sábado, 21 de novembro de 2020

Roubo ao copo

Em Espanha, o sistema de vinho a copo serve para, a preços sensatos, dar a conhecer marcas desconhecidas. Por cá serve para os donos dos restaurantes financiarem os seus negócios. Sem vergonha, cobram por um copo mais do que o valor comercial da garrafa. Isto não é especulação - é roubo.


Edgardo Pacheco 07 de Outubro de 2017 às 13:00


Por razões relacionadas com o fantástico universo queijeiro espanhol, passei uns dias em Santander a provar coisas feitas nas Astúrias, na Cantabria, em Castela La Mancha e noutros territórios. Pelos queijos portugueses dou o peito, mas não escondo certa paixão pelos Cabrales, Manchegos de cura prolongada ou queijos de leite de vaca como o Quesoba. Nós temos denominações de origem protegida que me encantam, mas os espanhóis têm uma criatividade, a partir de leite de ovelha, cabra e vaca, que me deixa em silêncio prolongado quando sinto os aromas e sabores inusitados dos seus queijos - sempre intensos e sempre marcantes pelo terroir. Por mais anos que viva nunca conseguirei descrever um poderoso Cabrales. É muito aroma e sabor para um só homem.

Sucede que um queijo pede sempre um vinho (regra geral um vinho branco ou vinho doce). E sucede ainda que nos restaurantes, bares ou tabernas de Santander o vinho é algo muito sério. Tão sério que os empresários lá da terra entendem que o vinho é um elemento que atrai e não assusta os consumidores.

Em quatro dias, o vinho a copo mais caro que provei em Santander foi, curiosamente, feito na Borgonha, e pelo estrondoso valor de €3. De resto, tive a oportunidade de provar Albarinos extraordinários por €2,5 e Ruedas e Riojas a €2.

Na Bodega Cigalena - uma instituição de Espanha fundada em 1949, com 5.000 referências à disposição dos clientes e que apresenta como garrafa mais antiga um vinho português (Malvasia Cândida de 1811) - há todos os dias 18 vinhos a copo à venda (espanhóis e internacionais), sendo que o valor máximo cobrado é €2,70. Só não apanhei uma tempestade etílica porque, com a idade, um tipo percebe quando um copo a mais deixa de ser prazer para ser exercício ridiculamente atoleimado.

Resultado, toda a gente bebe vinho, toda a gente prova vinhos que desconhecia (tomando depois decisões sobre compras futuras), sendo que os fulanos do restaurante não têm mãos a medir na abertura de garrafas. E isto porque, no entender dos responsáveis da Bodega Cigalena, faz sentido pedir €22 por um prato de presunto de lei que demorou sete ou oito anos a chegar ao consumidor, mas é ridículo pedir por um copo de vinho com um ano de vida o preço do valor comercial da garrafa. E este raciocínio funciona na Bodega Cigalena como funciona em qualquer outro restaurante da cidade.

Agora, vejamos o que se passa em Portugal. Há 20 anos, ninguém acreditava no conceito de vinho a copo na restauração. Que não fazia parte dos nossos hábitos; que era interpretado como vinho menor e que - claro - seria um prejuízo para os restaurantes porque ficariam com garrafas meio vazias sem venda.

Instituições como a Revista de Vinhos ou a Viniportugal começaram, há cerca de 15 anos, a promover a venda de vinho a copo. Conservador por natureza, o sector começou por recusar o sistema para, com a chegada do turismo - e bem assim a abertura de dezenas de restaurantes por dia -, ceder à selecção de um conjunto de vinhos a copo.

Em tese, a venda de vinho a copo serviria para, em primeiro lugar, dar a oportunidade aos consumidores de provarem um ou dois copos de vinho numa refeição (sem terem de comprar uma ou meia garrafa), trocarem de marca e, claro, reduzirem o esforço financeiro.

Mas, na prática, o que acontece é que a estratégia de vinho a copo é um assalto ao bolso dos consumidores e uma falta de respeito pelo trabalho dos produtores. É preciso dizer isto desta forma: o vinho, vendido a garrafa ou a copo, continua a ser uma estratégia de financiamento do negócio da restauração.

E se já estávamos habituados aos preços exorbitantes de uma garrafa na restauração, ainda havia esperança de que a venda a copo mudasse as coisas. Qual quê? Piorou tudo. Sei muito bem o que significa especular, mas quando alguém me cobra - é só um exemplo que me ocorre por proximidade geográfica - €4 por um copo de Planalto, sendo que a garrafa para o empresário lhe custou três euros e qualquer coisa - não estamos perante especulação: estamos perante um roubo descarado ao produtor e um insulto aos consumidores.

Os meus amigos da restauração falam os seus custos e das tradições em tudo isto. Mas eu costumo retorquir-lhes com o seguinte exemplo. "Se, por hipótese, eu contratasse uma refeição vossa para um casal de estrangeiros que não conhece o país por, digamos assim, €100 euros e, depois, fosse divulgado publicamente que eu teria cobrado ao referido casal €500 pelo mesmo serviço, que rol de nomes vocês não me chamariam?" A resposta varia sempre entre o silêncio e o "depende das circunstâncias". E, pelos vistos, não se vislumbram tempos mais civilizados.

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