quinta-feira, 3 de agosto de 2017

O bárbaro hoje está por toda a parte, dentro e fora das fronteiras, por Agostinho da Silva

Sabine Weiss- L´Homme qui court, Paris 1953

"O bárbaro hoje está por toda a parte, dentro e fora das fronteiras, é branco, preto, amarelo e de todas as cores intermédias, se infiltra em todos os agrupamentos políticos e pertence a todas as religiões; pode aparecer defendendo qualquer forma de economia; a barbárie, hoje, não se caracteriza nem por uma raça nem por um credo: é uma forma generalizada de comportamento humano. E todas as circunstâncias são de molde a favorecer a sua vitória: uma vitória temporária, mas que pode durar séculos.

Os progressos técnicos, que toda a gente está confundindo cada vez mais com progresso humano, vão criar cada vez mais também um suplemento de ócio que, excelente em si próprio, porque nos aproxima exactamente daquele contemplar dos lírios e das aves que deve ser nosso ideal, vai criar, olhado à nossa escala, uma força de ataque e de triunfo; mais gente vai ter cada vez mais tempo para ouvir rádio e para ir ao cinema, para frequentar museus, para ler revistas ou para discutir política, e sem que preparo algum lhe possa ter sido dado para utilizar tais meios de cultura: a consequência vai ser a de que a qualidade do que for fornecido vai descer cada vez mais e a de que tudo o que não for compreendido será destruído; raros novos beneditinos salvarão da pilhagem geral a sempre reduzida antologia que em tais coisas é possível salvar-se.

O choque mais violento vai dar-se exactamente, como era natural, nos países em que existir uma liberdade maior; nos outros, as formas autoritárias de regime de certo modo poderão canalizar mais facilmente a Humanidade para a utilização desse ócio; sucederá, porém, o seguinte: nos países não-livres, porque nenhum há livre, mas enfim mais livres, algumas consciências se erguerão dos destroços e pacientemente, com todas as modificações que houver a fazer, converterão o bárbaro ao antigo e sempre eterno ideal de “vida conversável”; nos outros, a não sobrevir uma revolução causada pelo tédio ou pelo próprio desabar da outra metade do mundo, o trabalho será mais difícil porque se terá de arrancar os homens, no seu conjunto, à ideia de que o que vale é a segurança material, o conforto técnico e, se for possível, nenhum rumor de pensamento dialogado"

~ Agostinho da Silva, “Bárbaros à Porta”, As Aproximações [1960], in Textos e Ensaios Filosóficos II, pp.64-67.

2 comentários:

Luis Filipe Gomes disse...

Foi bem lembrado retomar Agostinho da Silva.

João Soares disse...

Boa tarde, Luís Filipe Gomes
O BioTerra tem 14 anos de actividade. Agostinho da Silva é uma referência estrutural do meu blogue. Obrigado pelo comentário. Cumprimentos.