehensão das verdades eternas como em outro tempo no entendimento das fabulas de La Fontaine. Vejo, porem, com desgosto que temos muitas vezes de renegar aos vinte e cinco annos do culto das auctoridades dos dez; e que saber explicar bem Telemaco a crianças não é precisamente quanto basta para dar o direito de ensinar a homens o que sejam razão e gosto. Concluo d'aqui que a edade não a fazem os cabellos brancos, mas a madureza das idêas, o tino e a seriedade: e, neste ponto, os meus vinte e cinco annos têm-me as verduras de v. ex.ª convencido valerem pelo menos os seus sessenta. Posso pois fallar sem desacato. Levanto-me quando os cabellos brancos de v. ex.ª passam deante de mim. Mas o travesso cerebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas, que sahem d'elle, confesso não me merecerem nem admiração nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. ex.ª precisa menos cincoenta annos de edade, ou então mais cincoenta de reflexão.
É por estes motivos todos que lamento do fundo d'alma não me poder confessar, como desejava, de v. ex.ª
Coimbra 2 de Novembro de 1865.
Nem admirador nem respeitador
Anthero do Quental.
[1] No livro do sr. Pinheiro Chagas—Poema da Mocidade.
[2] Os srs. Theophilo Braga e Vieira de Castro.
Acabava de «nascer» a Questão Coimbrã, também conhecida como Questão do Bom Senso e Bom Gosto, uma célebre polémica literária que marcou a visão da Literatura em Portugal na segunda metade do século XIX.
Questão Coimbrã, como ficou conhecida a polémica do Bom Senso e Bom Gosto, colocou em oposição os jovens representantes do realismo e do naturalismo aos vetustos defensores do ultra-romantismo. Foi o primeiro sinal de renovação ideológica do século XIX.
António Feliciano de Castilho, futuro 1.º visconde de Castilho, escritor romântico, polemista e pedagogo, reuniu em seu redor um grupo de novos escritores a que Antero chamou de «escola de elogio mútuo».
Em 1865, solicitado a apadrinhar com um posfácio o Poema da Mocidade de Pinheiro Chagas, Castilho aproveitou a ocasião para, sob a forma de uma Carta ao Editor António Maria Pereira, censurar um grupo de jovens de Coimbra, que acusava de exibicionismo, de obscuridade propositada e de tratarem temas que nada tinham a ver com a poesia, acusava-os de ter também falta de bom senso e de bom gosto.
Os escritores mencionados eram Teófilo Braga, autor dos poemas Visão dos Tempos e Tempestades Sonoras; e Antero do Quental, que então publicara as Odes Modernas.
Antero do Quental respondeu com uma Carta com o título "Bom senso e bom gosto" a Castilho, que saiu em folheto.
Nela defendia a independência dos jovens escritores; apontava a gravidade da missão dos poetas da época de grandes transformações em curso e a necessidade de eles serem os arautos dos grandes problemas ideológicos da actualidade, e metia a ridículo a futilidade e insignificância da poesia de Castilho.
Esta polémica, que durou meses, com frequentes trocas de publicações críticas de ambos os lados, terminou com a sobrelevação dos ideais preconizados pela Geração de 1870 (e sobretudo por Antero), o que provocou uma autêntica renovação cultural, acentuando o papel de intervenção social que a literatura deve ter, abalando as concepções retrógradas do ultra-romantismo, impulsionando a afirmação do realismo.
Antero do Quental tem na sua natureza o mar das ilhas atlânticas dos Açores, o azul da bonança que, num instante, se levanta em ondas agitadas. Antero de Quental (1842-1891) é esse espírito inquieto que vive entre “o sentimento e a razão, a sensibilidade e a vontade, o temperamento e a inteligência.”
Cedo começa a escrever sonetos, influenciado, confessa, por Alexandre Herculano. As heranças literárias da família fidalga de São Miguel, onde nasceu, especialmente do avô, poeta, íntimo de Bocage, também terão nele a sua influência. Do pai, combatente liberal, que em 1832 participa nas lutas entre D. Pedro e D. Miguel, herda o espírito lutador.
A Geração de Coimbra
Quando estudante na cidade das capas negras, a popularidade do jovem assume contornos de lenda. Eça de Queiroz recorda: “Deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou, por entre os lábios abertos de gosto e pasmo. – É o Antero! (…) Nesse tempo ele era em Coimbra, e nos domínios da inteligência, o Príncipe da Mocidade.(…)”
Antero envolve-se nas lutas académicas. O espírito revolucionário do jovem estudante de Direito fortalece nas leituras do novo ideário europeu que chegam com Proudhon, Hegel, Darwin, Goethe, Balzac… É desta altura a polémica conhecida por Questão Coimbrã, desencadeada pela carta que escreve intitulada “Bom Senso e Bom Gosto” contra Antero Feliciano de Castilho e o romantismo dos velhos mestres.
O grupo de Coimbra, a base da Geração de 70, a que pertenciam Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Teófilo BragaManuel de Arriaga, entre outros, irá depois reencontrar-se em Lisboa.
O grande impulsionador do grupo do Cenáculo, como mais tarde é denominado, é uma vez mais, Antero do Quental, que entretanto tivera a sua experiência operária de tipógrafo em Paris e regressara como “apóstolo do socialismo”. Todos querem mudar Portugal e acreditam que a literatura tem esse poder.
Em 1871 nascem as “Conferências do Casino” em que Antero apresenta “As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”, os ataques que faz ao estado do país são tão violentos que as conferências são proibidas. A partir daqui desenvolve uma intensa atividade política, defende um federalismo europeu e é um dos co-fundadores do Partido Socialista .
O poeta de “Raios de Extinta Luz” e “Odes Modernas” , autor profícuo também de ensaios filosóficos, vive, a partir de 1873, atormentado por uma doença que o deixa debilitado no corpo e na alma. Isola-se em Vila do Conde. Acabará por se suicidar aos 49 anos com um tiro na cabeça, sentado num banco de jardim na ilha onde nasceu.
[texto partilhado do que acompanha o programa, um outro do programa da Antena 2 e o da carta de Antero, tudo isto disponível na «net»]

Sem comentários: